*PARTE I • **Passado...*
Certa vez, li em um livro que todos os adultos possuem recordações da infância que guardam como tesouros ou marcas. Embora eu ainda seja uma criança, percebo que, no futuro, as minhas recordações... bem, elas contêm um pouco de ambas.
Tenho apenas dez anos e tantas obrigações que, ao chegar à noite, mal consigo recordar todas as tarefas que tenho que cumprir durante o dia. No entanto, há algo que eu não consigo apagar e todas as noites, ao me deitar na minha cama, mesmo nos dias em que não os vejo, recordo-me das gargalhadas, dos gritos de felicidade e da sensação de liberdade ao correr pelas ruas empoeiradas de San Lucca.
Somos três: eu, Enrico e Antonio. Para desespero da minha mãe. Quando consigo escapar dela e estar com eles, vivo cada instante como se fosse o último da minha existência.
Possivelmente, dentro de mim, eu tenha consciência de que não será eterno, que eles seguirão suas vidas e eu estarei aprisionada no que a minha mãe idealizou para mim.
Enrico é o mais velho entre nós, com doze anos. Antonio é da minha idade e os amo como se fossem meus irmãos. Amigos desde a infância, estudamos juntos até que as escolas de San Lucca fecharam e começamos a estudar em casa.
Para mim, estudar em casa é um tormento. Minha mãe me pressiona muito. Além de ser a mais bela, preciso ser a mais instruída entre todas as garotas, não só de San Lucca, mas de toda a Itália. Ela repete isso constantemente em minha mente desde o momento em que acordo até a hora de dormir.
A melhor em todas as áreas! Ela frequentemente afirma que não aceitaria ser menos do que isso no futuro.
Hoje é um daqueles dias em que consegui um breve momento para brincar com eles, o que me deixa muito contente.
Quando vejo Antonio cair ao tentar escapar de Enrico, dou um sorriso. Estamos brincando de pega-pega em um dos poucos instantes em que consigo desfrutar de um pouco da infância que não é minha.
Quando percebe meu sorriso, Antonio corre em minha direção, alcançando-me rapidamente. Agora é a minha vez de os pegar. Aprecio que me enxerguem apenas como Elena, a menina capaz de correr tão velozmente quanto eles, e não como a futura Miss Universo que minha mãe me obriga a ser.
- Enrico\, me espera! – exclamo\, enquanto ele corre na minha frente\, desviando-se rapidamente de uma poça que espelha o céu cinza da cidade.
Ele é mais veloz que nós. Quando o chamo, ele olha para trás e dá um sorriso. Tenho certeza de que ele me aguardará para que eu possa alcançá-lo. Ele nunca me permite permanecer por muito tempo como a pegadora em nossa brincadeira. Na realidade, sempre nos unimos contra Antonio, o que incomoda o meu outro amigo, mas ele sempre nos perdoa.
- Elena\, seja rápida! - Enrico me desafia\, fingindo para seu irmão que estamos jogando de maneira equitativa\, mesmo sabendo que isso não é verdade.
Apresso os passos, sentindo o vento tocar meu rosto, enquanto os cabelos se desprendem. É uma experiência libertadora e quase selvagem. Por alguns instantes, sinto-me como uma criança, não uma boneca moldada por expectativas e com o rosto repleto de maquiagem.
- Bonequinha\, entre agora em casa! Você tem seu ritual de beleza agendado para hoje\, espero que não se tenha esquecido. - Antes que eu consiga alcançar Enrico\, escuto minha mãe me chamando.
A liberdade é realmente um pássaro que não costuma pousar na minha janela. Não faz muito tempo desde que saí para brincar e minha mãe logo surge no portão da nossa casa, com as mãos entrelaçadas na cintura e um rosto que expressa o prazer que sente ao me arrastar do meu breve voo e me prender em seu luxuoso cativeiro.
Não gosto desse apelido. Desejo derramar lágrimas todas as vezes que ela me chama de bonequinha. Representa tudo o que estou destinada a ser no futuro, tudo o que ela anseia e, sobretudo, tudo o que eu não quero me tornar.
