Era uma quinta-feira gelada quando tudo estourou.
Pook-Ju chegou mais tarde do que o normal. A barba por fazer, os olhos vermelhos como sempre — mas dessa vez, havia algo mais. Um silêncio perigoso. O tipo de silêncio que vinha antes de um grito ou de uma tempestade.
Eu estava na cozinha, tentando preparar um miojo. O cheiro do tempero artificial era o mais próximo de conforto que eu tinha. Mas bastou o barulho da panela no fogão pra ele explodir.
— Já falei pra não mexer nesse fogão! Vai botar fogo nessa porcaria de casa!
— Eu só… tô com fome.
— Fome? Sabe o que é fome de verdade? Já comeu lixo? Já passou três dias comendo migalha de pão duro?
Ele veio pra cima de mim, tropeçando nos próprios passos. A mão levantada, mas parou no meio do caminho. Ficou ali, tremendo, encarando minha cara assustada.
— Você me olha como se eu fosse um monstro — ele disse, com a voz falhando. — Igual a sua mãe.
E foi aí que eu falei. Pela primeira vez, sem medo.
— Talvez seja porque você é.
O silêncio voltou, mais pesado. Ele abaixou a mão, deu um passo pra trás e me olhou como se eu tivesse lhe enfiado uma faca no peito.
— Sai da minha frente — ele disse, baixo, frio.
Naquela noite, eu dormi com as roupas de frio, deitado no tapete da sala. O sofá tava molhado de vômito. E mesmo com tudo aquilo, com o estômago vazio e o corpo doendo, eu não chorei.
Porque pela primeira vez, eu não me sentia só uma vítima. Eu era um sobrevivente.
E talvez… talvez isso quisesse dizer alguma coisa.
No dia seguinte, Pook-Ju não disse uma palavra.
Saiu cedo, como sempre, e deixou a porta batendo atrás dele. Nenhuma bronca, nenhum saco de fast food jogado na mesa. O apartamento estava em silêncio, e pela primeira vez… isso não foi um alívio. Foi estranho. Um silêncio que ecoava, como se o próprio ar tivesse medo de fazer barulho.
Passei o dia inteiro sem sair do lugar. Sentado perto da janela trincada, olhando a neve cair. As pessoas lá fora andavam rápido, encolhidas, cada uma carregando seu mundo nos ombros. E eu ali, preso dentro do meu.
Comecei a desenhar. Como antes. Como na casa de acolhimento. Mas, dessa vez, não desenhei minha mãe.
Desenhei ele.
Pook-Ju, sentado na varanda, com um copo na mão e os olhos perdidos. Tentei desenhar o cansaço, a raiva, a solidão. E quando terminei, percebi: ele também estava afundando. Só que diferente de mim, ele não tentava mais sair.
Naquela noite, ele voltou tarde — mas estava sóbrio. Os olhos inchados, o boné na mão.
— O aquecedor quebrou de vez — disse, como se fosse a coisa mais importante do mundo. — Tá frio, né?
Assenti com a cabeça. Ele olhou pro desenho em cima da mesa, mas não comentou nada. Só ficou ali, parado, por alguns segundos.
— Você me odeia?
A pergunta me pegou de surpresa. Não era uma pergunta que adultos faziam. Era uma pergunta de criança.
— Eu… não sei — respondi.
Ele respirou fundo, como quem queria dizer mil coisas, mas não sabia por onde começar. Então, só disse:
— Amanhã eu vou ver se arrumo esse aquecedor.
Depois foi pro quarto, e eu fiquei ali. Sentado. O desenho entre nós, como um espelho torto.
Naquela noite, dormi de novo no chão. Mas algo estava diferente. Não era perdão. Não era amor. Era só… um começo.
Talvez.
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Atualizado até capítulo 37
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