Capítulo 2 - O Elfo e o Sangue

Capítulo 2 — O Elfo e o Sangue

— Isso ainda é uma péssima ideia — murmurou Kael, apoiando-se na moldura da porta com dificuldade.

Lioren ergueu os olhos do caldeirão onde mexia uma mistura espessa e aromática. — E, ainda assim, você está em pé, vivo e respirando.

Kael passou a língua pelos dentes, como se estivesse prestes a rebater, mas desistiu. Sentou-se na cadeira com um grunhido de dor.

— Você devia me deixar ir.

— Você não consegue dar dois passos sem cair — Lioren retrucou. — E sua febre ainda não passou. Eu sou teimoso, mas você também.

Kael o encarou. Havia algo nos olhos de Lioren que o desarmava. Talvez fosse aquela calma irritante, ou o jeito como não demonstrava medo. Ninguém olhava pra ele daquele jeito há anos.

— Você sempre acolhe monstros na sua casa?

— Só os que não têm onde cair mortos.

Kael soltou uma risada seca. — Generoso. Ou burro.

— Você repete muito isso. Tenta me convencer ou se convencer?

Kael não respondeu. Seus olhos correram pela cabana — simples, mas aconchegante. Ervas secas penduradas, cristais encantados, livros espalhados. E flores. Havia flores em um vaso perto da janela. Pequenas e azuis, quase transparentes.

— Por que você mora sozinho? — perguntou, sem encarar Lioren.

— Curandeiros seguem a trilha dos espíritos. Meu mestre dizia que a cura requer silêncio, distância. E eu gosto de ouvir a floresta.

— Não tem medo?

— De quê?

— Do que existe lá fora.

Lioren parou por um instante. Mexeu a poção mais devagar.

— Medo, às vezes. Mas não deixo que ele me prenda.

Kael o observou em silêncio. A suavidade com que ele falava... era estranha. Quase desconcertante. Depois de tantos gritos e ordens e ameaças, ouvir alguém falar assim parecia errado. Bom demais pra ser verdade.

— E o que você sabe sobre híbridos?

— Quase nada. Só o que os anciãos contam. Que são imprevisíveis, perigosos. Que não pertencem a lugar nenhum.

— E mesmo assim, me trouxe pra cá.

— Trouxe. E vou te manter aqui até melhorar.

— Você é louco.

— Já ouvi isso antes.

Kael desviou o olhar. As flores da janela. O cheiro das ervas. O calor do caldeirão. Tudo era... calmo demais.

— Ninguém nunca cuidou de mim assim — disse, baixo. — Nem quando era criança.

Lioren não disse nada. Caminhou até ele com uma tigela nas mãos.

— Beba. Vai ajudar com a dor.

Kael hesitou. Pegou a tigela. Cheirou o conteúdo. — Isso tem sangue?

— Tem lavanda, raiz de myrn e essência de limão. Você acha que eu teria sangue por aqui?

Kael deu um gole, cauteloso. Depois outro. Fez uma careta. — Horrível.

— Funciona.

— Você devia abrir uma estalagem de tortura.

Lioren sorriu, sem se ofender. Sentou-se à sua frente.

— Me conta... quem tentou te matar?

Kael pousou a tigela, devagar. Olhou fixamente para Lioren.

— Três caçadores. Homens pagos pra caçar criaturas como eu. Me seguiram por dias. Um deles me reconheceu de um retrato. Disseram que havia recompensa.

— E por que você veio para tão perto da fronteira?

— Porque não tinha mais pra onde correr.

Silêncio. Lioren apertou as mãos sobre o colo.

— Você tem família?

— Tive uma mãe. Ela... sumiu. Meu pai era um vampiro da nobreza. Só me usou pra política. Depois me descartou.

— E agora?

— Agora, só sou uma lembrança incômoda para os dois mundos.

Lioren não respondeu de imediato. Pegou a tigela vazia das mãos de Kael e se levantou.

— Aqui, você é só Kael. E está vivo.

Kael observou as costas dele por um longo momento.

— Você não tem ideia do que isso significa.

 

Naquela noite, Lioren acordou com um barulho seco.

Correu até a sala. Encontrou Kael ajoelhado no chão, ofegante, tremendo.

— O que você está fazendo?

— Preciso... sair — Kael gemeu. — Não posso ficar aqui, Lioren.

— Você mal consegue ficar de pé!

Kael olhou pra ele, os olhos vermelhos em fúria e medo.

— Eles vão me achar. Se ficarem sabendo que você me protegeu... você vai morrer. E não por minhas mãos.

— Eu não tenho medo deles.

— Devia ter!

Lioren se ajoelhou à frente dele. Segurou seus ombros.

— Kael, olha pra mim.

Kael hesitou.

— Eu te encontrei. Eu escolhi te salvar. E enquanto você estiver aqui, ninguém vai te tocar.

Kael fechou os olhos. Algo dentro dele se partiu.

— Você é um tolo.

— Talvez. Mas tolos também têm coragem.

O silêncio caiu como um manto sobre os dois. Só a respiração pesada de Kael preenchia a sala. Lioren, firme. Kael, quebrado.

— Volta pra cama — disse Lioren, por fim. — A febre está subindo de novo.

Kael assentiu, com um aceno quase imperceptível.

Enquanto o ajudava a se levantar, Lioren murmurou, como um sussurro para o próprio coração:

— Nenhuma criatura nasce errada. O mundo é que não sabe onde colocá-la.

 

Mais tarde, quando o meio-vampiro dormia novamente, Lioren escreveu:

"Kael. Um nome curto, carregado demais. Ele tem dor no olhar, garras na voz e feridas no silêncio. Mas hoje, mesmo só por um instante... deixou que eu o tocasse."

— L.

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