Capítulo 4 — Ecos da Traição

A torre onde Arthur dormia tremia com os ventos da madrugada. O silêncio era espesso, pesado, como se o próprio tempo hesitasse em seguir adiante. No alto do Templo dos Guardiões, Arthur encarava o reflexo da lua quebrada em uma tigela de água. Seus olhos estavam diferentes. Não na cor — ainda castanhos escuros —, mas no fundo deles havia algo mais. Um brilho frio. Uma distância crescente entre ele e o mundo.

O terceiro fragmento pulsava sob sua pele, invisível, mas onipresente. Era como carregar um segundo coração — um que batia em outro ritmo, um que lembrava quem ele poderia se tornar.

Soryn entrou sem bater.

— Não dorme mais?

— Durmo quando posso — respondeu Arthur. — Quando o vazio permite.

Ela se aproximou, pousando uma garrafinha de vidro negro sobre a mesa.

— Chá da flor de Névoa. Ajuda a acalmar... pensamentos.

Arthur sorriu com tristeza. — Não sei se quero me acalmar.

— Está mudando — disse Soryn. — Nós sentimos. Elyra também.

— A mudança é inevitável. Eu só estou... tentando manter o controle.

— Não é o controle que me preocupa — ela respondeu. — É o que você faz quando o perde.

Arthur ficou em silêncio. O vento lá fora soprou mais forte.

Na manhã seguinte, Kael convocou o Conselho Interno. Arthur, Elyra, Soryn e outros quatro Guardiões se reuniram na Câmara do Eco, onde as paredes de cristal amplificavam até os sussurros da alma.

— Recebemos um aviso dos Oráculos de Aerath — começou Kael. — Um dos antigos portadores dos Códices está vivo.

Arthur levantou os olhos.

— Isso é possível?

— Deveria ser impossível — respondeu Elyra. — Mas Aerath é um lugar de distorções. Tempo e realidade se dobram lá.

Kael assentiu. — O nome dele era Varek. Ele estudou os Códices antes da Primeira Quebra. Foi banido por tentar fundi-los à sua própria essência.

— Como eu fiz com o fragmento — disse Arthur, sombrio.

— Não — corrigiu Soryn. — Você fundiu um fragmento. Varek tentou fundir os três. E quase destruiu Etheria.

O nome ficou suspenso na sala.

— E agora? — perguntou Elyra.

— Ele está voltando — disse Kael. — E pode ser que esteja atrás de Arthur.

Partiram naquela mesma tarde. A viagem até Aerath exigia atravessar a Floresta do Fim Silencioso, onde nenhuma criatura ousava cantar. Varda insistiu em acompanhá-los. Ainda fraca, mas determinada.

— Se Varek conheceu os Códices, talvez ele também conheça o vazio — disse ela.

Durante o trajeto, Arthur sentia-se cada vez mais inquieto. Sonhos estranhos o perseguiam, e em todos eles, Varek aparecia como uma figura de luz quebrada, envolta em vozes.

Mas não foi só nos sonhos que ele sentiu algo estranho.

Foi em Elyra.

Durante uma pausa, enquanto o grupo descansava à beira de um riacho envenenado pela energia Primeva, Arthur notou como Elyra se distanciava. Como se escondesse algo.

— Está tudo bem? — perguntou ele.

— Sim — disse ela, muito rápido. Muito firme.

Ele não insistiu. Mas notou.

Chegaram a Aerath ao cair da noite. O lugar era uma cidade partida entre realidades. Torres flutuavam de ponta-cabeça, pontes surgiam e desapareciam, e o céu parecia pulsar como um organismo vivo.

No centro da cidade, os Portões de Marfim aguardavam, cobertos por símbolos antigos. Ali, Varek esperava.

Ou o que restava dele.

Ele era alto, coberto por um manto rasgado, olhos de âmbar e cicatrizes que pareciam rasgos dimensionais. Quando viu Arthur, sorriu.

— Então você é o novo tolo do equilíbrio.

Arthur se manteve firme.

— Você tentou tomar os Códices. Falhou. Agora tenta o quê? Corrigir seu erro?

Varek deu uma risada rouca.

— Não, garoto. Eu tento impedir que cometa o mesmo erro. Você já sente, não sente? A presença dele dentro de você. O fragmento te moldando, corrompendo.

— Eu luto contra isso.

— E perde. Um pouco mais a cada dia.

Arthur avançou. — Então me diga como lutar. Como resistir.

Varek se aproximou, o rosto a centímetros do de Arthur.

— Você não resiste ao vazio. Você o compreende. Ou o devora.

Antes que pudessem falar mais, uma flecha atingiu o peito de Varek.

