O amanhecer em Santo Antônio do Vale trouxe consigo uma calmaria enganosa. Para os habitantes, era apenas mais um dia; para Henrique, era o início de uma batalha interna que o consumia de dentro para fora. Desde a conversa com Clara, ele se sentia diferente, como se algo tivesse se quebrado e, ao mesmo tempo, algo novo estivesse nascendo dentro dele. Sua rotina religiosa, antes um refúgio, agora parecia cheia de questionamentos e incertezas.
Henrique estava na sacristia, preparando-se para a missa matinal, mas seus pensamentos estavam longe dali. As orações, que antes fluíam com devoção, agora eram entrecortadas por dúvidas que ele nunca imaginou ter. Ao olhar para o altar, a cruz diante dele parecia perguntar silenciosamente: "Qual é o teu verdadeiro propósito?"
Enquanto se arrumava, Henrique viu seu reflexo no espelho e mal reconheceu o homem que olhava de volta. As olheiras profundas mostravam noites mal dormidas, e seus olhos, antes firmes na fé, agora refletiam uma mistura de tristeza e confusão. Ele havia dedicado sua vida ao sacerdócio para fugir de uma dor insuportável, mas agora uma nova dor, diferente e igualmente avassaladora, estava prestes a surgir.
Durante a missa, enquanto falava aos fiéis sobre fé e perseverança, Henrique sentia-se um impostor. As palavras saíam de sua boca, mas não alcançavam seu coração. Ele via os rostos da comunidade, todos esperando orientação, e se perguntava como poderia guiá-los se ele mesmo estava perdido.
Quando a celebração terminou, Henrique se refugiou em seu pequeno escritório dentro da igreja. Ele tentou rezar, pedir a Deus por clareza, mas a presença de Clara se fazia sentir mesmo ali, nas paredes silenciosas daquele lugar que sempre foi seu abrigo. A lembrança de suas conversas, dos olhares trocados, das histórias compartilhadas, fazia seu coração bater mais rápido e, ao mesmo tempo, o enchia de culpa.
Henrique pegou seu terço, passando as contas entre os dedos com uma intensidade quase desesperada. Ele pensou em Ana, sua falecida noiva, e nas promessas que fez quando decidiu se tornar padre. Tudo parecia tão distante agora. Ele se perguntava se estava desonrando a memória de Ana e os votos que fez, e, por outro lado, se questionava se não merecia uma segunda chance de encontrar a felicidade.
Em meio a esses pensamentos, Clara apareceu na porta, hesitante.
— Henrique, eu posso voltar mais tarde, se preferir… — disse ela, ao ver a expressão perturbada dele.
— Não, Clara, por favor, entre — respondeu ele, fazendo um gesto para que ela se sentasse.
Henrique sabia que não poderia esconder o que estava sentindo por muito mais tempo. Clara se aproximou, sentando-se de frente para ele, e notou a angústia estampada no rosto do padre. Ela queria confortá-lo, mas também sabia que o peso que ele carregava era maior do que qualquer palavra de consolo.
— Henrique, você está bem? — perguntou Clara, com genuína preocupação.
Henrique hesitou antes de responder, encarando o chão como se buscasse respostas que não encontrava.
— Clara, desde que você chegou, eu sinto que minha vida virou de cabeça para baixo. Eu nunca pensei que, depois de tanto tempo, pudesse sentir algo assim por alguém novamente — confessou ele, com a voz embargada. — Eu me pergunto todos os dias se devo continuar na minha vocação, se estou sendo justo com a minha fé… ou se tudo isso é um sinal de que eu deveria seguir outro caminho.
Clara sentiu seu coração apertar. Ela entendia a luta interna de Henrique, mas também estava perdida em seus próprios sentimentos.
— Eu não quero ser um motivo para você se afastar da sua fé, Henrique. Eu sei o quanto você é dedicado ao que faz. Mas, ao mesmo tempo, eu não posso fingir que não sinto algo por você também. E eu sei que isso complica tudo — disse Clara, com os olhos cheios de lágrimas.
Henrique olhou para Clara, e naquele instante, o tempo pareceu parar. A dúvida se misturava com o desejo, e os votos que ele fizera anos atrás agora pareciam apenas uma sombra distante. Ele estava dividido entre o homem que se comprometeu a ser e o homem que, secretamente, queria se tornar ao lado de Clara.
Os dias seguintes foram de tormento para Henrique. Ele se jogou ainda mais nos afazeres da paróquia, visitando doentes, organizando eventos da comunidade, mas nada parecia suficiente para afastar o vazio que sentia. Cada missa era um lembrete do conflito entre sua devoção e os sentimentos que não conseguia controlar.
Numa noite, Henrique decidiu fazer o que sempre fez quando buscava respostas: subiu ao campanário da igreja, um lugar onde gostava de refletir e orar. A vista de Santo Antônio do Vale lá de cima era serena, e o vento fresco trazia uma sensação de paz que ele tanto ansiava.
Henrique se ajoelhou e, pela primeira vez em anos, suas orações foram feitas com lágrimas nos olhos.
— Deus, eu não sei o que fazer. Eu sei que fiz meus votos, que dediquei minha vida a Ti, mas agora tudo parece diferente. Estou sendo tentado a abandonar tudo o que acredito... — sussurrou ele, entre soluços. — Por favor, me dê um sinal, qualquer coisa. Eu só quero fazer o que é certo.
O silêncio foi sua única resposta. Henrique ficou ali por mais um tempo, olhando para as estrelas, esperando por um milagre que não veio. Ele sabia que sua decisão não seria fácil, e que qualquer caminho que escolhesse teria consequências. Mas, naquele momento, Henrique se deu conta de que talvez o verdadeiro milagre fosse enfrentar seus medos e aceitar que, independentemente de sua escolha, ele precisaria ser honesto consigo mesmo.
Henrique desceu do campanário com a mente ainda confusa, mas decidido a continuar buscando respostas. Clara havia mexido com tudo o que ele acreditava, e agora, o conflito entre sua fé e seus sentimentos era uma batalha que ele não podia mais ignorar.
E, embora não soubesse o que o futuro reservava, Henrique sentia que estava prestes a tomar a decisão mais difícil de sua vida.
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Atualizado até capítulo 21
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