O processo foi rápido. Mais do que eu esperava.
Depois que contei tudo na delegacia, me colocaram numa casa de acolhimento temporária. Era limpa, silenciosa. Tinha cheiro de sabão e lençol novo. Me lembrava da primeira em que fiquei, depois da morte da minha mãe. Só que agora… eu era outra pessoa. Uma sombra do menino que já fui, tentando entender onde a dor acabava e onde eu começava.
Uma assistente social me explicou tudo com calma.
— Como você ainda tem nacionalidade coreana, o governo entrou em contato com o consulado. Existe a possibilidade de você retornar à Coreia, se quiser. Tem um centro lá que pode te receber, até que encontremos alguém da sua família… ou um lar definitivo.
Família.
A palavra doía. Porque agora eu sabia o que não era família. Não era sangue. Não era obrigação. Família era cuidado. Era segurança. Era tudo que eu não tive.
— Eu quero ir — respondi, quase sem pensar.
Não era coragem. Era cansaço.
No avião, fiquei acordado a viagem inteira. Olhando as nuvens lá fora e lembrando da minha mãe. Me perguntando o que ela teria feito. Se teria fugido como eu. Se teria ficado. Se teria sido mais forte. Se teria perdoado o Pook-Ju. Não consegui chegar a nenhuma resposta. Só uma certeza me acompanhava: eu estava sozinho. Mas, estranhamente, aquilo começava a não me assustar tanto.
Quando pousei em Incheon, o ar parecia mais denso. Mais real. Gente falando minha língua, prédios que eu lembrava de longe, um céu nublado que me abraçou como um velho conhecido. Pela primeira vez em meses, não senti medo ao sair do aeroporto. Senti algo parecido com saudade. Da infância. Da Coreia. Da vida que poderia ter sido.
No centro de acolhimento, tudo era organizado. As pessoas falavam baixo, me tratavam como se eu fosse feito de vidro. Mas ninguém perguntava demais. Só o necessário. Isso me dava um tipo estranho de alívio. Como se soubessem que algumas dores não precisam de legenda.
Meu quarto era pequeno, mas tinha uma cama só pra mim, uma janela que dava pra um pátio silencioso e uma estante com livros. Deitei ali na primeira noite e fiquei horas olhando o teto, ouvindo os barulhos suaves do prédio. Pela primeira vez, o silêncio não me assustava.
Uma psicóloga me chamou pra conversar.
— Seu nome é bonito, Kyum-Ju. Sabe o que significa?
— Significa “precioso”, né?
Ela sorriu.
— Isso mesmo. E você sabe o quanto é?
Fiquei em silêncio.
Não sabia responder.
Nos dias que seguiram, comecei a sair. Ir pra escola. Andar por bairros que minha mãe já tinha andado. Procurei por alguma coisa dela — em ruas, em cheiros, até em pessoas. Tinha uma padaria que vendia o mesmo tipo de bolinho de arroz que ela fazia nos meus aniversários. O gosto me fez chorar em silêncio, sentado sozinho numa mesa do fundo.
Na escola, os colegas me olhavam com curiosidade, mas ninguém se aproximava muito. Era como se sentissem que havia algo diferente em mim. Algo quebrado que eles não sabiam nomear. Eu também não sabia. Mas um menino, em especial, sempre me olhava com um tipo diferente de atenção. Como se quisesse perguntar, mas tivesse respeito demais pra invadir. Ele se chamava Ji-Ho.
A gente começou a se sentar perto nas aulas. Depois, dividir lanches. Um dia, ele me emprestou um livro de desenhos. E assim, aos poucos, o silêncio entre nós foi virando espaço seguro. Ele não perguntava sobre o Canadá. Nem sobre o Pook-Ju. E eu era grato por isso.
E então, um dia, no meio de uma caixa antiga que o centro encontrou nos arquivos, achei uma carta. Era dela.
“Mong-Ju,
Se um dia eu não estiver mais aqui, espero que Kyum saiba que ele foi o que há de mais bonito em mim. E que, por mais que o mundo tente machucar, ele nunca deixe de ser quem é.”
Chorei. Pela primeira vez em muito tempo, chorei de verdade.
Porque, pela primeira vez, eu senti que minha mãe estava ali. Me vendo. Me dizendo que eu ainda podia ser inteiro.
Mesmo quebrado.
E naquele instante, uma semente brotou dentro de mim. Uma vontade tímida, frágil, mas real: a de viver. Não sobreviver. Viver.
Mesmo que eu não soubesse como. Mesmo que doesse.
Porque talvez... só talvez... havia algo no mundo que ainda poderia ser meu.
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Atualizado até capítulo 37
Comments
Gatita✨♥️😺
Aplausos merecidos.
2025-04-24
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