Duas linhas

Helena

Eu sempre achei que fosse lembrar do dia em que descobrisse minha gravidez como um momento de luz. Imaginava um quarto iluminado, uma música suave no fundo, talvez Daniel entrando com flores e um sorriso bobo no rosto. Mas a vida real não tem trilha sonora nem roteiro bonito. Ela tem o som do trânsito lá fora, o cheiro de álcool do hospital e a textura fria do papel do exame nas mãos.

Estava atrasada, e isso já me deixava inquieta. Como pediatra, sempre fui regulada com meu próprio corpo — não por vaidade, mas por necessidade. Sabia que algo estava diferente. Os seios sensíveis, o cansaço, a náusea leve de manhã. Mas eu tinha medo de acreditar.

Foi numa sala de plantão, entre uma troca de prontuário e um telefonema, que a enfermeira amiga me entregou o resultado. Positivo. Grávida. Duas linhas. Aquelas benditas duas linhas cor-de-rosa que eu já tinha tentado encontrar tantas vezes antes. O coração disparou. Pela primeira vez em muito tempo, eu me permiti sorrir sem medo.

"É real", sussurrei, como se dissesse a mim mesma para acreditar. "Você está aqui."

Meu primeiro impulso foi ligar para Daniel, mas alguma coisa me travou. Não queria contar por telefone. Queria ver o rosto dele, o susto nos olhos, a alegria atravessando o corpo. Queria guardar aquela reação para sempre.

Voltei ao meu consultório e me sentei ali, sozinha, por alguns minutos. Observei meu reflexo no vidro da janela. Os olhos brilhando. As mãos tremendo. Por mais que estivesse feliz, algo pesava em mim. Um incômodo estranho na região lombar que já se arrastava há semanas. Eu vinha atribuindo à rotina puxada, noites mal dormidas e estresse.

Mas naquele dia, talvez guiada por um sexto sentido — ou por aquele pressentimento mudo que só as mulheres têm — pedi para um colega dar uma olhada. Era só para garantir.

O doutor Álvaro, clínico experiente e amigo desde os tempos de residência, me atendeu com aquele sorriso calmo que sempre usava com os pacientes. Fez algumas perguntas, pediu exames. Achou que valia a pena fazer uma ultrassonografia abdominal.

Fui para a sala de imagem sem muito alarde. Estava cansada, sim, mas grávida. Provavelmente meu corpo só estava se adaptando. Quando deitei na maca e senti o gel frio espalhar-se pela pele, pensei no bebê. Será que já estava implantado? Será que era por isso que o corpo reclamava?

O silêncio durante o exame me incomodou. Vi Álvaro franzir o cenho, o movimento lento da sonda se repetindo sobre a mesma área. Conhecia aquele tipo de hesitação. E quando ele tirou os olhos da tela e olhou para mim, soube. Antes mesmo de ouvir qualquer palavra, soube.

"Helena… a gente vai precisar conversar."

Sentei na sala dele com as pernas bambas. Ele me explicou devagar, com cuidado. Achara uma massa. Uma formação densa, mal delimitada. Os exames de sangue mostravam marcadores alterados. As chances de ser maligno eram altas.

"É o tipo silencioso, infelizmente. Cresce sem muitos sintomas até estar em estágio avançado."

Minhas mãos suavam. As palavras dele ricocheteavam dentro da minha cabeça. Câncer. Grávida. Tratamento. Escolha.

"O protocolo recomenda ação imediata, Hel. Quimio, talvez cirurgia. E você sabe… não dá para manter a gravidez nessas condições."

Eu ouvia tudo, mas não ouvia nada. Só via o rosto de Daniel, sua expressão ao receber a notícia. Só sentia o pequeno coração que, talvez, já batia dentro de mim.

Voltei pra casa em câmera lenta. O caminho até o metrô parecia mais longo, o barulho das buzinas mais alto. Lembrei de uma senhora que segurava uma flor na mão. Do menino que cantava no vagão. Do cheiro de pão de queijo vindo de uma padaria na esquina da Paulista. O mundo seguia. Mas o meu mundo parava ali.

Daniel estava em casa mais cedo, como num alinhamento de destino. Estava sentado no sofá, com um processo jurídico espalhado no colo. Leu a mesma frase três vezes sem perceber minha presença. Quando me viu, sorriu. E esse sorriso quase me desmoronou.

"Oi, meu amor. Chegou cedo."

"Precisava falar com você."

Sentei ao lado dele. As palavras se engasgaram na garganta, mas consegui começar pela única parte boa.

"Estou grávida."

Ele congelou. O processo caiu do colo. Depois, os olhos se arregalaram e ele me puxou num abraço apertado, como se não fosse me soltar nunca mais.

"Meu Deus… Helena. Sério? A gente conseguiu?"

"Sim. Nós conseguimos."

Ele chorou. Eu também. Foi o momento mais puro da nossa história. Mas durou pouco.

"Daniel… também descobri hoje que estou doente. Um tumor. Avançado."

A alegria se desfez no rosto dele. Parecia que tinham arrancado o ar da sala. Expliquei tudo. Os exames. A urgência. As opções.

"Se eu quiser viver, preciso tratar agora. Mas isso significa interromper a gravidez."

Ele não respondeu. Se afastou um pouco. Passou as mãos pelo rosto. Depois me olhou.

"Você tem que viver. A gente pode tentar de novo."

"Não é tão simples. E se esse for o único filho que eu puder ter?"

"Mas você é mais do que uma gestação, Helena. Você é tudo pra mim. Não posso te perder."

Respirei fundo. Já sabia que seria assim. Daniel era razão, lógica, sobrevivência. E eu… eu era emoção, vínculo, instinto. Olhei para ele, com lágrimas nos olhos.

"Mas e se eu quiser ficar com ele até o fim, mesmo que seja o meu fim?"

Daniel me encarou em silêncio. O mesmo silêncio que carregava desde que saí do consultório.

E naquele instante, talvez, um pedaço de nós dois tenha começado a se romper.

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