O Silêncio da dor

Henrique guiou Isabela até o carro sem dizer uma palavra, o casaco dele ainda envolvendo seus ombros pequenos. A respiração dela era irregular, e o silêncio entre os dois parecia pesar mais do que a noite úmida que os envolvia. As luzes da cidade refletiam nas poças da calçada, e tudo ao redor parecia tão alheio quanto impotente diante da dor que ela carregava no corpo e na alma.

No caminho até o apartamento dele, Henrique manteve os olhos na estrada, mas sua atenção estava nela. Cada movimento retraído, o modo como se encolhia no banco, os dedos agarrando o tecido do casaco como se fosse a única coisa que a impedia de desmoronar ali mesmo. Ele queria perguntar. Queria exigir respostas. Mas sabia que, agora, ela precisava de espaço — e de cuidado.

Ao chegarem, ele abriu a porta com cuidado, acendendo a luz do corredor e guiando-a para dentro. O apartamento tinha um cheiro limpo, acolhedor. Havia ordem nos objetos, mas não frieza. Um lugar vivido, pensado por alguém que sabia cuidar do que era seu.

— O banheiro é ali. — Sua voz saiu baixa, quase gentil demais para o homem que era no trabalho, sempre firme. — Tem toalhas limpas no armário e roupas minhas se quiser usar algo mais seco e quente.

Ela assentiu com um movimento mínimo da cabeça, sem encará-lo. Quando entrou no banheiro, ele a ouviu trancar a porta com um clique quase doloroso.

Henrique soltou um suspiro tenso. Tinha visto o roxo na lateral do pescoço dela quando ela se virou no carro. Tinha visto os pequenos arranhões na mão esquerda. E, quando segurou seu braço para ajudá-la a levantar na calçada, sentiu que havia algo errado ali também — um leve tremor, uma rigidez que não combinava com alguém apenas assustado.

Ele não precisava de explicações para entender.

Enquanto ela tomava banho, ele foi até a cozinha. Colocou água para ferver, separou um chá de camomila com mel e começou a preparar algo leve para comer. Sentia-se inquieto, como se tudo estivesse fora do lugar. As mãos faziam o trabalho automático de cortar frutas, colocar pão no forno, mas os pensamentos voltavam para as marcas no corpo dela... e no que não se via.

Meia hora depois, ouviu a porta do banheiro se abrir. Isabela surgiu enrolada em uma toalha grande, com uma camiseta dele cobrindo até o meio das coxas. Estava descalça, o cabelo úmido preso em um coque torto. Os olhos evitavam os dele, e havia um vazio desconcertante em seu olhar. A mesma garota que tropeçou nos próprios pés tentando fugir, agora caminhava como se tudo ao redor não a tocasse mais.

Henrique não tentou falar de imediato. Apenas estendeu a caneca de chá e apontou para o sofá.

— Senta. Tem comida se quiser.

Ela obedeceu, mas não comeu. Bebeu o chá em silêncio, os dedos enlaçados na caneca quente como se fosse um porto. O vapor subia e escondia parte do rosto, mas não o suficiente para esconder a palidez ou os olhos fundos de alguém que estava no limite.

Henrique sentou-se ao lado, sem encostar nela. A distância entre os dois era medida pelo cuidado — ele sabia que proximidade demais podia ser um gatilho. Mas a vontade de protegê-la, de envolvê-la nos braços, doía no peito como faca.

— Quer dormir aqui hoje? — perguntou, apenas para quebrar o silêncio.

Isabela assentiu, os olhos ainda fixos no chá.

Ele a levou até o quarto de hóspedes. O quarto era simples, mas aconchegante, com lençóis limpos e uma manta dobrada aos pés da cama. Quando ela deitou, ainda sem dizer nada, ele puxou a manta com cuidado, cobrindo suas pernas.

— Se precisar de mim, estou na sala.

Ela não respondeu.

Apagou a luz e fechou a porta com cuidado, como se temesse acordar alguma dor adormecida.

Naquela noite, Henrique não dormiu. Passou horas olhando para o teto, tentando conter a raiva que crescia como uma tempestade no peito. Raiva de não ter chegado antes. Raiva de saber que um desgraçado colocou medo em alguém tão doce. E raiva, principalmente, de não poder fazer nada... ainda.

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O cheiro de café preencheu o ar na manhã seguinte. Henrique havia acordado cedo — ou melhor, se levantado, já que mal pregara os olhos. Estava na cozinha, preparando pão na chapa e ovos mexidos, quando ouviu passos lentos pelo corredor.

Isabela apareceu com os cabelos soltos, ainda visivelmente abatida, mas com um leve tom de cor nas bochechas. O cheiro do café parecia reconectar ela ao mundo real.

— Bom dia — disse ele, com uma voz suave.

Ela murmurou algo parecido e se sentou.

Henrique colocou um prato na frente dela e depois outro para si. Sentaram-se frente a frente, com a mesa entre eles como uma barreira tênue. Ela olhava o prato como se comer fosse uma tarefa árdua, mas acabou dando uma garfada nos ovos.

Ele esperou até que ela terminasse um pouco para então falar, com cuidado:

— Isabela, eu sei que você não quis conversar ontem. E eu respeitei isso. Mas a gente precisa falar sobre o que aconteceu.

Ela levantou os olhos, defensiva, assustada.

— Não tem o que falar. Eu só... só me machuquei.

— Você se machucou — repetiu ele, olhando firme —, mas não sozinha. As marcas no seu braço, no pescoço. Você acha que eu não percebi?

Ela apertou os punhos sobre a mesa. O silêncio que veio depois foi cortante.

— Eu não quero falar disso agora.

— Tudo bem — disse Henrique, respirando fundo. — Mas a gente vai precisar lidar com isso. Hoje, depois do café, eu quero que você vá comigo à delegacia. E depois vamos até sua casa pegar suas coisas.

Ela o olhou, assustada.

— Eu não posso voltar lá. Ele vai... ele vai estar lá.

Henrique segurou a xícara com firmeza, mas controlou a raiva.

— Se ele estiver, é melhor ainda. Eu quero que ele me veja. Que entenda que você não está mais sozinha. Eu não vou deixar que ele te machuque de novo, Isabela.

Ela mordeu o lábio, olhos marejando.

— E se... e se eu não tiver pra onde ir?

Henrique se levantou, foi até a estante e pegou um chaveiro. Colocou sobre a mesa, diante dela.

— Esse é o meu apartamento que fica ao lado deste aqui. Está vazio. É seu, pelo tempo que precisar. E você pode trancar a porta por dentro quantas vezes quiser. Ninguém vai entrar. Ninguém vai encostar em você. Eu prometo.

Isabela olhou para as chaves, para ele, e depois abaixou a cabeça, deixando que as lágrimas finalmente caíssem. Não eram de desespero. Eram de alívio.

E, pela primeira vez, sentiu que estava segura.

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