Capítulo 2 – Tudo que floresce sangra
Estela
O mundo parecia mais silencioso no jardim dos lírios. O som abafado da festa se distanciava a cada passo, como se estivesse me afundando em outra realidade. O vestido colava na minha pele por causa da umidade do ar, e meus pés descalços sentiam a grama fria como se fosse uma promessa.
Ele estava lá. Encostado na coluna de ferro do gazebo, com as mãos nos bolsos e o olhar escuro cravado no nada. Um cigarro esquecido entre os dedos e a quietude de quem carrega o caos por dentro.
Quando me viu, não sorriu. Apenas observou.
— Pensei que não viesse — murmurei, parando a poucos passos.
— E perder isso? — ele apontou com o queixo para mim. — Seria burrice.
— Você tem um jeito estranho de elogiar.
— E você tem um jeito perigoso de existir.
O silêncio caiu entre nós por alguns segundos. A luz tênue iluminava o contorno dos seus ombros, e por um momento, ele parecia uma sombra que ganhou carne.
— Por que está aqui, Vicente?
— Você me chamou.
— Sabe que não foi isso que perguntei.
Ele deu uma tragada, os olhos ainda em mim.
— Às vezes, a gente se aproxima da morte só pra lembrar que está vivo.
— Você se acha a morte?
— Não. Eu me aproximo dela todos os dias. Você... você é outra coisa.
— O quê?
— Você é o tipo de ferida que a gente quer manter aberta.
A frase cortou mais fundo do que eu esperava. Me aproximei devagar, o perfume dos lírios nos envolvendo como uma cortina de fumaça.
— Eu deveria te odiar — sussurrei.
— Por quê?
— Porque você me olha como se soubesse quem eu sou de verdade. E isso me apavora.
— Eu te olho assim porque você está pedindo para ser vista.
A respiração prendeu na garganta. E antes que eu pensasse, ele jogou o cigarro no chão e avançou um passo. Estávamos a poucos centímetros. Meus batimentos estavam fora de controle.
— Se me beijar, não vai conseguir parar — avisei.
Ele sorriu de canto.
— Eu nunca fui bom com limites.
E então, o beijo aconteceu. Feroz, urgente, quebrado. Como se não houvesse tempo. Como se aquilo fosse a única chance.
Vicente
O gosto dela era amargo e doce ao mesmo tempo, como vinho envelhecido demais. Minhas mãos escorregaram pela cintura estreita e pousaram na base das costas, onde o vestido terminava. Estela Mancini não era feita para ser tocada — mas eu toquei mesmo assim.
Foi ela quem se afastou primeiro, arfando, os olhos arregalados.
— Não posso...
— Eu sei — respondi, a voz falha.
— Meu pai...
— Ele vai descobrir.
Ela assentiu. E mesmo assim, deu mais um passo em minha direção, colando os lábios nos meus outra vez.
Parte 2 –
Vicente
Ela me beijava como quem implorava por um pouco de liberdade, como se cada toque nos lábios fosse uma confissão muda: “me salva, mesmo que me destrua”. E por algum motivo, eu queria exatamente isso.
Quando ela recuou de novo, ainda respirando com dificuldade, vi um brilho diferente nos olhos dela. Não era paixão. Era medo.
— Você é problema, Vicente.
— E você é a solução que vai me matar — respondi, sem pensar.
Ela sorriu, mas havia algo de quebrado naquele sorriso.
— Você fala como se estivesse me estudando.
— Porque estou.
Silêncio.
Ela recuou um passo, os braços envolvendo o próprio corpo como se quisesse impedir que algo escapasse de dentro.
— Eu deveria voltar. Se alguém sentir minha falta...
— Seu pai vai suspeitar?
— Meu pai já suspeita de tudo. Ele não precisa de provas, só de instinto.
— E o que seu instinto diz sobre mim?
Ela hesitou.
— Que você não é só um estranho com olhos de tempestade.
— Não sou.
— Então o que é?
Minha mandíbula enrijeceu. Não era o momento. Ainda não. Mas eu sabia que precisaria contar. Em algum ponto, ela descobriria que eu não estava ali por acaso.
— Alguém que carrega mais fantasmas do que deveria.
Ela respirou fundo.
— Eu também.
— Estela...
— Não me diga que isso é errado. Eu sei. Eu fui criada nesse tipo de mundo, Vicente. Um mundo onde o amor é uma sentença e a liberdade uma piada de mau gosto.
— Eu não queria me envolver com você.
— Mas já estamos envolvidos.
