Capítulo 3 - Cicatrizes Silenciosas

Capítulo 3 — Cicatrizes Silenciosas

— Você sabe o que é isso? — perguntou Kael, apontando com o queixo para a tigela de madeira nas mãos.

— Mingau de raiz-do-vento — respondeu Lioren, calmamente. — Com mel silvestre.

Kael encarou a massa cremosa como se ela fosse morder de volta. — Isso parece... ofensa culinária.

— Vai ajudar a fortalecer seus músculos. E tem gosto de infância.

— Infância de quem? De um troll?

Lioren riu e empurrou a tigela nas mãos dele.

— Come.

Kael resmungou, mas obedeceu. Entre uma colherada e outra, observava os movimentos precisos de Lioren, que limpava a bancada da pequena cozinha com delicadeza quase ritual. Cada gesto parecia carregado de cuidado.

— Você sempre foi assim? — Kael perguntou de repente.

— Assim como?

— Cuidadoso. Paciente. Irritantemente gentil.

Lioren ergueu uma sobrancelha. — Irritantemente?

— É. Não sei lidar com isso.

— Talvez precise aprender.

Kael bufou. — Não sei se quero.

— Vai ficar aqui tempo suficiente pra tentar.

Kael baixou os olhos pra tigela. Não respondeu. O silêncio que se seguiu foi denso, mas não desconfortável.

— Você sempre viveu sozinho? — perguntou ele, depois de um tempo.

— Desde que meu mestre morreu. Era um elfo velho, carrancudo. Me ensinou tudo. Inclusive a ficar em silêncio quando não há o que dizer.

— Ele teria te batido por me abrigar, né?

— Com um bastão de carvalho. Mas teria deixado o bálsamo depois.

Kael riu, e a risada saiu mais natural do que ele esperava.

— Estranho — disse. — Rir.

— Você devia fazer mais.

— Pode ser perigoso. Vai que começo a gostar.

Lioren o olhou com aquele mesmo olhar calmo de sempre. Mas havia um brilho diferente ali agora. Algo quase cúmplice.

— Quando quiser rir, pode. Aqui, pelo menos.

Kael ficou em silêncio, mordendo a borda da colher.

---

Mais tarde, Kael pediu para sair. Lioren hesitou, mas cedeu. Caminharam devagar pela trilha estreita entre as árvores. A floresta estava viva outra vez — o som dos pássaros, o farfalhar das folhas, o cheiro fresco da terra.

Kael mantinha o capuz baixo, por precaução.

— Nunca pensei que a floresta dos elfos fosse tão... bonita.

— Ela só mostra isso pra quem não quer destruí-la.

— E você acha que eu quero?

— Acho que você ainda está decidindo quem é.

Kael parou. Olhou para Lioren com um sorriso torto.

— Poético.

— Realista.

— Sabe, você é o primeiro elfo com quem eu falo sem levar uma flechada.

— Eu sou o primeiro elfo que conhece que prefere curar a atacar.

— Isso me assusta mais.

Lioren sorriu de canto. — Tem algo que não te assusta?

Kael ficou sério por um instante.

— Sim.

— O quê?

— Me apegar.

Lioren não respondeu. Continuou andando, deixando o silêncio falar.

---

À noite, Kael teve pesadelos. Lioren acordou com os murmúrios roucos vindo do quarto. Entrou sem bater.

— Kael?

O meio-vampiro se debatia levemente, o rosto contraído em dor, os punhos fechados. Sussurrava nomes. Ordens. Pedidos de socorro.

Lioren se aproximou, sentou-se na beira da cama e tocou seu braço.

— Ei, está tudo bem. Você está seguro.

Kael acordou com um sobressalto, o olhar selvagem. Quase acertou Lioren com o cotovelo.

— Calma! — disse Lioren, segurando o braço dele com firmeza.

Kael arfava, os olhos vermelhos arregalados, o peito subindo e descendo com violência.

— Eles estavam aqui... eu senti...

— Era só um sonho.

— Não era só um sonho.

Lioren não soltou seu braço.

— Eu sei. Mas já passou.

Kael fechou os olhos, envergonhado. — Odeio isso.

— O quê?

— Ser fraco.

— Isso não é fraqueza.

— Então o que é?

— É dor. E você tem direito a ela.

Kael o olhou, e havia algo vulnerável demais naquele olhar. Como se tivesse esperado ouvir isso por anos.

— Você devia ter me deixado morrer.

— Nunca.

Silêncio.

Lioren soltou o braço dele com cuidado.

— Quer que eu fique aqui?

Kael hesitou. Depois assentiu, quase imperceptível.

Lioren puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama.

— Obrigado — Kael murmurou, antes de fechar os olhos de novo.

E Lioren respondeu com um sussurro, quase inaudível:

— Você não precisa agradecer por existir.

---

Na última página do dia, Lioren escreveu:

"As cicatrizes dele não estão só na pele. Estão nos olhos, nas palavras, no silêncio. Mas hoje... ele deixou que eu visse um pouco delas. Talvez confiar seja como curar. Demora. Mas começa assim."

— L.

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