terça-feira com gosto de poeira
Ada abriu os olhos com dificuldade. A luz suave da manhã invadia seu quarto pelas frestas da cortina, e o despertador tocava uma melodia calma, o que só tornava tudo mais irritante.
Ela virou para o lado, apertando o travesseiro contra o rosto.
ada
— Se eu fingir que desmaiei… será que minha mãe acredita?
O cheiro de café vindo da cozinha respondeu por ela. Ada se arrastou da cama como quem carrega os pecados do mundo.
Na mesa, sua mãe a olhou com simpatia contida.
yara
— Vai dar certo, filha.
ada
— Vai dar certo se eu tropeçar no balde e quebrar a perna. Aí, talvez, eles cancelem a faxina.
O portão parecia maior do que o normal. Os corredores pareciam mais longos. E a escada até a sala de aula? Um verdadeiro Monte Everest emocional.
Ada entrou na sala e foi direto pra sua carteira, jogando a mochila com mais força do que o necessário. Antes que pudesse afundar na própria auto comiseração, Lia surgiu do nada, com um saquinho de salgadinho e uma expressão iluminada.
lia
— terça-feira! Sabor: arrependimento e conservantes.
juju
— Ada, hoje é o segundo dia da penitência? Queremos detalhes. Poéticos, trágicos e com cheiro de desinfetante.
Ada deu um sorriso cansado.
ada
— O chão da sala da diretora reflete mais do que meu futuro. E descobri que produtos de limpeza têm mais personalidade que certas pessoas.
lia
— Que tipo de produto a gente tá falando? — perguntou Lia. — Porque se for água sanitária, é puro veneno. Agora, um desinfetante floral..
ada
— Vocês são doidas. — Ada riu, encostando o queixo nos braços. — Mas obrigada por me fazerem rir antes de eu virar funcionária pública não remunerada.
O professor entrou, pedindo silêncio, e a sala mergulhou numa rotina pacata. Mas o olhar de Ada às vezes se perdia na janela, já prevendo mais uma tarde longa.
O corredor parecia mais vazio quando ela caminhava em direção à sala da diretora. O barulho do rodo ecoava na memória, e a ideia de mais uma hora sozinha com paredes brancas e cheiro de cloro não era nem um pouco poética.
Ao entrar, a sala estava vazia.
ada
— Menos mal… só eu e você, Marlene. — disse, pegando a vassoura e encarando o chão.
Ela começou a limpar devagar, com movimentos lentos e cansados. Dessa vez, ninguém apareceu. Não havia julgamentos. Nem olhares.
Apenas Ada, a vassoura… e o som repetitivo do atrito com o chão.
O segundo dia passava como uma tarde longa demais. E, de alguma forma, ela se sentia mais sozinha do que antes.
O relógio marcava 14h12 quando Ada terminou de passar pano pela última vez. A garrafinha de água já estava vazia, e seus braços doíam como se tivesse feito academia por engano.
ada
— Pronto, Marlene. Missão cumprida. A gente derrotou o chão outra vez. — disse, encostando a vassoura no canto da sala e se espreguiçando.
Saiu da sala com passos arrastados, os ombros pesados e os olhos preguiçosos. O corredor da diretoria estava deserto, com aquela luz branca que sempre parecia mais triste no fim do dia.
Mas, ao virar o corredor, ela quase colidiu com alguém.
ada
— Ai! — exclamou, recuando um passo.
Anthony
— Cuidado — disse a outra pessoa, com voz seca, mas não agressiva.
Ele usava fones de ouvido pendurados no pescoço, a mochila em um ombro só e uma expressão neutra. Estava ali, parado, como se tivesse se perdido ou estivesse esperando alguém.
ada
Ada piscou, surpresa.
— Você… se perdeu ou veio fazer estágio de castigo também?
Anthony
Anthony arqueou uma sobrancelha.
— Tô esperando meu amigo. Ele tá conversando com a coordenadora. Você... tá limpando aqui?
ada
— Infelizmente, sim. — disse Ada, tentando manter um ar dramático. — Estou pagando pelos meus pecados com balde, pano e humildade.
Anthony soltou um leve suspiro. Não era bem uma risada. Mas também não era só ar. Era algo no meio.
Anthony
— Hm. Boa sorte com isso.
Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos. Não era um silêncio desconfortável, mas sim estranho — como se tivessem tropeçado num espaço que não sabiam como preencher.
Anthony
— Tá suado. — ele disse, apontando pro braço dela.
ada
Ada olhou e riu.
— É, glamour não faz parte desse uniforme.
Anthony
— E você tá carregando um rodinho cor-de-rosa.
ada
— Marlene. Ela tem nome, por favor.
Anthony finalmente deu um sorrisinho de verdade.
Anthony
— Tá certo, Ada e Marlene. Bom trabalho.
Ele saiu com o seu amigo andando devagar, colocando os fones de volta nos ouvidos. Ada ficou parada por um instante, olhando ele se afastar, com uma sensação estranha no peito.
Não era nada ainda.
Mas era o suficiente pra fazer o caminho até o portão parecer mais leve.
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