O dia amanheceu cinzento, com nuvens pesadas pairando sobre a cidade como um presságio. Clarisse estava na cozinha do seu apartamento, segurando uma das rosas pretas entre os dedos enquanto o café esfriava na caneca. O bilhete de Allan ainda estava na mesinha, e ela não conseguia evitar o sorriso que surgia toda vez que pensava nele. Havia algo nele — uma mistura de mistério e gentileza — que a intrigava. "Quem manda rosas pretas?", perguntou-se, rindo sozinha. Ela não sabia que, a poucos quarteirões dali, aquele gesto delicado era apenas a superfície de um abismo muito mais profundo.
Allan estava em um galpão abandonado na zona industrial, o eco de seus passos misturando-se ao som de gritos abafados. Dois homens de Bruna estavam amarrados em cadeiras, o sangue escorrendo de cortes frescos enquanto Gustavo terminava de "conversar" com eles. Allan observava, os braços cruzados, o rosto impassível. Mas sua mente não estava ali. Estava na Rua das Flores, no apartamento 302, imaginando o que Clarisse fazia naquele exato momento.
— Eles disseram que o próximo carregamento chega amanhã — informou Gustavo, limpando as mãos num pano já manchado. — Bruna tá tentando reforçar o território dela depois do recado que você deu.
Allan assentiu, mas sua voz saiu distante. — Então a gente pega amanhã. Sem erros.
Gustavo franziu a testa, notando a distração do chefe. — Tá tudo bem, Allan? Você tá... diferente.
— Tá tudo ótimo — cortou ele, o tom afiado como uma navalha. Ele virou as costas, pegando o casaco. — Me avisa quando tiver os detalhes. Vou resolver uma coisa.
Gustavo não perguntou mais, mas seus olhos seguiram Allan até a porta. Ele sabia que algo estava errado. E, com Melissa no seu encalço, a pressão para descobrir o que era só aumentava.
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Na livraria, o sino da porta tocou novamente no meio da tarde. Clarisse ergueu os olhos do balcão e lá estava ele, Allan, com o mesmo casaco preto e um olhar que parecia atravessar paredes. Desta vez, ele carregava o exemplar de *O Morro dos Ventos Uivantes* na mão.
— Terminei — disse ele, colocando o livro no balcão com um sorriso torto. — Você tava certa. É intenso.
Ela riu, surpresa. — Sério? Não achei que você ia ler mesmo. O que achou?
— Gostei do Heathcliff. Ele não desiste do que quer — respondeu Allan, os olhos fixos nos dela, carregados de um significado que ela ainda não entendia. — Mesmo que isso destrua ele.
Clarisse sentiu um arrepio, mas disfarçou com uma risada. — É, ele é meio louco. Mas acho que é isso que faz a história boa. Quer outro?
— Só se você vier tomar um café comigo pra me contar sobre ele — disse ele, inclinando-se um pouco sobre o balcão. A voz era suave, mas havia uma firmeza que a fez hesitar por um segundo.
Ela mordeu o lábio, pensando. — Tá bem. Mas só porque você leu o livro. Minha pausa é em meia hora.
— Perfeito — respondeu ele, recuando com um sorriso que parecia genuíno. Ele se sentou numa das poltronas velhas da livraria, esperando, enquanto Clarisse tentava ignorar o calor que subia pelo seu rosto. Ele era diferente de qualquer um que ela já tinha conhecido, e isso a assustava tanto quanto a atraía.
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Enquanto isso, Melissa estava em um restaurante caro no centro, o garfo girando distraidamente entre os dedos enquanto encarava o vidro escuro da janela. Do outro lado da mesa, Débora, uma das poucas pessoas que ela considerava uma aliada, observava-a com cautela.
— Você tá obcecada, Mel — disse Débora, cortando um pedaço de carne com precisão cirúrgica. — Ele é o Allan. Ele não pertence a ninguém.
Melissa riu, um som seco e cortante. — Ele pertence a mim, Débora. Sempre pertenceu. Essa garota... Clarisse, né? Ela é um inseto. E eu esmago insetos.
Débora ergueu uma sobrancelha, mas não discutiu. Ela conhecia Melissa o suficiente para saber que, quando ela colocava algo na cabeça, sangue era inevitável. — Só toma cuidado. Se o Allan descobrir que você tá mexendo com ela, ele não vai gostar.
— Ele não vai descobrir — retrucou Melissa, os olhos brilhando com malícia. — Não até ser tarde demais.
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Meia hora depois, Allan e Clarisse estavam sentados numa cafeteria pequena a poucos metros da livraria. O lugar cheirava a pão fresco e canela, um contraste gritante com o mundo de Allan. Ele segurava uma xícara de café preto, ouvindo Clarisse falar sobre livros com uma animação que o fazia querer sorrir — algo que ele raramente fazia.
— Então, eu cresci lendo essas histórias — disse ela, mexendo o cappuccino com uma colherzinha. — Minha mãe dizia que eu vivia com a cabeça nas nuvens. Acho que ela tinha razão.
— E agora? Ainda tá nas nuvens? — perguntou ele, o tom leve, mas os olhos intensos.
Ela riu, olhando para ele por cima da xícara. — Às vezes. Mas a vida real não deixa a gente ficar lá por muito tempo, né?
— Depende de quem tá no controle da sua vida — respondeu ele, a voz baixando um tom. Por um segundo, o ar entre eles mudou, como se ele tivesse deixado escapar algo que não deveria.
Clarisse franziu a testa, confusa. — Como assim?
Ele se recuperou rápido, dando um sorriso charmoso. — Nada. Só que às vezes a gente precisa de alguém pra trazer as nuvens de volta.
Ela sorriu, aliviada, e o momento passou. Mas Allan sentiu o peso das palavras que não disse. Ele queria ser aquele alguém para ela. Não só trazer as nuvens, mas o céu inteiro — mesmo que fosse um céu escuro, manchado de sangue.
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Naquela noite, enquanto Clarisse dormia em seu apartamento, Allan estava na sacada de um prédio alto, o vento frio batendo em seu rosto. Ele segurava um cigarro que não acendia, os olhos perdidos na cidade abaixo. A obsessão estava crescendo, enraizando-se como uma erva daninha. Ele queria protegê-la, mantê-la perto, mas também queria possuí-la, moldá-la ao seu mundo. E isso o assustava, porque Allan Kawa não tinha medo de nada — até agora.
Do outro lado da cidade, Melissa segurava uma faca pequena, o reflexo da lâmina dançando em seus olhos. Ela sabia onde Clarisse morava. Sabia que Allan estava se aproximando dela. E ela não ia deixar isso acontecer sem lutar. O jogo estava apenas começando, e o tabuleiro já estava tingido de vermelho.
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Atualizado até capítulo 26
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