Cicatrizes do Coração
O frio cortava minha pele como navalhas finas. Suíça. Eu ainda repetia isso mentalmente, tentando acreditar que realmente estava ali, com duas malas, um diploma na mão e um passado que eu fingia ter deixado para trás.
O hospital era maior do que imaginei. Vidro, aço e precisão. Quase como um organismo perfeito — até eu entrar. Porque nada em mim estava em equilíbrio.
— Dra. Amora Dias? — a voz da secretária me arrancou do transe. Assenti.
Ela sorriu, polida, e me guiou pelos corredores brancos como se carregasse um fantasma ao lado. Talvez carregasse. Meus passos ecoavam, pesados, como o silêncio que havia entre minha última cirurgia no Brasil e o embarque que me trouxe até aqui.
— O diretor geral gostaria de recebê-la pessoalmente — disse ela, ao parar diante de uma porta de madeira escura.
Não esperava isso. Eu era só uma residente. Nova. Estrangeira. E com os nervos à flor da pele.
Quando a porta se abriu, minha respiração falhou por um instante.
Ali estava ele.
Traje sob medida, postura de quem comanda o mundo com um gesto. Cabelos levemente grisalhos, olhar firme, expressão impenetrável. Guilherme Montenegro.
Ele não se levantou. Apenas me observou, como se lesse tudo que eu tentava esconder.
— Seja bem-vinda ao St. Claire, doutora Dias. — Sua voz era grave, precisa. — Espero que esteja preparada para o que esse hospital exige.
Não respondi de imediato. Fui treinada para manter a compostura, mas por dentro, algo em mim cedeu. Não foi pelo cargo dele, nem pelo sotaque leve que traía sua origem brasileira. Foi pelo olhar. Pela sombra nos olhos dele que parecia reconhecer a minha.
— Estou, senhor Montenegro. — E menti com a voz mais firme que consegui.
Ele assentiu, mas algo em seu olhar dizia que não acreditava.
Naquela sala fria, com o mundo girando em outro idioma do lado de fora, dois estranhos com feridas invisíveis se encontraram.
E nada mais seria o mesmo.
Eu ainda estava ali, de pé, tentando não desviar o olhar daquele homem que parecia ter saído de outro tempo — ou talvez de um daqueles pesadelos que começam bonitos e terminam com você acordando no meio da noite.
Guilherme Montenegro era o tipo de homem que não precisava gritar para ser ouvido. Sua autoridade estava no silêncio. E esse silêncio, naquele momento, dizia tudo: ele queria saber se eu era mais uma jovem médica que quebraria no primeiro plantão ou se eu sobreviveria aos dias gelados e às madrugadas impiedosas do St. Claire.
— A senhora fala cinco idiomas? — ele perguntou, passando os olhos por meu currículo em um tablet fino demais para caber tanta expectativa.
— Se contar o sarcasmo, talvez seis — respondi antes de pensar.
Ele ergueu uma sobrancelha. Por um segundo, jurei ter visto um rastro de sorriso, mas desapareceu tão rápido quanto surgiu.
— Espero que use apenas os úteis por aqui — disse, seco, voltando a deslizar o dedo pelo visor.
Silêncio.
Meus dedos se entrelaçaram atrás das costas, um truque que aprendi nos anos de residência. Quando você não sabe onde guardar o medo, esconda as mãos.
— Veio sozinha?
A pergunta me pegou de surpresa. Não era profissional. Não exatamente. Mas o tom era neutro, protocolar. Ainda assim, senti o peso dela. Como se ele soubesse que a solidão não era uma opção, mas uma condição.
— Vim. — respondi. — Sempre fui boa em viajar leve.
Dessa vez, ele me encarou mais fundo. Como se soubesse que o que eu deixei para trás não cabia em duas malas.
— Então, Dra. Dias — ele se levantou com a calma de quem tem o mundo sob os pés —, espero que o St. Claire esteja à altura das suas expectativas.
— E eu espero estar à altura do hospital.
Ele caminhou até mim. Alto. Presença firme. Parou a poucos passos. Não invadiu meu espaço — dominou ele.
— Veremos.
E então, estendeu a mão. Grande. Quente. Firme.
Apertei a dele. Por um instante, senti como se algo dentro de mim tivesse se quebrado — ou despertado.
Quando saí da sala, percebi que não era só o frio lá fora que me fazia tremer.
Era o pressentimento de que nada na minha vida permaneceria intacto depois daquele encontro.
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Atualizado até capítulo 111
Comments
Veranice Zimmer Ferst
que pena não tem fotos do os personagens??
2025-05-08
1
Sônia Ribeiro
Já gostei ♥️♥️👏👏👏👏
2025-05-08
1
Fátima Ramos
A história parece boa
2025-05-08
1