O aquecedor nunca foi consertado.
Ele disse que ia ver, mas nunca viu. Promessas na casa do Pook-Ju eram como fumaça: apareciam por um segundo e sumiam no ar.
Os dias foram ficando mais frios. E ele, mais quente. Quente de raiva, de bebida, de frustração que não cabia mais dentro dele.
Na primeira vez, foi um empurrão.
Eu deixei cair o saco de comida no chão. As batatas fritas se espalharam, e ele se irritou como se eu tivesse derrubado um pedaço do mundo.
— Você é inútil! — ele gritou, e me empurrou contra a parede.
Doeu. Mas não sangrou.
Na segunda vez, foi um tapa.
Eu tinha esquecido de tirar a roupa da corda. A camisa dele amanheceu dura de gelo. Quando ele viu, não gritou. Só levantou a mão e bateu. Estalou forte. Fiquei com o rosto quente, vermelho, latejando. Mas não chorei. Ele odiava quando eu chorava.
— Cresce — foi tudo o que ele disse.
E eu tentei crescer. Tentei engolir a dor como ele mandava. Mas crescer daquele jeito era só aprender a calar. A esconder os machucados. A inventar desculpas pra professora na escola — quando eu finalmente fui mandado pra lá.
Na terceira vez, foi mais.
Não lembro o motivo. Talvez ele também não. Só lembro do som da garrafa batendo na mesa. Do cheiro forte de álcool. E da dor nas costelas.
Depois, ele chorou. Como sempre.
— Eu sou um monstro… — ele repetia, abraçado às próprias pernas. — Eu sou igual ao nosso pai…
Nosso pai.
Era a primeira vez que ele falava disso. Mas eu não perguntei. Não queria saber. Tinha medo da resposta.
Naquela noite, fiquei encolhido no chão do banheiro. A toalha molhada nas mãos. O rosto inchado. O coração apertado.
E uma decisão nascendo no silêncio: eu preciso sair daqui.
Mas pra onde vai alguém que não tem pra onde ir?
Na sexta vez, ele trouxe uma arma pra casa.
Eu vi quando ele tirou da mochila, jogou em cima da mesa como se fosse um casaco qualquer. Era pequena, preta, pesada. Fria. Como ele vinha ficando.
— Tô cansado de ser saco de pancada nesse mundo — ele murmurou, os olhos fundos. — Agora ninguém mais ri de mim.
Eu não disse nada. Só me afastei devagar, como se meus passos pudessem acordar um monstro que já estava acordado.
Naquela noite, ele bebeu como nunca. Gritava coisas sem sentido. Batia nas paredes. Chamava minha mãe de traidora, depois pedia desculpa pro nada, como se ela ainda estivesse ali.
A arma continuava na mesa. Brilhando sob a luz fraca da cozinha.
E então, do nada, ele virou pra mim.
— Você acha que eu sou fraco, né? — disse, cambaleando até ficar na minha frente. — Me olha desse jeito. Igualzinho a ela.
A mão dele tremia. E, de repente, a arma estava apontada. Pra mim.
— Talvez se você sumisse… tudo ficasse em paz.
Fiquei parado. Nem respirei. O tempo parou junto comigo. Senti o gosto do medo — metálico, amargo, vivo.
Mas ele não atirou. Só riu. Um riso quebrado, sem alma.
— Brincadeira, moleque. Relaxa.
No dia seguinte, a porta estava trancada. Por dentro.
— Você vai ficar aí até aprender a respeitar — ele disse, jogando um prato com arroz frio no chão. — Um dia, dois, uma semana… quem sabe.
E foi uma semana.
Sete dias trancado no apartamento, ouvindo passos, gritos, silêncio. Comendo pouco. Dormindo no chão. Me encolhendo toda vez que a maçaneta girava.
Até que, numa manhã, ele saiu pro trabalho e esqueceu a chave na porta. Um milagre. Ou um descuido. Não importava.
Corri. Descalço. Com frio. Com medo. Mas corri.
Entrei na primeira delegacia que vi. Falei tudo. Ou quase tudo. As palavras saíam cortadas, emboladas, mas saíam. Mostrei as marcas. Falei da arma.
Os policiais me olharam com um silêncio diferente. Um que escutava.
Me deram um cobertor. Água. Chocolate quente.
E pela primeira vez em muito tempo… eu me senti seguro.
Não feliz. Não salvo. Mas seguro.
E isso, pra mim, já era um começo.
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Atualizado até capítulo 37
Comments
Carlos Romania 🐺
o começo de uma história
2025-04-25
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