No dia seguinte, o hospital parecia mais frio do que o normal. Talvez fosse o cansaço acumulado ou o peso da noite anterior. Talvez fosse o colar em meu bolso, que eu ainda não conseguia devolver.
Guilherme não apareceu. Nenhum rastro, nenhuma mensagem, nenhum olhar nos corredores.
E, por algum motivo que eu me recusava a admitir, isso me incomodou.
— Dra. Dias, recepção agora. — a voz da secretária soou pelo comunicador interno.
Achei estranho. Ainda era cedo, e meu turno só começaria dali a meia hora. Mesmo assim, fui.
E então parei.
Como se meu corpo tivesse congelado.
Ali, na recepção, em meio a pacientes e enfermeiros, estava ele.
Caio.
O nome que eu tinha deixado no Brasil. O homem que eu enterrei junto com uma parte da minha alma.
— Amora... — ele disse, como se aquele som ainda tivesse poder sobre mim.
Meus joelhos ameaçaram ceder.
Alto, aparência de bom moço, olhos que um dia foram abrigo e depois viraram tempestade. Ele ainda tinha aquele ar de inocência que enganava a todos — menos a mim. Não mais.
— O que você está fazendo aqui? — sussurrei, tentando manter o controle.
— Eu fui transferido. Residência internacional. Cheguei ontem. Só hoje vi seu nome na lista de residentes. — Ele parecia feliz. Como se aquilo fosse uma coincidência poética.
Mas para mim, era um pesadelo.
— Isso não é possível. — minha voz falhou.
— É real. E, Amora... eu não vim pra te atrapalhar. Eu vim... porque preciso de uma segunda chance. Com você. Com tudo.
Não. Não agora.
Tudo o que eu construí, todo o esforço para recomeçar, a barreira emocional que Guilherme mal começava a atravessar… tudo isso ameaçado por um nome que eu quis esquecer.
Caio era o meu ponto fraco.
E agora, ele estava ali. No mesmo hospital. No mesmo turno.
E, pior, já havia sido designado para trabalhar comigo na próxima cirurgia.
Meu corpo reagia antes da razão. Respiração curta. Coração acelerado. As palavras de Caio soavam como vidro arranhando uma lousa. Incômodas, familiares e perigosas.
— Você não devia estar aqui. — minha voz saiu firme, mas baixa, como se eu tentasse me proteger de mim mesma.
— Amora, escuta... — ele tentou se aproximar.
Dei um passo para trás.
— O que passou entre a gente acabou. Não há espaço pra isso aqui. Não mais.
Ele parou. E, por um segundo, o sorriso dele sumiu. Vi algo mais real nos olhos dele — talvez arrependimento. Talvez manipulação. Eu já não sabia mais distinguir os dois nele.
— Eu mudei — disse ele, baixando a voz. — Eu passei por coisas difíceis também. A gente terminou de um jeito...
— Você destruiu tudo, Caio. — cortei, olhando diretamente para ele. — Não tenta romantizar o que foi abuso emocional disfarçado de amor.
Ele não respondeu. Apenas engoliu em seco.
Eu me virei e fui embora, os passos duros no chão ecoando como um aviso: não se aproxime.
Mas o hospital não perdoa sentimentos mal resolvidos. E nem o destino.
Horas depois, fui chamada para auxiliar em uma cirurgia de emergência. Paciente grave, múltiplas fraturas, risco iminente de hemorragia interna.
Entrei na sala cirúrgica... e lá estava ele.
Caio.
Pronto. Vestido de azul. Luvas nas mãos. Olhar direto no meu.
— Vamos trabalhar juntos hoje — disse ele, como se nada tivesse acontecido. — O chefe de cirurgia me colocou como responsável pela equipe. Preciso de você como minha segunda.
Engoli o desconforto como se fosse um comprimido amargo. Profissionalismo. Foco. O paciente precisava de mim mais do que meus traumas.
Durante a cirurgia, mantivemos as falas técnicas. Precisão, ritmo, cortes limpos. Como se fôssemos dois estranhos com memória muscular.
Mas a tensão entre nós era palpável. E então, senti.
Um olhar. Do lado de fora da sala de cirurgia, através do vidro da galeria de observação. Ele.
Guilherme.
De braços cruzados. Imóvel. Observando.
Não sei há quanto tempo estava ali. Nem o que estava vendo.
Mas meus olhos encontraram os dele. Por um segundo. Um segundo eterno.
E naquele olhar, eu entendi.
Ele sabia que algo havia mudado.
E talvez... não estivesse disposto a dividir o espaço que antes era só dele — mesmo que nunca tivesse dito isso em voz alta.
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Atualizado até capítulo 111
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