Ela disse aquilo com um olhar tão seguro, tão amargo e ao mesmo tempo rendido, que doeu.
E então, como se um feitiço fosse quebrado, ouvimos passos. Vozes. Dois seguranças riam do outro lado do jardim, fazendo ronda. Estela se virou depressa, os olhos arregalados.
— Preciso ir agora.
— Amanhã.
— O quê?
— Amanhã, no teatro abandonado da Rua Rossi. Às dez da noite.
— Vicente...
— Confia em mim.
Ela mordeu o lábio, e por um segundo, achei que recusaria. Mas então assentiu.
— Se eu não for, é porque meu pai soube.
Ela se afastou correndo, desaparecendo entre os arbustos e sombras.
Eu fiquei ali. Sozinho. Sentindo o gosto do perigo se misturar ao desejo.
E pela primeira vez desde que planejei me infiltrar naquele império amaldiçoado chamado Família Mancini, percebi que estava afundando. Rápido demais.
Parte 3 –
Vicente
O teatro da Rua Rossi estava morto há anos. Teto desabando, paredes descascadas, cheiro de mofo e abandono. Um lugar perfeito para encontros clandestinos. Um lugar onde fantasmas se sentiam em casa. Inclusive os meus.
Acordei naquela manhã com um gosto amargo na boca. Não era só o beijo de Estela. Era culpa. Raiva. Medo. Sentimentos que nunca fizeram parte do plano.
Puxei do bolso interno da jaqueta a foto dobrada — aquela que me lembrava todos os dias por que estava ali. Na imagem: minha irmã, Lara. Dezessete anos, olhos doces demais pro mundo em que nasceu. E morta antes dos dezoito.
— Mancini — murmurei, o nome queimando na língua como veneno.
Ela morreu por causa deles. Foi usada, descartada, enterrada com uma nota falsa de suicídio. E ninguém investigou. Ninguém se importou. Mas eu descobri. Eu vi o que ela deixou escondido. Os nomes. As mensagens. As fotos. Tudo apontava para Arturo Mancini e seus “negócios de fachada”.
Me infiltrar como segurança foi fácil. Eles contratavam mercenários, não investigavam muito — confiavam demais no próprio poder. Foi questão de tempo até eu ganhar acesso à casa.
Mas eu não contava com ela.
Estela.
A filha que parecia viver presa numa gaiola de ouro. A herdeira que tinha o rosto da minha dor e o perfume dos meus sonhos mais perigosos.
Eu devia usá-la. Me aproximar. Descobrir segredos. Enfraquecer a família por dentro.
Mas eu a beijei.
E agora tudo começava a desmoronar.
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Estela
Me tranquei no quarto como fazia desde menina, quando a voz do meu pai ecoava pela casa como uma tempestade prestes a cair. Mas naquela noite, eu não tinha medo dele. Tinha medo de mim.
O espelho me encarava. Lábios inchados. Olhos brilhando. O vestido ainda com o cheiro do jardim.
Eu devia odiar o que aconteceu. Devia apagar aquilo da memória. Mas...
— Maldição — sussurrei para mim mesma. — O que eu fiz?
Meu celular vibrou. Uma mensagem de número desconhecido.
"Amanhã. 22h. Rua Rossi, nº 13. Se quiser saber quem você realmente é."
Vicente.
Deitada, encarei o teto até o sono me engolir.
E sonhei com lírios manchados de sangue.
Parte 4 –
Estela
A noite caiu com um gosto de ferro na língua. Vesti um casaco escuro por cima da roupa e prendi o cabelo num coque malfeito. Se alguém me visse sair da mansão, acharia que eu estava indo comprar veneno — e não estaria totalmente errado.
Rua Rossi, nº 13.
Era um lugar onde a cidade esquecia de existir. O teatro era uma carcaça, um sussurro do que já foi beleza. Um dia, aquele palco recebeu música, poesia e arte. Hoje, só abrigava rachaduras e o eco de tragédias esquecidas.
Ele estava lá. Sentado no meio das poltronas cobertas de poeira, como se esperasse pelo início do espetáculo.
— Está atrasada — disse sem me olhar.
— Achei que você não viria — retruquei.
— Achei que você não sobreviveria a si mesma.
Me aproximei, sentando a uma cadeira de distância.
— E então? Vai me contar por que estou aqui?
Ele tirou algo do bolso. Uma foto. Me entregou com o cuidado de quem oferece uma arma carregada.
Na imagem, uma garota jovem. Rosto delicado, olhos como os dele. Sorria, mas havia um vazio escondido ali.
— Ela se chamava Lara.