Elyra.

Ela estava com o arco levantado, o olhar cheio de raiva e medo.

— Ele mentia! — gritou ela. — Ele ia te consumir!

Arthur gritou, correndo até Varek, mas era tarde. O homem caiu de joelhos, sangue escuro escorrendo.

— Ela... tem medo... de você... — sussurrou ele, antes de morrer.

Arthur se virou para Elyra, o rosto em fúria.

— Por que você fez isso?

Ela hesitou. — Porque... porque eu não podia arriscar.

— Não podia me deixar decidir?

— Você não é mais o mesmo, Arthur!

O silêncio caiu entre os dois. Soryn se colocou entre eles.

— Vamos sair daqui. Agora.

De volta ao Templo, Arthur ficou dias sem falar. Trancado na torre, treinando. Pensando.

Varda foi a única que ousou se aproximar.

— Você confia nela?

— Confiava.

— O fragmento revela. Mas também engana. O que sente pode não ser real.

Arthur assentiu.

— Mas o que ela fez... foi real.

Naquela noite, Arthur desceu até os Arquivos Eternos. Lá, os Guardiões guardavam registros proibidos: mapas antigos, encantamentos selados, e uma única cela mágica. Onde Varek havia sido preso séculos atrás, antes de escapar.

Lá dentro, Arthur encontrou algo inesperado.

Um espelho.

Mas não era um espelho comum. Mostrava o Arthur que poderia ser.

O Outro.

Vestido com armadura de sombras, olhos cor de cinza vazio. E ele falava.

— Ela teme você porque sabe que vai perdê-lo.

Arthur recuou.

— Isso é só magia. Reflexo.

— É memória — disse o reflexo. — Eu sou o que você será... quando ela trair você outra vez.

Arthur cerrou os punhos.

— Isso não vai acontecer.

— Vai. Porque o medo dela é maior que o amor. Porque o equilíbrio exige sacrifício.

O espelho rachou.

No dia seguinte, Elyra pediu para vê-lo. Eles se encontraram no topo da torre.

— Eu não vim me justificar — disse ela. — Só queria que soubesse que... fiz o que achei certo.

— Certo para você? Ou para o Conselho?

— Para nós.

Arthur a olhou com olhos frios.

— Varek podia ter nos dado respostas.

— Ou nos levado ao fim.

— E você decidiu por mim.

Elyra se calou. Então, estendeu um colar que usava no pescoço. Um cristal azul preso a uma corrente de prata.

— Isso era da minha irmã. Ela também confiou demais. Morreu por isso.

Arthur pegou o colar, apertando entre os dedos.

— Talvez todos estejamos condenados a repetir erros.

Ela se aproximou, tocando sua mão.

— Eu ainda estou com você, Arthur. Só preciso que... me diga que não está se perdendo.

Ele a encarou por um longo tempo.

— Ainda estou aqui.

Mas no fundo... não tinha certeza.

Naquela noite, o templo foi atacado.

Sombras se infiltraram pelas muralhas, silhuetas de corpos que não eram corpos. Criaturas feitas de memória distorcida. Pesadelos vivos. O céu se partiu em fragmentos de vidro. O caos reinou.

Arthur correu ao centro, sua espada brilhando com a energia do fragmento. Lutava com precisão sobre-humana, cada golpe uma dança entre luz e trevas.

Kael caiu, ferido no peito.

Elyra ficou presa em uma teia de sombras.

Soryn desapareceu entre gritos.

Arthur gritou o nome de Varda. Ela surgiu ao seu lado, os olhos brilhando.

— Eles são ecos de Varek — disse ela. — Último suspiro antes da morte total.

— E por que atacam agora?

— Porque você está vulnerável.

Arthur canalizou o poder do fragmento. Uma explosão de luz rasgou o chão. As sombras recuaram. Sumiram.

Mas o preço foi alto.

Kael... não respirava mais.

Horas depois, sob o luto, Arthur desceu até a Cripta do Fim, onde os nomes dos Guardiões caídos eram gravados em pedra.

Ele não chorou. Não tinha mais lágrimas.

Varda se aproximou.

— Cada fragmento te dá poder... mas cobra memória. Emoção. Alma.

— Quanto ainda tenho?

— O suficiente. Por enquanto.

Arthur olhou para o céu. Uma estrela cadente cruzou a noite.

— Então não podemos falhar.

Ela colocou a mão sobre seu ombro.

— Mas para vencer, você terá que escolher: manter o equilíbrio... ou destruí-lo.

Arthur fechou os olhos.

E, pela primeira vez, considerou o segundo caminho.

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