Capítulo 3 – Jogo de Sombras e Promessas

O céu estava cinzento naquela manhã. A neblina pairava sobre os jardins como um véu de mistério, e o ar tinha o cheiro frio de chuva prestes a cair. Elira observava pela janela do salão de chá, onde gotas de orvalho escorriam lentamente pelos vidros.

Era o tipo de manhã que pedia silêncio — e talvez confissões.

Ela deveria estar revendo documentos do reino ao lado do conselheiro real, mas o rei havia cancelado a reunião de última hora. Irritado com os boatos de que o povo começava a clamar por mudanças. Boatos que, curiosamente, coincidiam com a presença recente do príncipe Auren em terras de Kael.

— Sempre que o céu se cobre, parece que os segredos do mundo ganham coragem para sair — disse uma voz masculina atrás dela.

Elira não precisou se virar. Auren.

— E o que o céu lhe inspiraria a confessar hoje, príncipe?

— Que sua ausência me inquieta mais do que qualquer tempestade.

Ela finalmente se virou. Ele estava ali, recostado na parede, com os braços cruzados e os olhos fixos nela como se o mundo estivesse suspenso entre uma palavra e outra.

— Não nos vemos há dois dias — comentou ela, tentando manter o tom neutro.

— Dois dias, sete horas e um punhado de pensamentos inconfessáveis.

Elira não conteve o riso breve. Auren tinha esse dom: transformava cada encontro num jogo onde o desejo era a peça principal, mas jamais movida cedo demais.

— Isso é perigoso.

— Perigoso seria continuar fingindo que não há fogo entre nós.

Ela se aproximou da mesa, fingindo buscar uma das taças de cristal. Auren acompanhou o movimento com os olhos, mas não se moveu. Quando ela ergueu a bebida aos lábios, ele falou de novo.

— O rei, dizem, perdeu o favor do povo. — A voz dele era baixa. — E da própria rainha?

Elira apoiou a taça com mais força do que o necessário.

— Há coisas que não se dizem nem quando o céu está nublado.

— Mas podem ser ditas com o corpo. Com os olhos.

Ele caminhou até ela. Parou a poucos centímetros. O perfume dele a envolveu de novo — um misto de couro, especiarias e um calor masculino inconfundível. Um arrepio percorreu sua espinha.

— Quando me olha assim — continuou ele — você esquece quem eu sou.

— E o que você é?

— Seu inimigo, teoricamente. Mas eu prefiro pensar que sou o primeiro homem a realmente enxergar você.

Elira fechou os olhos por um instante, sufocando o impulso de tocá-lo. Ele parecia ler seus pensamentos.

— Posso tocá-la?

Ela abriu os olhos. Havia vulnerabilidade ali, sim. Mas também coragem.

— Só a mão.

Ele estendeu a palma. Ela pousou a dela sobre a dele. O contato era quente. Intenso. E ainda assim, contido.

Ele virou a mão dela devagar e acariciou a parte interna do pulso com o polegar. O gesto era sutil, mas enviou ondas por todo o corpo de Elira.

— Você treme — disse ele, com um sorriso leve.

— Não é medo — ela respondeu.

— Eu sei.

Mais tarde naquele dia, Elira entrou na sala de música, onde os músicos da corte ensaiavam discretamente. Um dos salões menos frequentados do castelo, mas que ela amava por sua acústica e isolamento. Era ali que, quando mais jovem, ela sonhava em tocar harpa sem ninguém ouvir.

E foi ali que o destino decidiu brincar novamente.

Auren estava sentado diante do instrumento, os dedos dedilhando cordas com surpreendente delicadeza. Quando a viu, sorriu com prazer visível.

— Achei que viria.

— Acha muitas coisas, Alteza.

— Algumas delas estão certas.

Ele se levantou e a guiou até o banco da harpa.

— Sente-se. Quero ouvir você tocar.

— Não toco há anos.

— Tente. Por mim.

Elira hesitou, depois se deixou levar. Seus dedos tocaram as cordas, produzindo notas suaves e um pouco hesitantes. Auren a observava com a atenção de quem assiste a uma revelação.

— Isso... — ele disse baixinho. — Isso é o som da sua alma.

Ela parou de tocar e desviou o olhar, envergonhada.

— Você é mesmo assim com todas as mulheres?

— Com todas as mulheres que me tomam o fôlego. Até agora... só você.

Ele se aproximou mais. Seus dedos pousaram suavemente sobre os dela.

— Não precisa ter medo de mim.

— Tenho medo de mim mesma — confessou ela.

— Então, permita-se aos poucos. Um gesto de cada vez.

Ele entrelaçou os dedos aos dela. Os olhos estavam tão próximos que ela podia ver o brilho âmbar neles, a forma como a íris mudava de tom conforme a luz.

— Se eu pedisse para tocar seu rosto, você deixaria?

Elira hesitou, depois assentiu com um leve movimento de cabeça.

Auren levou a mão livre até o rosto dela, contornando com as costas dos dedos sua mandíbula, depois a curva do queixo, até a têmpora.

— Você é feita de mármore e fogo — sussurrou ele.

Ela fechou os olhos. Pela primeira vez em muito tempo, se sentia viva.

Mais tarde, no salão principal, durante o jantar, os olhares dos dois se cruzavam em silêncio. Auren, sentado entre os diplomatas estrangeiros, fingia participar das conversas. Mas seus olhos estavam sempre nela.

O rei Kael parecia irritado. Havia rumores de que seu exército perdera uma batalha importante no norte. Seu humor, já sombrio, se tornara quase cruel.

Durante a refeição, ele mal olhou para Elira. A atenção dele era voltada para uma das concubinas, uma jovem de cabelos dourados que ria alto demais.

Quando a concubina lhe tocou o braço, Elira se retirou da mesa sob o pretexto de dor de cabeça.

Auren a seguiu minutos depois.

Nos corredores escuros do castelo, encontrou-a diante de uma das tapeçarias antigas, os dedos pressionando as têmporas.

— Devo dizer que sua ausência deixou o salão um pouco mais frio — comentou ele.

Ela se virou, surpresa.

— Está me seguindo agora?

— Estou me preocupando.

— Isso... é perigoso. — Seus olhos estavam úmidos, embora ela tentasse esconder.

Auren se aproximou. Tomou uma mecha de seu cabelo e a envolveu entre os dedos.

— Posso tirar você daqui um dia, sabia?

— E para onde me levaria?

— Para um lugar onde os olhos que te tocam não sejam de desprezo. Onde as mãos que te alcancem não sejam de propriedade. Onde você possa ser... apenas Elira.

Ela respirou fundo.

— Eu não posso. Ainda não.

Ele assentiu, respeitoso. Mas sua voz veio baixa, quente.

— Então me deixe ser o lugar onde você respira, mesmo que só por um momento.

Naquela noite, Elira se deitou sem sono. Cada palavra de Auren, cada toque, cada olhar... tudo ecoava.

Ela passou os dedos pela pele do pulso, onde ele havia a tocado mais cedo. Ainda ardia. Um calor invisível.

E, pela primeira vez, ela não se sentiu culpada por desejar.

Não se sentiu fraca por sonhar.

Sentiu-se viva.

E no fundo do peito, começou a nascer algo perigoso. Doce. Incendiário.

Algo que só cresceria.

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