— Irmã?
Ele assentiu.
— Foi levada. Usada. Depois... apagada.
— Quem?
A resposta veio como um tiro mudo.
— Seu pai.
Meu estômago revirou. Mas não recuei. Só encarei a imagem por mais um segundo, depois olhei nos olhos de Vicente.
— Você tem provas?
— Tenho o bastante pra derrubar metade do império dele. Só me falta uma peça.
— Eu?
— Você.
Pausa.
— Quer que eu o traia?
— Quero que descubra quem você realmente é.
Ele estava sério. Os olhos queimando. Mas havia algo mais ali — um cansaço que parecia maior do que ele.
— E o que acontece se eu me recusar?
— Eu vou continuar. Com ou sem você.
Silêncio. Só o barulho do vento lá fora, assoviando por entre os vidros quebrados.
— Você deveria me odiar — sussurrei.
— Eu odeio.
— Então por que me beijou?
— Porque odeio o que você representa. Mas amo o que você tenta esconder.
Não consegui responder. Só fiquei ali, parada, ouvindo meu próprio coração dizer coisas que eu não queria escutar.
Então ele se levantou e caminhou até mim. Devagar. Parou a centímetros.
— Eu vou derrubar seu pai, Estela. Mas não quero derrubar você junto.
— E se eu cair por conta própria?
— Aí eu te seguro. Ou caio com você.
Quando ele tocou meu rosto, eu fechei os olhos.
E deixei.
Parte 5 –
Estela
O toque dele era quente, mas havia algo gelado por baixo. Como se ele lutasse contra si mesmo toda vez que me tocava. E eu entendi. Porque sentia o mesmo.
Ele passou o polegar pelo meu lábio inferior. Um gesto pequeno. Mas me quebrou inteira.
— Você tem noção do que está fazendo? — sussurrei.
— Não. Mas isso nunca me impediu antes.
O beijo veio como um acidente. Intenso. Desesperado. As mãos dele desceram pelo meu pescoço, pela minha cintura. A boca encontrou a curva do meu ombro exposto. Meus dedos agarraram a gola da jaqueta dele com força, como se precisasse de algo pra não desmoronar.
— Vicente... — minha voz falhou.
Ele encostou a testa na minha.
— Me diz que é mentira. Que você não sente isso.
— Eu queria.
— Mas não consegue, né?
Neguei com a cabeça, os olhos ardendo.
— Isso vai nos matar — murmurei.
— Então que seja bonito.
Ficamos ali, por minutos que pareciam dias. O mundo inteiro fora do teatro deixou de existir.
Até que um estalo nos fez congelar.
Vicente ergueu os olhos, atento. Alguém tinha pisado em vidro quebrado. Muito perto.
— Tem alguém aqui — ele murmurou.
Meu coração disparou.
Ele puxou uma faca curta de dentro da bota. A lâmina era fina, profissional. Eu nem sabia que ele carregava aquilo.
— Fica atrás de mim — ordenou.
Nos movemos em silêncio pelas poltronas, com os olhos atentos a qualquer movimento. A tensão era como um fio esticado demais — prestes a arrebentar.
— Deve ser alguém do seu pai — disse ele em voz baixa.
— Não. Meu pai não manda seguidor. Ele manda bala.
— Ótimo. Melhor ainda.
Um vulto correu ao fundo. Vicente lançou a faca — um reflexo de quem já fez isso antes. Mas o vulto sumiu.
— Rápido demais — murmurou. — Quem quer que seja, não estava tentando nos matar. Estava nos vigiando.
— E agora sabe.
— Que nós estamos juntos. Merda.
Ele se virou pra mim, os olhos sombrios.
— Você precisa voltar pra casa agora. Finja que nada aconteceu. Se perguntarem onde esteve...
— Eu minto. Eu aprendi com os melhores.
Ele hesitou.
— Você confia em mim?
— Não.
— Ótimo. Continue assim.
Ele me acompanhou até o beco lateral e esperou até me ver dentro do carro. Quando olhei pelo espelho, ele ainda estava parado no escuro, como uma maldição silenciosa.
E eu soube: nada mais seria seguro.
Parte 6 –
Estela
Voltei pra casa antes da meia-noite. Minhas mãos ainda tremiam quando entrei pela porta lateral da mansão. O relógio do corredor parecia mais alto do que o normal, cada tique soando como um grito abafado.
A governanta me viu subir as escadas, mas não disse nada. Ela sabia quando fechar os olhos.
No meu quarto, tranquei a porta. Só então me permiti respirar fundo.