O carinhoso apelido que ela me deu é uma constante recordação das expectativas que ela deposita em mim, o sonho de que um dia eu possa me tornar Miss Universo.
Quando paro a corrida, as lágrimas começam a pingar em meus olhos. Desloco-me pelo chão de terra batida, distanciando-me de Enrico e Antonio sem dizer adeus. Estou ciente de que eles ainda dispõem de alguns minutos para se divertirem antes de auxiliar meu pai na carpintaria.
- Mãe\, só mais cinco minutos! – suplico ao chegar à minha residência\, mesmo ciente de que isso não seria possível. Ela nunca me dá permissão para ficar um pouco mais.
- Nem pensar. Entre agora\, bonequinha. - A maneira como ela pronuncia o apelido é um lembrete frio de que tenho obrigações que não decidi assumir. Ela me conduz para o interior da casa.
Inspiro profundamente e lancei um olhar de despedida para Enrico e Antonio antes que ela fechasse a porta, me aprisionando em seu cárcere. Agora sinto que meus amigos estão ainda mais distantes de mim. Enrico acena com as mãos, um gesto de cumplicidade que carrega a promessa de que, em breve, poderemos nos divertir juntos.
Enrico é quem melhor me compreende. Estou ciente de que ele compreende o que sinto. Ele já apresenta certa maturidade aos doze anos. Ele vem me prometendo há algum tempo que, um dia, fugiremos juntos, que ele me libertará da minha mãe. Estou tentando confiar na sua promessa, mesmo sabendo que é quase inatingível; ela está sempre de olho em mim.
No entanto, ao caminhar para dentro de casa, permito-me sonhar que um dia ele honrará sua promessa.
Quando entro na sala, sinto o aroma de loções hidratantes e cremes para o cabelo, que preenchem meus sentidos de imediato, trocando o ar puro de liberdade pelo aroma artificial de rosas e lavanda.
Noto que minha mãe já tinha organizado tudo: o traje que eu deveria usar para a prática de caminhadas elegantes, as escovas de cabelo organizadas sobre a mesa, e o espelho que, em breve, irá espelhar a imagem que ela está a formar em mim.
A sua charmosa bonequinha...
- Elena\, vamos em frente\, sente-se. Precisamos assegurar que você esteja impecável para o próximo exame - ela declara sem sequer desviar o olhar de mim. Seria simples para ela perceber o quanto não desejo permanecer aqui. Não quero me transformar no que ela imagina\, quero permanecer apenas como uma criança. Ela se mantém focada em finalizar a arrumação dos frascos e pincéis na bancada\, como se fossem instrumentos para uma delicada cirurgia.
- Não quero participar do concurso. Mãe\, não desejo ser Miss Universo - sussurro\, com lágrimas nos olhos. A frase escapa de minha boca antes que eu consiga pronunciá-la.
Sempre que digo essas coisas, ela interrompe o que está fazendo para me encarar. Os seus olhos se cruzam com os meus por meio do espelho. Percebo a raiva em cada um deles e me acabo.
- O que foi que você falou? - Sua voz é um alerta para eu não repetir. Ela me disse anteriormente que eu estava proibida de dizer tais coisas.
- Eu só queria brincar um pouco mais. - Tento me corrigir rapidamente\, abaixando a cabeça com receio da penalidade que está por vir.
- Elena... - com uma raiva agora não mais contida em sua voz - você possui a chance que nenhuma outra garota desta cidade possui. Não desperdice sua habilidade e beleza ao se comportar como uma criança comum; o mundo está repleto delas. Não deixarei que você se torne apenas mais uma na multidão. - Suas mãos me puxam para perto sem delicadeza\, e sinto o frio do gel em meu cabelo.
Ela não me bate, não porque não quer, mas porque não pode danificar meu corpo perfeito com pancadas. Por um momento, eu... eu queria ser agredido, desejava experimentar algo além da desesperança sobre a minha existência.
Lágrimas escorrem pelos meus olhos e, conformada com o meu destino, permito que ela comece o processo e transforme meus cabelos desordenados e desordenados em cachos impecáveis e estruturados.
