O céu de Florença amanhecia com um tom acinzentado, como se a cidade estivesse guardando seus segredos sob uma névoa espessa. Luna acordou antes do despertador, sentando-se na borda da cama com os joelhos pressionados contra o peito. Sonhara de novo. Não com algo claro. Apenas sensações. Um cheiro de pólvora. Um grito abafado. Alguém a chamando por um nome que não era o dela.
Levantou-se, atravessou o pequeno apartamento e abriu a gaveta do criado-mudo. De lá, tirou um caderno velho, de capa azul, com o nome “Aurora” rabiscado na contracapa. Ela não sabia por que ainda o guardava. Encontrou o caderno dentro da mochila que recebeu no orfanato. Nenhuma das outras crianças se chamava assim. Nenhuma cuidadora soube explicar.
“Talvez fosse seu nome verdadeiro”, dissera uma vez uma freira. Mas o tempo passou, e Luna aprendeu que perguntar sobre o passado era como sangrar em mar aberto: atraía o que você não estava pronta para enfrentar.
Enquanto isso, a alguns quarteirões dali, o Valente ainda dormia. Mas Enzo já estava acordado. Sentado em uma das salas do andar subterrâneo, o mafioso olhava para um dossiê aberto sobre a mesa. Marco, como sempre, o acompanhava.
— A filha dos Marcelli sumiu há dezoito anos — dizia Marco, virando uma das páginas. — Supostamente sequestrada por rivais da própria família. Dizem que foi assassinada, deixada em um bordel ou levada para longe, em algum orfanato talvez. Ninguém nunca confirmou.
— E se ela estiver viva? — Enzo perguntou, a voz rouca de quem passou a noite em claro.
— Se estiver... e se for mesmo a herdeira legítima, é a única coisa que impede você de tomar o controle completo do império deles. A única peça faltando.
Enzo passou os dedos pelos cabelos.
— O nome dela?
— Aurora Marcelli. Tinha cinco anos na época. — Marco lhe mostrou uma fotografia antiga. Uma menininha de olhos escuros, cabelos longos e expressão séria demais para a idade.
— Alguma chance dela estar em Florença?
Marco hesitou.
— Muito improvável. Mas... tem algo curioso.
Enzo levantou os olhos.
— A nova garçonete. Luna.
— O que tem ela?
— Quando fui fazer a verificação de rotina, achei estranho que não há certidão de nascimento oficial. Ela foi registrada com um nome falso, entregue a um orfanato no interior da Toscana. E... — ele entregou uma folha — os traços batem com a projeção facial da Aurora com a idade atual.
O silêncio se instalou. Enzo se levantou devagar e foi até a janela. Viu o céu clareando sobre os telhados de telha vermelha, os sinos de uma igreja soando ao longe.
— Se for ela...
— Você sabe o que tem que fazer.
Ele não respondeu de imediato. A imagem de Luna voltou à sua mente. Os olhos dela. A forma como ela desviava o olhar, como se também escondesse algo. Havia uma ferida ali, mas ele não sabia se era a dela... ou a dele.
---
O Valente começou a pulsar de novo quando o dia tomou forma. Luna entrou pelas portas do restaurante ainda com os pensamentos distantes. Havia algo no jeito como Enzo a olhava — não era apenas interesse, era como se ele a reconhecesse de um lugar que ela não sabia ter visitado.
Na sala dos fundos, ela ajudava a organizar os talheres quando Gianni apareceu.
— Luna, hoje você vai servir na área VIP. O chefe quer você lá.
Ela virou-se, surpresa.
— Eu? Mas... achei que ainda fosse cedo pra isso.
— Ordens dele. Só... seja discreta. Os clientes lá não gostam de garçonetes que falam demais.
Ela assentiu, tentando ignorar o frio no estômago.
Quando o turno começou, a seção VIP estava mais cheia que o habitual. Homens engravatados conversavam em vozes baixas, mulheres com joias discretas e olhares calculados examinavam o ambiente como predadoras silenciosas. Luna servia vinho, água com gás, entradas refinadas. Mas a todo momento, sentia o olhar de Enzo em sua direção.
No meio da noite, ele se levantou da mesa onde estava com dois empresários e foi até ela.
— Me acompanhe.
Ela engoliu seco. — Claro, senhor.
Ele a conduziu até o terraço, onde a cidade parecia uma pintura viva sob as luzes da noite. A brisa bagunçou os cabelos dela, e por um segundo, Luna se sentiu vulnerável demais.
— Está gostando do trabalho? — ele perguntou, parando ao lado dela.
— Estou. É um desafio... mas acho que preciso disso.
— E do que mais você precisa?
Ela franziu o cenho. — Por que quer saber?
Enzo a olhou profundamente.
— Porque parece que você está tentando fugir de algo. Mas o que quer que seja... está correndo atrás de você.
Luna desviou o olhar.
— Não sei o que o senhor quer dizer.
— Você sonha com o passado, Luna?
Ela congelou.
— Como...?
— Eu só observo. Você tem olhos de quem não sabe de onde veio. Isso te assusta?
Ela ficou em silêncio.
— Às vezes — confessou. — Tenho a sensação de que algo me foi tirado. Como se eu tivesse sido roubada de mim mesma.
Enzo se aproximou mais um passo. Eles estavam perto demais agora.
— Talvez tenha sido. — murmurou ele.
Luna o olhou, confusa, mas antes que pudesse perguntar, ele se afastou.
— Volte ao salão. Os clientes notam quando uma garçonete desaparece.
Ela obedeceu, mas com o coração acelerado. Algo naquele diálogo parecia mais do que um jogo de palavras.
---
Mais tarde, quando ela voltou ao apartamento, Luna retirou o caderno azul da gaveta novamente. Passou os dedos pelas folhas, procurando algo novo, qualquer pista. E então, no fim de uma das páginas, viu pela primeira vez um desenho infantil: uma mansão cercada por grades, uma torre alta... e um brasão. Três espadas cruzadas sobre um fundo escuro.
Ela nunca tinha notado aquele símbolo antes.
Mas alguém tinha. E agora, esse alguém estava cada vez mais perto
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 46
Comments
Nami/Namiko
Update, please! A história está incrível!
2025-04-24
1
Kelly Sartorio
ele logo vai descobrir
2025-04-30
0