Capítulo 2

O céu de Florença amanhecia com um tom acinzentado, como se a cidade estivesse guardando seus segredos sob uma névoa espessa. Luna acordou antes do despertador, sentando-se na borda da cama com os joelhos pressionados contra o peito. Sonhara de novo. Não com algo claro. Apenas sensações. Um cheiro de pólvora. Um grito abafado. Alguém a chamando por um nome que não era o dela.

Levantou-se, atravessou o pequeno apartamento e abriu a gaveta do criado-mudo. De lá, tirou um caderno velho, de capa azul, com o nome “Aurora” rabiscado na contracapa. Ela não sabia por que ainda o guardava. Encontrou o caderno dentro da mochila que recebeu no orfanato. Nenhuma das outras crianças se chamava assim. Nenhuma cuidadora soube explicar.

“Talvez fosse seu nome verdadeiro”, dissera uma vez uma freira. Mas o tempo passou, e Luna aprendeu que perguntar sobre o passado era como sangrar em mar aberto: atraía o que você não estava pronta para enfrentar.

Enquanto isso, a alguns quarteirões dali, o Valente ainda dormia. Mas Enzo já estava acordado. Sentado em uma das salas do andar subterrâneo, o mafioso olhava para um dossiê aberto sobre a mesa. Marco, como sempre, o acompanhava.

— A filha dos Marcelli sumiu há dezoito anos — dizia Marco, virando uma das páginas. — Supostamente sequestrada por rivais da própria família. Dizem que foi assassinada, deixada em um bordel ou levada para longe, em algum orfanato talvez. Ninguém nunca confirmou.

— E se ela estiver viva? — Enzo perguntou, a voz rouca de quem passou a noite em claro.

— Se estiver... e se for mesmo a herdeira legítima, é a única coisa que impede você de tomar o controle completo do império deles. A única peça faltando.

Enzo passou os dedos pelos cabelos.

— O nome dela?

— Aurora Marcelli. Tinha cinco anos na época. — Marco lhe mostrou uma fotografia antiga. Uma menininha de olhos escuros, cabelos longos e expressão séria demais para a idade.

— Alguma chance dela estar em Florença?

Marco hesitou.

— Muito improvável. Mas... tem algo curioso.

Enzo levantou os olhos.

— A nova garçonete. Luna.

— O que tem ela?

— Quando fui fazer a verificação de rotina, achei estranho que não há certidão de nascimento oficial. Ela foi registrada com um nome falso, entregue a um orfanato no interior da Toscana. E... — ele entregou uma folha — os traços batem com a projeção facial da Aurora com a idade atual.

O silêncio se instalou. Enzo se levantou devagar e foi até a janela. Viu o céu clareando sobre os telhados de telha vermelha, os sinos de uma igreja soando ao longe.

— Se for ela...

— Você sabe o que tem que fazer.

Ele não respondeu de imediato. A imagem de Luna voltou à sua mente. Os olhos dela. A forma como ela desviava o olhar, como se também escondesse algo. Havia uma ferida ali, mas ele não sabia se era a dela... ou a dele.

---

O Valente começou a pulsar de novo quando o dia tomou forma. Luna entrou pelas portas do restaurante ainda com os pensamentos distantes. Havia algo no jeito como Enzo a olhava — não era apenas interesse, era como se ele a reconhecesse de um lugar que ela não sabia ter visitado.

Na sala dos fundos, ela ajudava a organizar os talheres quando Gianni apareceu.

— Luna, hoje você vai servir na área VIP. O chefe quer você lá.

Ela virou-se, surpresa.

— Eu? Mas... achei que ainda fosse cedo pra isso.

— Ordens dele. Só... seja discreta. Os clientes lá não gostam de garçonetes que falam demais.

Ela assentiu, tentando ignorar o frio no estômago.

Quando o turno começou, a seção VIP estava mais cheia que o habitual. Homens engravatados conversavam em vozes baixas, mulheres com joias discretas e olhares calculados examinavam o ambiente como predadoras silenciosas. Luna servia vinho, água com gás, entradas refinadas. Mas a todo momento, sentia o olhar de Enzo em sua direção.

No meio da noite, ele se levantou da mesa onde estava com dois empresários e foi até ela.

— Me acompanhe.

Ela engoliu seco. — Claro, senhor.

Ele a conduziu até o terraço, onde a cidade parecia uma pintura viva sob as luzes da noite. A brisa bagunçou os cabelos dela, e por um segundo, Luna se sentiu vulnerável demais.

— Está gostando do trabalho? — ele perguntou, parando ao lado dela.

— Estou. É um desafio... mas acho que preciso disso.

— E do que mais você precisa?

Ela franziu o cenho. — Por que quer saber?

Enzo a olhou profundamente.

— Porque parece que você está tentando fugir de algo. Mas o que quer que seja... está correndo atrás de você.

Luna desviou o olhar.

— Não sei o que o senhor quer dizer.

— Você sonha com o passado, Luna?

Ela congelou.

— Como...?

— Eu só observo. Você tem olhos de quem não sabe de onde veio. Isso te assusta?

Ela ficou em silêncio.

— Às vezes — confessou. — Tenho a sensação de que algo me foi tirado. Como se eu tivesse sido roubada de mim mesma.

Enzo se aproximou mais um passo. Eles estavam perto demais agora.

— Talvez tenha sido. — murmurou ele.

Luna o olhou, confusa, mas antes que pudesse perguntar, ele se afastou.

— Volte ao salão. Os clientes notam quando uma garçonete desaparece.

Ela obedeceu, mas com o coração acelerado. Algo naquele diálogo parecia mais do que um jogo de palavras.

---

Mais tarde, quando ela voltou ao apartamento, Luna retirou o caderno azul da gaveta novamente. Passou os dedos pelas folhas, procurando algo novo, qualquer pista. E então, no fim de uma das páginas, viu pela primeira vez um desenho infantil: uma mansão cercada por grades, uma torre alta... e um brasão. Três espadas cruzadas sobre um fundo escuro.

Ela nunca tinha notado aquele símbolo antes.

Mas alguém tinha. E agora, esse alguém estava cada vez mais perto

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Comments

Nami/Namiko

Nami/Namiko

Update, please! A história está incrível!

2025-04-24

1

Kelly Sartorio

Kelly Sartorio

ele logo vai descobrir

2025-04-30

0

Ver todos

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