A escolha

Helena

O silêncio depois da minha pergunta foi tão pesado que doeu no peito. Daniel não respondeu. Apenas me olhou — um olhar que eu conhecia tão bem, mas que agora era diferente. Tinha medo. Tinha incredulidade. Tinha raiva contida.

— Helena… — ele começou, mas a voz falhou. Ele passou as mãos pelo cabelo e se levantou, caminhando de um lado para o outro da sala como se as palavras estivessem presas em algum lugar do corpo. — Você não pode estar falando sério.

— Eu estou.

— Você tá me dizendo que vai escolher... — ele engoliu seco —... morrer? Pra carregar uma gravidez que pode não dar certo? Que pode te matar antes de nascer?

— Estou dizendo que eu não sei ainda o que fazer. Só que... eu senti. Daniel, eu senti esse bebê dentro de mim. É pequeno, quase nada, mas é vida. É o nosso filho.

Ele se virou pra mim. Os olhos vermelhos, mas secos. Daniel não chorava fácil. Quando fazia, era de dor profunda.

— E você é a minha esposa. A mulher que eu amo. A mulher que eu planejei envelhecer ao lado. E você tá me dizendo que prefere morrer... — ele baixou a cabeça, frustrado — ...do que tentar lutar?

— Eu não prefiro morrer. Mas eu não sei se consigo tirar essa vida de mim. Você entende? Não é simples. É como se eu já estivesse ligada a ele.

Daniel se ajoelhou à minha frente. Pegou minhas mãos com força, quase como se quisesse me segurar aqui na Terra.

— Amor, você é médica. Sabe como isso funciona. O tratamento é urgente. Cada dia que passa, esse tumor cresce. Cada dia sem agir é um passo mais perto de...

— Da morte. Eu sei. Eu sei muito bem.

Ele se calou. E naquele silêncio, eu senti: ele estava desesperado. Mas, ainda assim, racional. Porque era assim que ele lidava com o mundo. Resolvia problemas, pesava prós e contras, fazia o que precisava ser feito. E agora ele me via como o problema que precisava resolver.

— Eu... preciso pensar — sussurrei, levantando do sofá.

— Não temos muito tempo, Helena.

— Eu sei.

Fui para o quarto e fechei a porta devagar. Não dormi. Apenas fiquei ali, deitada, encarando o teto, com a mão sobre o ventre, como se pudesse proteger aquela pequena existência dentro de mim.

---

O dia seguinte chegou como um peso nos ombros. O céu cinza de São Paulo parecia acompanhar o clima dentro de casa. Levantei cedo, preparei café em silêncio. Daniel entrou na cozinha com olheiras e camisa amarrotada. Nos olhamos, mas nenhum de nós disse “bom dia”.

Ele pegou uma caneca, se sentou e finalmente falou:

— Marquei uma consulta com o oncologista para amanhã. A primeira que consegui.

Meu coração apertou.

— Você marcou?

— Sim. Eu sei que você ainda não decidiu, mas isso não pode esperar. A gente precisa entender o estágio, o tipo exato, as chances.

Assenti com a cabeça. Tinha razão. Saber mais não significava escolher ainda.

— Eu vou — respondi.

Daniel parecia aliviado por um segundo, mas o clima entre nós ainda era denso, quase irrespirável.

— E você contou pra alguém? — ele perguntou.

— Ainda não. Não quero ninguém opinando. Já tem você pra isso.

A resposta saiu mais dura do que deveria. Ele me olhou, ferido.

— Eu não tô opinando, Helena. Eu tô tentando te salvar.

Fechei os olhos, respirei fundo. Minha cabeça latejava. Cada palavra trocada entre nós virava uma rachadura. E por mais que ainda estivéssemos ali, casados, havia uma distância nova e dolorosa se formando.

— Desculpa. Eu sei que você quer o melhor. Mas... às vezes parece que você já decidiu por mim.

— Porque é óbvio. Eu não tô falando de egoísmo, tô falando de sobrevivência. A gente pode ter outro filho, adotar, fazer tratamento depois. Mas você não é substituível.

— E se for o único? — perguntei. — E se, ao escolher me salvar agora, eu nunca mais puder gerar outra vida?

— E se você morrer tentando mantê-lo e eu tiver que enterrar você? Você quer isso?

— Eu quero que alguém pense no que eu sinto! No que esse bebê já representa pra mim!

— Eu penso. Mas eu também tenho que pensar no depois. No que sobra.

Silêncio de novo. Terminamos o café sem mais palavras. Cada um se vestiu e foi para o trabalho como se fosse um dia normal. Mas não era. Nunca mais seria.

---

No hospital, tudo parecia mais frio. Os corredores, as luzes, os sorrisos dos colegas. Os pacientes infantis continuavam me chamando de “tia Helena”, mas eu não conseguia sorrir da mesma forma. O mundo não parava porque eu estava em crise.

Na hora do almoço, me tranquei na sala de descanso. Peguei meu celular e comecei a gravar uma nota de voz, sem pensar muito. Era como se eu estivesse falando com alguém que entendesse.

— Oi, meu amor... — minha voz saiu trêmula. — Eu ainda não sei seu nome, seu rosto, seu som... mas sei que você tá aqui. Dentro de mim. E é estranho, porque eu ainda não te conheço, mas já amo você como se conhecesse. Estou com medo. Muito medo. Porque pra te manter, posso ter que me perder. E eu não sei se sou forte o suficiente pra isso. Mas você precisa saber... eu estou tentando. Por nós dois.

Parei a gravação. Salvei. Talvez um dia ele ouvisse. Talvez nunca. Mas naquele momento, eu precisava falar.

O resto da tarde passou arrastado. Antes de ir embora, passei na maternidade e observei, pela janela, uma mãe embalando seu recém-nascido. Era uma cena tão cotidiana, mas agora, parecia quase inalcançável pra mim.

---

À noite, em casa, Daniel estava no quarto, mexendo no notebook. Me aproximei devagar, sentei ao lado dele.

— Desculpa por mais cedo.

Ele fechou o computador. Virou-se pra mim.

— Eu também. Eu tô tentando lidar com isso, Hel. Mas... a ideia de te perder me destrói.

— E a ideia de perder esse bebê me despedaça também.

Ficamos em silêncio. Ele estendeu a mão e tocou minha barriga. Foi a primeira vez que ele fez isso desde a notícia.

— Eu queria que isso fosse mais simples.

— Também queria.

Nos abraçamos, mas havia algo novo entre nós: o peso da dúvida, da urgência, da escolha.

E o tempo — cruel e impiedoso — seguia passando.

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Cicera Santos

Cicera Santos

nossa que situação a dela

2025-05-09

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