Aflição

Domínik e Marta chegaram ao necrotério envoltos por um silêncio pesado, que parecia crescer a cada passo pelos corredores frios e iluminados por luzes pálidas. Um legista os aguardava com um olhar contido, conduzindo-os até uma das salas reservadas. Ao se aproximarem da maca coberta por um lençol branco, Marta segurou forte a mão de Domínik, e ele assentiu com um leve movimento de cabeça. O lençol foi puxado devagar, revelando o rosto pálido e inerte de Jack. Por um instante, o tempo parou — Marta soltou um suspiro entrecortado, levando a mão à boca, enquanto Domínik fechava os olhos com força, como se tentasse afastar a imagem. “É ele,” murmurou, a voz embargada, confirmando o inevitável. Jack estava mesmo ali, diante deles, mas parecia tão distante quanto as memórias que agora doíam mais do que nunca.

Assim que Domínik confirmou a identidade do corpo, Marta desabou. Um grito contido escapou de seus lábios antes que ela se rendesse a um choro profundo, o tipo de dor que rasga por dentro. Abracei-a com firmeza, tentando conter seu tremor, enquanto lágrimas silenciosas escorriam pelo rosto de Domínik ao lado. Fiquei ali por um tempo, oferecendo meu apoio sem palavras, até que ela teve forças para se erguer. Levei-a com cuidado de volta para casa, onde Sally, Luna e Nicholas aguardavam ansiosos. Assim que cruzamos a porta, elas a acolheram imediatamente, envolvendo-a em uma rede de carinho e presença. Marta afundou nos braços de Sally, buscando conforto. Sabendo que ela estaria bem amparada, me afastei em silêncio. Havia algo que precisava ser feito — com o coração pesado, comecei a preparar o funeral daquele que, mais do que um líder, havia sido para mim como um pai.

Com o coração apertado, comecei a cumprir o dever que nunca imaginei ter que realizar. Avisei pessoalmente cada membro do batalhão, um a um, a voz embargada a cada ligação. Também entrei em contato com os amigos mais próximos de Jack, companheiros de longa data, pessoas que ele respeitava e que, como eu, o admiravam profundamente. Todos reagiram com o mesmo pesar, compartilhando o silêncio que dominava o outro lado da linha. Em meio à dor, dediquei-me a preparar um funeral digno da grandeza dele — escolhi flores brancas e lírios, suas favoritas, e mandei fazer coroas de flores com mensagens escritas à mão, vindas de todos que o amavam. No fim da noite, sentei sozinho com papel e caneta, e escrevi um discurso de despedida. Cada palavra escolhida com cuidado, cada frase carregada de tudo o que Jack significava para nós: coragem, honra, e um coração que, mesmo marcado por guerras e perdas, nunca deixou de nos guiar com firmeza e compaixão.

Quando terminei todos os preparativos, respirei fundo e fui até a sala onde Sally, Luna e Nicholas ainda estavam reunidos ao redor de Marta, tentando consolá-la. Com a voz baixa e firme, informei que o funeral de Jack seria no dia seguinte, às 10:00 horas. Eles assentiram em silêncio, o peso da notícia pairando sobre todos como uma sombra densa. Subimos para descansar, cada um recolhido à própria dor. Me deitei, mas o sono nunca veio. O vazio deixado por Jack parecia ecoar em cada canto da casa. Fiquei ali, de olhos abertos, o peito apertado, até que as lágrimas começaram a cair sem que eu pudesse contê-las. Levantei-me em silêncio e fui para o escritório, onde, à luz fraca de um abajur, passei a noite inteira revendo documentos, vasculhando arquivos, relembrando conversas e detalhes... buscando qualquer pista, qualquer brecha que pudesse me levar até o responsável por sua morte. Era como se, entre a dor e a raiva, só restasse uma certeza: eu precisava de respostas. E não descansaria até encontrá-las.

Enquanto meus olhos ardiam de tanto ler e minha mente rodava em círculos, tentando juntar peças soltas, ouvi passos suaves vindo do corredor. Ergui a cabeça, instintivamente alerta. Quando me virei, vi Sally — vestia uma camisola vermelha que balançava levemente a cada passo, o cabelo solto caindo sobre os ombros. Havia cansaço em seu rosto, mas também uma ternura silenciosa. Sem dizer uma palavra, ela se aproximou e sentou-se ao meu lado, em silêncio, como se entendesse sem precisar perguntar. Seus dedos procuraram os meus e, ao entrelaçar nossas mãos, senti um calor inesperado atravessar o peso daquela noite. Fungi discretamente, tentando conter mais uma onda de emoção. Pela primeira vez em horas, não me senti sozinho.

