Capítulo 3 – O Vazio Tem Voz
A noite anterior ainda queimava no corpo de Estela. A lembrança dos lábios de Vicente, do gosto proibido do que não devia sentir, era uma tortura doce. Mas agora, ao acordar no silêncio abafado da mansão, tudo tinha mudado. A tensão estava nas paredes. Nos corredores. No olhar da governanta que desviou os olhos rápido demais.
Ela sabia.
Ou suspeitava.
E se ela sabia... quem mais sabia?
Estela se vestiu com calma. Calça de linho escura, blusa branca fechada até o pescoço. Um coque firme no cabelo. Maquiagem leve. Máscara perfeita. Filha perfeita.
Mas dentro dela, só caos.
Desceu para o café da manhã como uma sombra. Arturo já estava à mesa. Seu terno cinza-claro, o broche dourado da família preso no bolso do paletó — os três lírios entrelaçados. Símbolo da nobreza. E da maldição.
— Dormiu bem? — perguntou, sem tirar os olhos do jornal.
— Tive sonhos inquietos.
— É bom manter a cabeça leve. O mundo pesa rápido demais em quem carrega segredos.
Estela fingiu um sorriso.
— E quem não carrega?
Ele ergueu os olhos.
— Os mortos.
Ela segurou o garfo com força.
— A propósito — ele continuou —, hoje temos um jantar. Família completa. E convidados. Quero que esteja impecável.
— Convidados?
— Um homem importante. Antigo aliado. Está de volta à cidade.
Ela assentiu. Mas algo no modo como ele disse "antigo aliado" fez sua espinha gelar.
Ele estava testando-a. Ou... preparando terreno para alguma jogada.
---
Vicente
O ar no apartamento estava espesso com o cheiro da chuva. Sasha chegou com o rosto coberto por um capuz e as botas sujas de lama.
— Tenho novidades.
Vicente se virou de onde estava sentado, a pistola desmontada sobre a mesa.
— Nicolai?
Sasha assentiu.
— Vivo. Mas não por muito tempo se continuar se movendo como está. Mudou de esconderijo três vezes só esta semana. Alguém o está caçando.
— Arturo?
— Provável. Mas não só ele.
Vicente fechou os olhos por um instante.
— Preciso falar com ele.
— Já sabia que ia dizer isso. Consegui um ponto de encontro. Mas é arriscado. Ele não confia em ninguém. E não é burro como dizem.
— Eu assumo o risco.
Sasha o encarou.
— Você vai sozinho?
— Não tenho escolha.
— E a garota?
— O que tem ela?
— Vai avisá-la que está se metendo num buraco sem fundo?
Vicente hesitou.
— Ela já está lá dentro.
---
Estela
O jantar parecia uma peça de teatro.
A mesa longa, coberta de prata polida e talheres alinhados como soldados prontos para a guerra. Arturo à cabeceira, os tios e primos do lado direito, os conselheiros e capangas do lado esquerdo. E então o convidado: Dante Russo.
O nome soou como veneno nos ouvidos de Estela.
Os Russo haviam desaparecido do mapa depois que Nicolai foi “banido”. Mas Dante não era só um membro distante da família — era primo direto de Nicolai. E agora estava ali, sorrindo, brindando, fingindo que nada era estranho.
— Você cresceu, Estela — disse ele, quando brindaram. — A última vez que te vi, você mal alcançava a mesa.
Ela sorriu com educação.
— E agora vejo tudo que está sobre ela.
Dante riu.
— Bela resposta. Mas cuidado, ver demais pode custar caro.
Arturo observava os dois como um rei analisando peças num tabuleiro.
Estela se perguntava: Dante estava ali por causa de Nicolai? Ou seria mais um aviso?
Durante a sobremesa, ela derramou um pouco de vinho no guardanapo e o levou aos lábios, fingindo limpar a boca. Depois, discretamente, deixou o pano cair no chão ao lado de uma das cadeiras dos capangas. Quando se abaixou para pegá-lo, sussurrou:
— Sei que me vigiam. Diga a ele que também observo.
Voltou à posição com o rosto neutro.
O capanga não respondeu. Mas seu olho direito tremeu.
Ela sabia que a mensagem tinha sido entregue.
---
Vicente
A noite estava úmida quando chegou ao ponto de encontro.
Era uma antiga fábrica de tecidos, abandonada desde os anos 90. Paredões corroídos. Pássaros mortos nos cantos. Um cheiro ácido no ar.
Nicolai estava lá.
Mais magro, olhos fundos. Mas ainda com o mesmo ar arrogante de antes.
— Então você é o garoto que quer destruir um império — disse ele, fumando.
— Eu quero justiça.
— Justiça é um conceito. Vingança é uma ferramenta.
Vicente jogou o diário de Lara no chão, entre eles.
— Você estava lá. Você viu o que fizeram com ela.
Nicolai não respondeu de imediato.
Depois pegou o caderno, folheou até a última página, e sorriu.
— Ela confiava demais.
— E você menos do que devia.
— Eu tentei avisar. Mas ninguém ouve um traidor.
— Por que está me ajudando agora?
Nicolai o encarou.
— Porque Arturo me caçou por anos. Porque matou meu irmão. Porque quer apagar até o meu nome da história.
Pausa.
— E porque eu também perdi alguém que amava.
Vicente franziu a testa.
— Quem?
— Isso não importa. O que importa é que eu sei como chegar ao coração da mansão.
— Como?
Nicolai se aproximou, baixo.
— Você tem a chave. Ela tem o sangue. Mas só juntos conseguirão abrir a porta certa.
Vicente o segurou pelo colarinho.
— Se você trair a gente, eu mato você com as próprias mãos.
Nicolai sorriu.
— E se eu ajudar, você me protege?
— Não. Mas talvez te deixe vivo.
---
Estela
De madrugada, Estela foi até a estufa.
Entre as plantas altas, os lírios vermelhos estavam florindo.
Ela os encarou por longos minutos. Depois, ajoelhou-se e começou a cavar a terra com as mãos nuas. Minutos depois, encontrou o que procurava.
Um envelope plástico, velho, enterrado desde os tempos de infância. Dentro, cartas. Fotografias. Uma folha dobrada com o carimbo “Confidencial – Mancini”.
Era o que a mãe dela escondeu antes de morrer.
E naquele momento, Estela entendeu: a morte da mãe não foi acidente.
Ela foi silenciada.
E agora, ela mesma era o próximo alvo.
---
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 24
Comments