A cirurgia terminou com sucesso. O paciente estava estável, mas eu, não.
Guardei os instrumentos em silêncio. Cada movimento era uma tentativa desesperada de ignorar o passado que insistia em se deitar ao meu lado como uma sombra.
Caio se aproximou, tirando as luvas com calma forçada.
— Você foi excelente. Como sempre. — disse ele.
— Poupa seu discurso, Caio. Isso aqui não é o Brasil. E eu não sou mais a mulher que você manipulava com elogios entre as quedas.
Ele suspirou, apoiando-se na bancada de inox. Os olhos baixos. O tom mudou. Mais sincero. Mais cruel.
— Você foi embora como se eu fosse um monstro, Amora. Nunca me deu a chance de explicar, de tentar consertar.
— Porque não se conserta o que foi feito pra ferir. Você controlava tudo. Meu tempo, minhas amizades, até a roupa que eu vestia. E quando eu começava a crescer... você puxava o tapete.
Ele ficou em silêncio por um instante. Depois ergueu os olhos, úmidos.
— Eu te amava. Só não sabia como lidar com o medo de te perder.
— Então preferiu me quebrar pra ter certeza de que eu nunca voaria. — minha voz estava firme, mas por dentro, cada palavra me cortava.
Ele se aproximou um passo. Eu não recuei.
— Eu estou tentando mudar. Vi você aqui, nesse hospital, nesse país... e percebi que você não me pertence mais. E isso doeu.
— Não, Caio. Eu nunca pertenci a você. Eu lutei pra me libertar. E agora, você apareceu justo quando eu começava a respirar. — meus olhos se encheram, mas não deixei as lágrimas caírem. — Não é coincidência. É teste.
Foi aí que o som de passos parou atrás da porta entreaberta.
Me virei devagar.
Guilherme.
Imóvel. Olhar cravado em mim. Nenhuma expressão no rosto, mas nos olhos... havia algo.
Ele tinha escutado tudo.
Caio também viu.
— Então é por isso... — disse ele, com um riso amargo. — Você já tem alguém. Alguém que nunca precisou te ferir pra te admirar.
— Isso não tem a ver com ele. Tem a ver comigo. Com o que eu não vou permitir que se repita.
Guilherme deu um passo para trás, como quem respeita o espaço... ou como quem acaba de encontrar uma ferida que não sabia que doía.
Sem dizer nada, ele se virou e se afastou pelo corredor.
Eu fiquei ali. Com a respiração presa e o peito em ruínas.
Porque às vezes, quando o passado volta, ele não quer respostas. Ele quer roubar tudo o que o presente ainda está tentando construir.
A porta se fechou com um leve estalo. Mas o som ecoou dentro de mim como um trovão.
Guilherme tinha ido embora. Silencioso. Rápido demais para o homem que sempre sabia o que dizer — mesmo quando não dizia nada.
Caio me lançou um olhar que misturava arrependimento e ressentimento.
— Parece que agora dói dos dois lados — ele murmurou.
Não respondi. Apenas saí da sala, ignorando tudo ao meu redor. Corredores. Vozes. A enfermeira que me chamou. O aviso no painel.
Meu corpo andava no piloto automático, mas minha mente... estava em chamas.
Encontrei um banheiro vazio no final do corredor dos médicos. Tranquei a porta. Encostei na parede fria e deixei o ar escapar. Um soluço silencioso.
Eu não queria que ele ouvisse aquilo. Não daquele jeito.
Não era sobre Caio. Não mais.
Era sobre mim tentando ser forte o tempo todo... e falhando quando mais precisava.
Minutos depois, com o rosto lavado e o coração ainda pesado, voltei ao meu setor. Esperando que Guilherme estivesse longe, ocupado demais para se importar com dramas pessoais.
Mas quando passei pela ala administrativa, vi a porta do escritório dele entreaberta.
E ouvi vozes.
— Ela tem talento, mas mistura emocional demais nas decisões. — uma voz masculina. Chefe de residência. — O episódio com o novo residente pode afetar o desempenho da equipe.
Silêncio.
Depois, a voz grave de Guilherme.
— Ela é mais forte do que qualquer um aqui dentro. O que aconteceu... não é da conta de ninguém.
— E se ela desestabilizar?
— Então eu seguro. — ele disse, firme. — Mas não encoste nela.
Meu coração apertou.
Eu queria entrar. Falar algo. Dizer que não precisava ser protegida. Que aguentava. Que ele não devia se envolver.
Mas no fundo, eu queria exatamente aquilo.
Ser vista. Ser defendida. Ser importante.
Dei um passo para trás. Não entrei.
Porque às vezes, o amor começa assim — no silêncio de uma porta entreaberta, onde o mundo inteiro se resume à forma como alguém pronuncia o seu nome quando você não está presente.
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Atualizado até capítulo 111
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