Sally apertou levemente minha mão entre as dela, e com gestos suaves, começou a fazer pequenos carinhos com o polegar, como quem tenta acalmar uma ferida invisível. Aquele toque gentil, firme e silencioso atravessou minha dor como nenhum remédio conseguiria. Suspirei fundo, deixando a tensão escorrer dos ombros, e lentamente apoiei minha cabeça em seu ombro. Ela não se mexeu, apenas inclinou um pouco o rosto sobre o meu, em um gesto protetor e silencioso. O calor da sua presença e a tranquilidade que ela transmitia foram quebrando as barreiras da insônia. Aos poucos, entre o cansaço e o consolo, meus olhos se fecharam e, pela primeira vez naquela noite, a dor cedeu espaço a um sono leve — não sem tristeza, mas com um fio de paz.

A luz suave da manhã começou a invadir o escritório através das cortinas entreabertas, e meus olhos se abriram devagar, ainda pesados pelo cansaço da noite anterior. Aos poucos, percebi a estranha calma ao meu redor — o silêncio, o calor de um corpo junto ao meu. Quando olhei para o lado, vi Sally, ainda adormecida, o rosto sereno e a respiração tranquila. Só então me dei conta de que estávamos deitados no chão, e que ela estava aninhada sobre meu peito, uma das mãos repousando suavemente sobre mim. Meu rosto esquentou na hora, tomado por uma onda de constrangimento. Senti minhas bochechas corarem e, com cuidado, comecei a me afastar, tentando não acordá-la. Me movi devagar, como se qualquer gesto brusco pudesse quebrar aquele momento delicado. Murmurei baixinho para mim mesmo, como se tentasse justificar a mim e ao universo: “Eu… eu não controlo minhas ações quando estou dormindo…” Era a verdade, mas nem por isso me sentia menos exposto.

Desci as escadas em silêncio, os degraus rangendo suavemente sob meus pés, mas sem chamar atenção. Ao chegar perto da cozinha, parei, sem querer interromper a cena diante de mim. Nicholas estava sentado à mesa, concentrado em um livro, os olhos grandes e atentos percorrendo as páginas com curiosidade inocente. Ele parecia alheio a tudo ao redor, completamente imerso na leitura. Ao seu lado, Luna o observava com um sorriso suave e apaixonado, os dedos deslizando com delicadeza pelos cabelos negros do garoto, como quem cuida de algo precioso. Havia ternura no toque dela, uma presença serena que preenchia o ambiente de uma forma que palavras não poderiam descrever. Nicholas, absorto, não percebia nada além das linhas do livro — e talvez fosse melhor assim. Fiquei ali por um momento, observando os dois, sentindo um estranho misto de paz e saudade. Era um fragmento raro de leveza em meio à tempestade que ainda nos cercava.

Depois de alguns instantes observando em silêncio, achei melhor me anunciar antes que parecesse um intruso. Limpei a garganta e tossi levemente, apenas o suficiente para chamar atenção. Luna sobressaltou-se levemente, afastando a mão dos cabelos de Nicholas com um gesto rápido, e quando olhou para mim, vi seu rosto corar de imediato. O sorriso envergonhado dela disse mais do que qualquer explicação. Já Nicholas, alheio ao constrangimento no ar, apenas levantou os olhos do livro e me cumprimentou com um breve aceno de cabeça, tranquilo como sempre. Assenti de volta, com um meio sorriso, e entrei na cozinha, carregando comigo a estranha mistura de cansaço, ternura e o peso do dia que estava apenas começando.

..

Me aproximei da mesa com um leve sorriso e disse, em um tom calmo: “Vamos preparar o café da manhã juntos?” Nicholas deu um pequeno aceno e fechou o livro com cuidado, enquanto Luna ainda parecia se recompor, mas logo levantou e foi até a bancada, disfarçando o rubor com um leve sorriso. Cada um pegou algo para fazer — ovos, torradas, café — e por alguns minutos nos movemos em harmonia silenciosa, como uma família improvisada tentando encontrar normalidade no caos. Pouco depois, ouvi passos na escada e vi Sally descer, ainda com os olhos um pouco inchados pelo cansaço, mas com um sorriso gentil ao nos ver reunidos. Sem dizer nada, se juntou a nós, pegando algumas xícaras. Marta veio em seguida, o rosto pálido e o olhar distante, mas firme. Sentamos todos à mesa. Ninguém disse uma palavra. O silêncio era espesso, mas não era vazio — era o tipo de silêncio que respeita a dor e, ao mesmo tempo, oferece presença. E assim, naquela manhã de despedida, compartilhamos o café como quem compartilha luto: juntos, mas calados.

Após o café, nos vestimos em silêncio, cada um lidando com a própria dor de forma contida, como se o simples ato de se arrumar para o funeral tornasse tudo ainda mais real. Entramos no carro juntos, a estrada até o cemitério parecendo mais longa do que de fato era, envolta por um silêncio carregado de lembranças. Quando chegamos, fui tomado por uma emoção difícil de descrever — tudo estava perfeitamente organizado, do jeito que Jack merecia. As coroas de flores ladeavam o caixão com elegância silenciosa, e o perfume suave dos lírios preenchia o ar como uma última homenagem viva. Cadeiras alinhadas, rostos conhecidos do batalhão, velhos amigos, todos presentes, todos de pé, todos com os olhos baixos. O céu estava nublado, mas sem chuva, como se até ele respeitasse o momento. Era um cenário bonito, sereno e forte — exatamente como Jack sempre foi. E, por um instante, o mundo pareceu parar para homenagear aquele que, em vida, foi muito mais que um comandante.

