Corações que batem

Capítulo 3 — Corações que Batem

Helena

O despertador tocou antes do sol nascer. Mas eu já estava acordada. Não dormi. Apenas permaneci deitada, com os olhos fixos no teto, ouvindo cada respiração de Daniel ao meu lado, cada estalo do armário, cada ruído da madrugada paulistana. Era como se o mundo inteiro estivesse em suspense, esperando pela nossa decisão.

Levantei devagar, fui até o banheiro e me encarei no espelho. Meu reflexo parecia alguém que eu não conhecia. Havia olheiras fundas, a pele pálida, os olhos sem brilho. Era uma versão minha em suspenso — entre a vida e a morte, entre o medo e o amor.

Daniel acordou logo depois. Trocamos poucas palavras enquanto nos arrumávamos para o hospital. A tensão ainda era densa, mas havia uma trégua silenciosa entre nós. Estávamos indo juntos, e isso era alguma coisa.

No caminho, ele dirigiu em silêncio, as mãos firmes no volante, o maxilar travado. Eu queria dizer algo, mas nada parecia suficiente. Fiquei observando a cidade cinza pela janela. Prédios, pessoas, ônibus lotados, cafés abrindo. Era estranho como tudo continuava normalmente quando o nosso mundo parecia prestes a ruir.

Chegamos ao hospital particular na zona sul, onde o oncologista tinha conseguido nos encaixar de última hora. O consultório era elegante, com paredes claras, plantas em vasos e um leve aroma de lavanda no ar. Mas nada disso era reconfortante. A cadeira era desconfortável. O relógio na parede parecia zombar de mim com cada segundo que passava.

— Helena Vieira? — chamou a recepcionista.

Nos levantamos juntos. Daniel apertou minha mão com força. Entrei no consultório sentindo as pernas fracas.

O Dr. Márcio nos recebeu com um semblante sóbrio, mas gentil. Era um homem de meia-idade, de barba bem aparada e olhos atentos, que pareciam pesar cada palavra antes de falar.

— Doutora Helena, já vi seus trabalhos na pediatria. Sinto muito por estarmos nos encontrando assim.

Assenti com um leve sorriso. Não havia o que dizer.

— Li seus exames e a biópsia. É um adenocarcinoma silencioso, de crescimento lento, mas já avançado. Provavelmente começou há mais de um ano.

Engoli em seco. Um ano. Eu não havia sentido nada. Ou talvez tivesse ignorado tudo.

— E agora estou grávida — sussurrei.

— Sim. E isso muda bastante coisa.

Ele nos explicou que a quimioterapia era possível a partir do segundo trimestre, mas os riscos eram muitos. E no meu caso, o tipo do câncer exigia uma abordagem mais agressiva, idealmente iniciada de imediato. O tratamento colocaria o bebê em risco. Em contrapartida, adiá-lo reduziria minhas chances de sobrevivência drasticamente.

— Se a senhora optar por esperar até o parto, a sobrevida estimada é de apenas alguns meses após o nascimento — disse ele, com pesar.

O silêncio tomou conta da sala. Daniel olhou pra mim, o olhar úmido. Eu segurei suas mãos com força, mas não disse nada. Era cruel demais ter que escolher entre meu filho e minha vida. Injusto demais.

O doutor ainda sugerou que fizéssemos um ultrassom antes de qualquer decisão. Era importante ver como estava o bebê. Eu concordei.

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No corredor da maternidade, meu coração batia acelerado. Era o mesmo lugar onde eu acompanhava mães todos os dias. Hoje, era diferente. Hoje, era eu no outro lado.

Deitei na maca, levantei a blusa e senti o gel frio na barriga. Daniel segurava minha mão, mas parecia não estar ali. Estava longe, perdido entre o medo e a esperança.

A médica deslizou o transdutor e, em segundos, o som preencheu a sala.

Tum-tum. Tum-tum. Tum-tum.

Meu coração parou. O do bebê, não.

Era forte. Rápido. Vivo.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Senti algo dentro de mim florescer e quebrar ao mesmo tempo.

— Está com oito semanas. O coração está perfeito — disse a médica, sorrindo.

Daniel se virou para mim. Seus olhos estavam vermelhos. Ele não disse nada. Apenas passou os dedos com delicadeza pela minha testa.

Naquele som, havia uma vida que dependia completamente de mim. E, ao mesmo tempo, a certeza de que continuar com ela poderia significar o meu fim.

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Voltamos para casa em silêncio. Quando entramos, fui direto para o quarto. Tirei os sapatos e me sentei na beirada da cama.

— Eu ouvi. — Daniel falou, encostado no batente da porta.

— O quê?

— O coração. É mais alto do que eu imaginava. Alto demais pra ignorar.

Levantei os olhos para ele. Estava ali, vulnerável. Como nunca.

— Eu não sei o que fazer — sussurrei. — Eu não sei como escolher.

— E se não for sobre escolher? E se a gente só... tentar? Conversar com outros especialistas. Ver se dá pra segurar até o segundo trimestre e depois tratar. Eu sei que é arriscado. Mas talvez...

— Talvez eu morra. — completei.

— Talvez não. — Ele se aproximou e se ajoelhou na minha frente. — Eu não vou mentir. Eu ainda acho que você devia priorizar sua vida. Mas agora... agora eu ouvi. É o nosso filho. E eu vi o jeito que você olhou pra tela. Você já o ama. E eu também. Só... não quero perder vocês dois.

Senti o peso das lágrimas escorrendo.

— E se for inevitável? E se esse amor me matar?

Daniel pousou a cabeça no meu colo.

— Então eu vou te amar até o último segundo. E vou fazer esse bebê saber quem você foi. Mas se houver uma chance, mesmo que pequena, eu vou lutar com você. Pelos dois.

Segurei seu rosto. Beijei sua testa. Pela primeira vez em dias, chorei nos braços dele.

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Mais tarde, comecei a escrever novamente no diário que pretendia dar ao nosso filho.

"Hoje ouvi seu coração pela primeira vez. Você está tão pequeno, mas já faz tanto barulho aqui dentro. Eu queria te prometer que vou ficar. Que vamos nos conhecer, que vou te embalar, cantar pra você. Mas não posso mentir. O mundo, às vezes, é cruel. Ainda assim, se eu tiver que escolher entre viver sem te conhecer ou morrer te trazendo ao mundo... eu espero ter coragem pra te escolher."

Fechei o diário com cuidado. As palavras ainda tremiam.

Naquele dia, não decidi nada. Mas comecei a aceitar que, qualquer que fosse minha escolha, ela partiria meu coração ao meio.

E talvez, só talvez, isso fizesse parte do amor de verdade.

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