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Capítulo 3 –
Helena não sabia ao certo quanto tempo passou sentada no chão, com as costas coladas à parede, como se pudesse fundir-se a ela e desaparecer. A noite anterior parecia embaçada em sua mente, mas o calor dos toques que não pediu, o gosto de metal na boca e o cheiro de álcool barato ainda estavam impregnados nela como uma segunda pele.
Ela não queria lembrar, mas seu corpo lembrava por ela.
A porta vermelha no andar de cima permanecia fechada. Ainda assim, Helena sentia como se ela estivesse entreaberta, chamando. Desde que a atravessara pela primeira vez — ou pensara ter atravessado — algo dentro dela estava diferente. Algo fora arrancado. Ou talvez, revelado.
No espelho da sala, o reflexo dela parecia mais magro, os olhos fundos, famintos. Ela se observava com uma espécie de nojo curioso. Aquela ali... aquela era mesmo ela?
As vozes voltaram.
Não gritavam. Não sussurravam. Apenas... falavam, como se tivessem sempre estado ali, em algum canto da casa, ou da mente. E agora, ganhavam coragem. Uma coragem que crescia a cada vez que ela hesitava.
"Você deixou", disse uma delas. A voz era feminina, familiar, ácida como um gole de vinho estragado.
"Você não lutou", insistiu outra. Mais baixa, quase infantil.
Helena apertou os ouvidos, as mãos tremendo. Queria gritar, mas só o silêncio saía da garganta. Desde aquela noite, desde aquele toque gelado atrás da nuca, desde aquela respiração que invadia seu pescoço sem permissão, algo dentro dela havia se quebrado — e ninguém percebeu. Ninguém quis ver. Nem as amigas da faculdade, nem a mãe sempre ocupada. Só um viu: ele.
Nicolas.
O vizinho. O encantador. O que disse que ela era diferente. Que não precisava fingir. Que "entendia" as dores que os outros não queriam ouvir. Ele lhe ofereceu chá, depois vinho. Um sofá confortável. E, depois... ela não lembrava de tudo. Mas sabia o suficiente. Sabia que não dissera sim.
Na manhã seguinte, ele agiu como se nada tivesse acontecido. Mandou mensagem com um emoji risonho, perguntou se ela havia dormido bem.
Ela não respondeu. Mas ele continuava passando na frente da casa. Às vezes deixava flores. Uma vez deixou um espelho pequeno com moldura dourada. "Para você se lembrar de como é linda", dizia o bilhete. Ela o jogou fora, mas naquela noite sonhou com o espelho. Sonhou com o reflexo dela sorrindo — e segurando uma faca.
A campainha tocou.
Helena sobressaltou-se, os olhos ainda presos no espelho maior da sala. O reflexo dela não se moveu. Mas o som do sino ecoou alto. Era real. Alguém estava ali.
Com passos cautelosos, caminhou até a porta. Espiou pelo olho mágico.
Era Clara.
Sua amiga dos tempos da pós, a única que ainda insistia, que deixava mensagens mesmo sem resposta. Clara estava com uma sacola nas mãos e uma expressão de preocupação genuína.
Helena hesitou, mas abriu.
– Helena... meu Deus. – Clara a abraçou sem esperar. – Você sumiu. Eu fiquei preocupada. Recebi tua última mensagem... e depois, nada.
Helena não disse nada. O toque de Clara era quente, gentil, e ao mesmo tempo insuportável. Ela não queria ser tocada, mas também não queria estar sozinha. Estava presa num entre-lugar onde o carinho arranhava.
– Trouxe comida. E chá. – Clara entrou sem pedir, caminhando como quem já conhecia o espaço. Parou diante do espelho. – Você ainda tem esse? É lindo.
Helena congelou. O espelho parecia brilhar um pouco mais. E por um breve segundo, ela viu: Clara ali dentro, mas com os olhos pretos como carvão e um sorriso torcido.
– Ele não era meu. – Helena murmurou. – Ele... deixou aqui.
Clara se virou.
– Quem?
– Nicolas.
O nome pareceu escorrer da boca de Helena como veneno.
Clara franziu a testa.
– O vizinho? Aquele cara estranho?
Helena assentiu. Pela primeira vez, as lágrimas vieram. Lentas, silenciosas. Um colapso calmo.
Clara pousou as sacolas e a segurou pelos ombros.
– O que aconteceu, Helena?
A casa tremeu.
Um estalo no andar de cima.
Ambas olharam para cima, instintivamente.
– Tem mais alguém aqui? – Clara perguntou.
Helena não respondeu. O rosto dela estava vazio. A voz no espelho voltou.
"Conta pra ela. Conta tudo. Ou eu conto."
O reflexo sorria agora. Com prazer. Como se saboreasse o momento.
Helena levou a mão à garganta. O peso da culpa, da vergonha, da raiva — tudo emaranhado como raízes que apertavam o peito.
– Ele me tocou. – A voz dela era pequena, rouca. – Eu... eu não queria. Mas ele me fez... achar que era minha culpa.
Clara arregalou os olhos, apertando os lábios. Mas não recuou. Abraçou-a com firmeza.
– Não é tua culpa. Nunca foi.
Helena fechou os olhos. Mas o reflexo não.
O reflexo ria.
E por um segundo, algo se moveu por trás do espelho. Como se houvesse espaço ali dentro. Como se alguém — ou algo — aguardasse.
A porta vermelha se abriu sozinha no andar de cima.
E Helena soube: a casa ouvira.
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Atualizado até capítulo 25
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