O espelho refletia uma versão de mim que eu não reconhecia. Olhos dilatados. Cabelos soltos. Boca ainda sensível. Eu parecia alguém que estava prestes a fugir. Ou a explodir.
Toquei o vidro, como se pudesse atravessá-lo.
Foi então que vi.
No canto do espelho, quase invisível, uma câmera minúscula estava colada. Um ponto escuro, escondido na moldura esculpida.
Arregalei os olhos.
— Não... não...
Corri até o banheiro. Revirei os azulejos com as mãos. Outra câmera, camuflada entre as plantas falsas. No closet, entre as prateleiras. Sob a penteadeira.
Três.
Três câmeras dentro do meu quarto.
Senti o chão sumir. Tudo girava. Meus dedos congelaram sobre o corrimão da cama.
— Ele tá me vigiando. Sempre vigiando... — sussurrei, como se a voz saísse de outra boca.
Meu pai.
Claro que ele sabia.
Claro que ele nunca confiaria em mim. Eu era sua filha, sim — mas também era sua propriedade. Um objeto precioso que ele precisava controlar. Ele fingia me amar, mas o que ele amava era o controle.
Sentei no chão.
Lágrimas desceram sem permissão. Engoli o grito.
Ele pode estar me ouvindo agora.
Levantei.
Tirei a blusa lentamente. Deixei-a cair no chão. Olhei para a câmera como quem desafia uma sentença de morte.
— Então me observa, pai. Vê o que você criou.
Abaixei a luz. Deitei na cama com a mente em guerra.
E repeti uma única frase, baixinho, até o sono vir como faca no escuro:
“Ele me ama com olhos que querem me destruir.”
Parte 7 –
Vicente
Esperei a noite inteira nas sombras da Rua Rossi, observando. A figura que rondava o teatro antes não voltou, mas eu sabia que alguém estava assistindo. Alguém da casa Mancini. Alguém que sabia demais.
E isso significava uma coisa: eu tinha pouco tempo.
Quando amanheceu, voltei ao apartamento onde estava hospedado. Um cubículo escondido nos fundos de uma lavanderia. Paredes úmidas. Cheiro de cigarro velho. O tipo de lugar onde ninguém faz perguntas.
Joguei a mochila sobre a cama, abri o zíper e tirei um caderno preto — grosso, de capa dura. Era o diário de Lara. A única coisa que restou dela além do corpo.
Folheei até a última página.
> “Se eu desaparecer, procure por 'Nicolai'. Ele sabe de tudo. Ele viu. Ele tentou avisar. Mas ninguém ouve um traidor.”
Nicolai.
Aquele nome tinha voltado a me assombrar desde que pisei na mansão.
Nicolai Russo. Ex-braço direito de Arturo Mancini. Sumido há três anos.
A lenda dizia que ele traiu o império. Tentou vender informações. Arturo mandou matar. Mas o corpo nunca apareceu.
E agora... boatos. Sussurros. Um informante vivo. Um homem escondido em alguma parte da cidade, com informações suficientes pra derrubar os Mancini.
Ou para nos enterrar junto com eles.
Peguei o telefone descartável.
— Sasha. Ache o Nicolai. Não me importa o preço. Ele é a chave.
Do outro lado da linha, silêncio. Depois, uma risada curta.
— Ele vai ser mais caro do que a sua vingança.
— Eu pago com sangue, se for preciso.
Desliguei.
E então encarei o espelho do banheiro. Meus olhos estavam diferentes. Estavam começando a se parecer com os de Lara — não pela cor, mas pelo vazio.
---
Estela
Na manhã seguinte, meu pai me chamou no escritório.
Entrei com o coração preso à garganta. Ele estava sentado na poltrona de couro, um charuto aceso entre os dedos. O olhar gelado.
— Onde esteve ontem à noite?
Minha voz não vacilou.
— Estava lendo na estufa.
Ele deu um leve sorriso. O tipo de sorriso que não alcança os olhos.
— A estufa estava vazia. Ninguém te viu lá.
— Talvez ninguém tenha prestado atenção.
Ele levantou.
Veio até mim.
Passou os dedos pelo meu queixo, como quem acaricia uma boneca de porcelana. E depois sussurrou:
— Cuidado com o que esconde, minha filha. Algumas mentiras morrem afogadas. Outras... são enterradas vivas.
Pisquei devagar.
Ele sabia.
Ou pelo menos suspeitava.
E naquele instante, entendi: eu não era uma prisioneira apenas de segredos. Era prisioneira de um império de morte.
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Atualizado até capítulo 24
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