Capítulo 3

A noite tinha dentes. Eu os sentia me mordendo enquanto saía da mansão sem fazer barulho. Um pé na varanda, o outro no vazio — e então, o salto para além dos portões. Como um predador que escapa da própria jaula.

Não disse nada a Mark. Nem a Olivia. Muito menos a Dante. Eles me dariam sermão, ou pior: mandariam alguém me seguir. E eu precisava estar sozinho. Caçar. Sentir o gosto da vida nas veias de alguém.

O mundo moderno tem cheiro de gasolina, suor e pessoas vazias. Mas o sangue… ah, o sangue ainda é o mesmo. Quente. Cheio de segredos.

Atravessei vielas e avenidas como uma sombra, atraído por sons, cheiros, batidas de corações que sequer sabiam que estavam prestes a silenciar.

Encontrei um deles atrás de uma boate. Um homem de terno, provavelmente um advogado ou algo do tipo, rindo no telefone enquanto fazia xixi num beco escuro. Tão vulnerável. Tão idiota.

A fome me guiou. Rápida. Sutil. Silenciosa.

Minhas presas atravessaram sua pele como se beijassem a vida.

O gosto era amargo. Carregado de ansiedade, cafeína, e culpa de adultério.

Não era o melhor sangue da noite, mas bastava.

Limpei os lábios com o dorso da mão, joguei o corpo para trás do lixo e segui andando.

Foi então que vi as luzes.

Um bar.

O néon pulsava em vermelho e azul, como um coração em agonia. “Skyfall” era o nome. E havia música demais vindo de lá. Conversas demais. Gente demais.

Perigo demais.

Perfeito.

Empurrei a porta com o ombro, e o bar inteiro congelou por um segundo. Todos os olhos caíram sobre mim. Como se o mundo parasse para observar algo que não deveria estar ali.

Homens franziram o cenho. Mulheres arregalaram os olhos.

Algumas bocas se entreabriram.

Outras morderam o próprio lábio.

Caminhei até o balcão como se já fosse dono do lugar.

E foi quando eu a vi.

Sentada com um grupo de mulheres — talvez amigas, talvez espectadoras de um espetáculo sem saberem — estava ela.

Pele morena dourada sob a luz quente.

Cabelos loiros lisos, escorrendo pelas costas como ouro líquido.

Olhos azuis, tão intensos que me deixaram cego por um segundo.

Mas não era apenas a beleza.

Era a sensação.

Aquela impressão de que eu já havia a visto. Que seus traços, seu perfume, os olhos dela, me levavam a outro lugar. Outro rosto.

Algo no peito apertou.

Não a fome.

A Geis.

A borboleta invisível queimou devagar na minha nuca, como se estivesse acordando.

Ela riu de algo que uma das amigas disse, mas seus olhos me notaram.

E quando notaram, pararam.

Como se o tempo tivesse virado líquido e a engolido inteira.

Tirei o casaco devagar e sentei ao lado dela no balcão. O silêncio entre nós era denso como veludo molhado.

Ela piscou duas vezes antes de se forçar a dizer algo.

— Uau… você caiu do céu?

Sorri de canto.

— Não. Saí do inferno pela porta da frente.

Ela riu, um riso tímido e sensual ao mesmo tempo. Como se não soubesse se deveria fugir ou puxar conversa.

— Qual o seu nome, estranho misterioso? — ela perguntou, tocando o copo com a ponta dos dedos.

Eu hesitei. Não costumo dar nomes a presas em potencial. Mas ela não era isso. Algo nela me intrigava. Me chamava.

— Isaac.

— Isaac… — ela repetiu, como se provasse o som com a língua. — Bonito.

— E você?

Ela sorriu de lado. E seus olhos azuis pareceram mais claros, por um instante.

— Ana.

O nome me atingiu como um golpe.

Ana.

Conhecia esse nome. Não da memória — da sensação. Da dor antiga.

Era um nome com cheiro de rosas.

Com um gosto de lembrança.

Mas eu nunca tinha visto Ana antes. Não nessa vida.

Então por que… por que quando olhava nos olhos dela, eu sentia o eco dos olhos de outra pessoa?

Verde.

Verde como floresta.

Verde como maldição.

E por um segundo, eu vi.

O rosto de outra mulher. Mais jovem. Mais selvagem.

Cabelos cacheados. Um riso triste. Um beijo roubado.

Mas era só uma ilusão.

Ou não?

— Você tá bem? — Ana perguntou, tocando meu braço.

O toque foi quente. Real. Intenso.

— Sim — menti. — Só… você me lembrou alguém.

Ela inclinou a cabeça, curiosa.

— Alguém importante?

— Talvez — disse, olhando diretamente para os olhos dela. — Ou talvez alguém que ainda vou conhecer.

Ela corou.

Corar. Que coisa mais humana.

O mundo moderno era podre de artifícios. Mas ela… Ana… parecia tão real que doía.

Conversamos por minutos. Ou horas. Não sei. Ela me contou que trabalhava com moda. Que gostava de escrever poesias nas horas vagas, mas tinha vergonha de mostrar e que tinha uma irmã mais nova que morava no interior do Canadá com a sua mãe.

E eu, como sempre, menti pouco e omiti muito.

Mas uma coisa me perturbava: por que a Geis reagiu a ela?

Por que aquela marca maldita ardia quando ela dizia meu nome?

E por que, nos olhos dela, eu via o rastro de alguém que ainda não conhecia — mas que me conhecia profundamente?

---

O bar começou a esvaziar. As amigas dela foram embora, deixando sorrisos e piscadelas no ar. Ana ficou.

— Você quer me acompanhar até o carro? — ela perguntou, brincando com a chave.

— Claro — respondi, levantando e oferecendo o braço.

Ela o aceitou. E enquanto saíamos, a brisa noturna nos envolveu como um feitiço.

Na rua vazia, perto de um poste quebrado, ela parou.

— Posso te perguntar uma coisa, Isaac?

— Pode.

— Por que eu sinto que você está prestes a fugir?

A pergunta me pegou. Na alma.

Toquei o pescoço, onde a marca ardia.

E respondi com a verdade mais crua que consegui formular.

— Porque talvez... eu esteja.

Ela me encarou. Os olhos azuis dela eram bonitos. Mas não eram os olhos certos.

Não eram os olhos verdes que a minha alma procurava.

Mas ela era um espelho. Uma sombra.

A irmã.

Eu não sabia disso ainda.

Mas o destino já sabia.

E estava sorrindo.

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