Enquanto caminhávamos em direção ao local da cerimônia, meus olhos percorriam os rostos entre os presentes até que, de repente, congelei no lugar. Meus pés travaram no chão e o coração disparou como um alarme dentro do peito. Ali, parado ao lado de Ana Júlia, estava William Colcci — sua presença era uma mancha escura no que deveria ser um momento de paz. Meu olhar se fixou nele como uma lâmina, e a raiva subiu com força, queimando por dentro. Meu rosto esquentou e meus punhos se cerraram instintivamente. Sally, percebendo minha mudança imediata, segurou firme meu braço, tentando me conter. “Não aqui… não agora,” ela sussurrou, com a voz baixa e firme. William também notou — seus olhos encontraram os meus, e por um instante, sua expressão mudou. Havia ali algo mais do que arrogância: havia fúria. Ele não gostou de me ver com Sally. Seu maxilar travou e os olhos se estreitaram, como se aquilo o atingisse mais do que qualquer palavra poderia. O clima ao redor esfriou repentinamente, e o funeral de Jack, mesmo rodeado de beleza e respeito, agora também carregava a tensão de um acerto que ainda estava por vir.

Sally não soltou meu braço nem por um segundo, permanecendo firme ao meu lado enquanto caminhávamos em direção ao caixão. Sua presença, serena e determinada, era um contraste ao turbilhão que crescia dentro de mim — e, ao mesmo tempo, uma âncora. A proximidade dela parecia ser uma afronta direta para William. Notei de relance o modo como ele nos observava: os olhos faiscando, o maxilar rígido, os punhos levemente cerrados ao lado do corpo. Ana Júlia murmurou algo a ele, mas ele sequer reagiu — estava focado em nós, ou mais precisamente, nela. A cada vez que Sally se aproximava mais, repousando a mão com gentileza no meu braço ou trocando um olhar cúmplice comigo, a raiva de William se tornava mais visível, quase palpável. Era como se o simples fato dela estar ali, escolhendo permanecer comigo naquele momento, fosse uma ferida aberta para ele. E mesmo sentindo a tensão se acumular no ar, respirei fundo e mantive a postura. Aquele era o funeral de Jack — e ninguém, nem mesmo William, estragaria a última homenagem ao homem que tanto significou para nós.

No meio de toda aquela tensão, avistei Marta próxima ao caixão, os olhos marejados enquanto observava em silêncio a despedida daquele que foi seu grande amor. Me aproximei com calma e a envolvi em um abraço apertado, sincero, tentando passar a ela um pouco da força que eu mesmo mal conseguia sustentar. Ela se desfez em meus braços por um instante, o choro vindo baixo e contido, e eu apenas fiquei ali, firme, amparando-a como podia. Sally permaneceu ao meu lado o tempo todo, sua mão ainda segurando a minha, como um lembrete silencioso de que eu não estava sozinho. Nicholas e Luna se mantinham próximos, em respeito e solidariedade, como se formássemos um pequeno círculo de apoio em meio ao luto e à tensão que pairava no ar. Juntos, em silêncio, formávamos uma presença sólida ao redor de Marta, protegendo-a com nossa dor compartilhada e com o carinho que Jack tanto prezava. E mesmo com os olhos de William ainda queimando à distância, naquele momento tudo o que importava era honrar quem havíamos perdido — como ele merecia: com união, respeito e amor.

...

Enquanto ainda abraçava Marta, percebi a aproximação de William e Ana Júlia pelo canto do olho. Um incômodo imediato tomou conta de mim, como uma presença indesejada invadindo um espaço sagrado. Ana Júlia chegou primeiro, envolta por uma falsa suavidade, e me abraçou de forma repentina, forçando uma intimidade que me deixou rígido. Senti que algo estava errado — e estava. Enquanto eu estava momentaneamente preso naquele abraço forçado, William se aproveitou da abertura para se aproximar de Sally. Com um gesto dissimulado, ele passou o braço ao redor dela e, inclinando-se, sussurrou algo em seu ouvido. Vi o corpo dela enrijecer no mesmo instante, os olhos arregalando-se levemente em desconforto.

A raiva explodiu dentro de mim. Empurrei Ana Júlia para o lado, sem me importar mais com aparências ou cerimônias, e em dois passos afastei William de Sally com força, empurrando-o com firmeza no peito. Ele tropeçou para trás, surpreso pela reação, e seu olhar se acendeu em puro ódio. Sally imediatamente voltou ao meu lado, o rosto tenso, sem dizer nada — apenas entrelaçou sua mão na minha, apertando com força, como se deixasse claro de uma vez por todas de onde ela escolhia estar. O calor da mão dela era um contraste direto à frieza no olhar de William. E por mais que o momento tivesse sido manchado por aquela provocação, o elo entre nós havia se mostrado mais forte do que qualquer sombra do passado.

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