Observo o meu reflexo no espelho e, aos poucos, ele se torna diferente para mim, muito distinto da menina que momentos antes corria pelas ruas com seus amigos.
Enquanto ela me transforma na sua bonequinha favorita, exatamente como o apelido que me deu, ocasionalmente olho pela janela e vejo Enrico e Antonio correndo soltos, suas gargalhadas satirizando a minha prisão dourada, apesar de também sentir os olhos de Enrico sobre mim.
Ele me compreende e sente compaixão. Não me importo se ele sentir pena de mim se isso for o bastante para se empenhar em me retirar dessa casa um dia.
Estou ciente de que eles também não vão continuar brincando na rua por um longo período. San Lucca possui sua sombra própria pairando sobre si. Embora sejamos crianças, escutamos os sussurros dos adultos, as observações e o temor que sempre nos cerca.
Riccardo lidera a maior organização criminosa local e todos no país o temem. É dito que ele domina tudo com suas mãos de ferro, e apenas minha mãe parece ter algum respeito por ele, ou melhor, pelo poder que ele detém.
Os pais sempre mantêm seus filhos próximos ou escondidos. Todos temem que Riccardo os capture e os converta em soldados ou escravos de seus caprichos.
Eu mesma já experimentei o fardo do seu olhar em um concurso que participei. O seu olhar avaliativo me considerou como um produto em um leilão, não uma menina.
Nesse dia, eu estava representando a Itália em nível internacional. Fui resguardado pela minha claridade. Ele não tinha como agir contra mim quando o mundo inteiro me olhava com admiração. No entanto, eu senti medo. Temo que ele se aproxime de mim, mas também sei que outras crianças não têm a mesma sorte e acabam sendo raptadas por ele.
- Elena\, preste atenção\, não mantenha o pescoço rígido - minha mãe adverte\, puxando meu cabelo com força e me trazendo de volta à realidade dolorosa. - Essa é a sua oportunidade de transformar nossa existência. Se ela não consegue nem mesmo apoiar a cabeça no pescoço\, precisarei treiná-la ainda mais. - Meus olhos estão repletos de dor e ira. Eu sei o que está por vir. Ela está brava comigo e os dias vindouros serão um pesadelo.
Ela afirma que preciso ser perfeita, mas o que significa perfeição? Para ela, é a percepção que ela tem de mim, um rosto luminoso de sorrisos artificiais e encenados que ocultam temores e sonhos desfeitos. Para mim, a perfeição é poder brincar na lama com os garotos, gargalhar até doer a barriga, sentir o sol no rosto sem a preocupação de esconder as sombras que ela insiste em colocar nos meus olhos.
Mesmo sem que ninguém saiba, nem mesmo Antonio, em momentos de tristeza intensa ou quando fico muito tempo sozinha em casa, à noite, Entico atravessa os muros que nos separam e invade a janela do meu quarto para me fazer companhia.
Quando escuto a pedrinha bater na janela, tenho certeza de que é ele trazendo doces escondidos para mim. Minha mãe mantém uma dieta rígida para mim e o bolo de maçã que ela prepara é delicioso.
Ainda observando o exterior da casa através da janela, anseio que ele venha até mim hoje à noite. Em alguns dias, ao me ver em prantos, ele reafirma a promessa de fugirmos juntos um dia. Mesmo quando eu era criança, seus olhos estavam repletos de uma resolução avassaladora. "Vamos ser verdadeiramente livres", suas palavras reverberam em minha mente e tento acreditá-las.
A questão é que cada chamada da minha mãe, cada palavra carinhosa que sai da sua boca, me traz de volta à áspera realidade de que certos sonhos são tão vulneráveis quanto as asas de uma borboleta durante um vendaval.
Agora, diante do espelho, carregando a coroa recém adquirida de Miss Itália, não consigo enxergar uma vencedora. Percebo claramente quem sou: uma prisioneira!
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Atualizado até capítulo 56
Comments
Dulce Gama
coitada parece que Elena foi muito sofrida na adolescência não posso julgar porque não li o começo da história 🌹🌹🌹🌹🌹🎁🎁🎁🎁🎁👍👍👍👍👍
2025-04-08
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