O vento cortava o ar frio daquela noite, e Natsumi estava deitada, observando as sombras nas paredes, tentando se desligar das memórias que continuavam a ecoar em sua mente. Mas era impossível. Elas estavam lá, sempre presentes, como uma sombra que não a deixava escapar.
Ela se lembrava com uma clareza horrível do dia em que seu irmão mais novo, Jun, foi chamado pelo pai para voltar para casa. Ele estava brincando com um amiguinho na rua, correndo, rindo, sem perceber a tempestade que se aproximava. Natsumi também estava fora, mas o medo já havia começado a apertar seu coração quando ela viu seu irmão se afastar da casa, indo ao encontro do pai. Ela sabia que algo não estava certo, sabia que aquela cena não era boa, mas estava longe demais para impedir.
“Jun! Volte aqui!” ela gritara, mas ele não ouvira. As palavras se perdiam no ar, como se a casa fosse uma prisão, onde qualquer tentativa de comunicação parecia inútil.
Dentro do quarto, Natsumi não teve tempo de reagir. O estalo da madeira contra o corpo de seu irmão foi o primeiro som que a fez congelar. Ela correu até a janela quebrada, tentando espiar, mas não havia muito o que ver, apenas sombras, mas os gritos de Jun eram claros como o som de um trovão.
“Você não me obedece, seu inútil! Vai aprender a lição agora!” A voz do pai de Natsumi, cheia de raiva, estava distorcida pela fúria, e as palavras que ele proferia eram venenosas, como lâminas cortando sua alma. As palavras, as batidas... O som da madeira se quebrando na cabeça de seu irmão ainda ecoava em sua mente, um som que a fazia querer gritar, mas ela não conseguia. O medo a paralisava, e o grito sufocava em sua garganta.
Jun estava lá fora, sendo espancado, enquanto ela, Natsumi, não podia fazer nada. A impotência tomava conta dela, e lágrimas de frustração se misturavam à dor. Ela apertava as mãos contra os ouvidos, tentando se isolar do som, mas não havia como escapar. Aquelas cenas ficavam gravadas em sua mente como um filme que não podia ser pausado.
O irmão mais velho, Takeshi, entrou em ação. Ele sempre foi o mais corajoso, o mais responsável. Natsumi sabia que ele não suportaria ver Jun ser massacrado daquela maneira. Ele correu pela rua em direção à casa do vizinho, pedindo ajuda, convocando os cinco homens. Ela podia ouvir os passos apressados, o som das vozes abafadas, mas não conseguia ver o que acontecia.
Quando os homens chegaram à casa, o pai de Natsumi parou. Ele se amedrontou com a presença deles, mas, de alguma forma, nada aconteceu. Os homens, em vez de interceder, apenas ficaram parados, assistindo ao sofrimento, como se tivessem sido despojados de sua humanidade, como se tivessem sido reduzidos a espectadores impotentes. Natsumi nunca soubera o que os motivara a não agir. Talvez fosse o medo do pai, a aceitação da crueldade como parte da vida, talvez eles estivessem tão acostumados com a violência que se tornaram insensíveis a ela.
Mas naquele momento, o pior foi o silêncio da mãe. Ela sempre se mantinha em silêncio, como uma sombra que nada dizia, que nada fazia. Seu olhar estava fixo, vazio, e ela não intervenha. Ela nunca fez nada. Natsumi lembrava da expressão da mãe durante os abusos. Não era o medo ou o arrependimento, mas uma aceitação silenciosa de que aquilo fazia parte de suas vidas.
“Por que ele é tão cruel?” Natsumi se perguntava, sempre se perguntando. O que os seus irmãos haviam feito para merecer tamanha dor? O que ela própria fizera para ser tratada daquela forma? Não havia respostas fáceis. Havia apenas uma dor crescente, um sentimento de injustiça que jamais seria apagado.
Natsumi, naquele momento, já não se via como uma criança. Ela não sabia mais o que significava ser criança. Mas, em algum lugar dentro de si, ela ainda acreditava que existia uma chance, mesmo que remota, de fugir de tudo aquilo. Mas como? Como poderia escapar de um destino tão cruel, de uma família tão destruída? Mesmo agora, enquanto sua barriga roncava de fome, ela sentia uma força latente, uma força silenciosa, como se fosse uma chama que não fosse apagada, mesmo sob o peso da dor.
E Jun, seu irmão, estava ali, recuperando-se, curado pela intervenção de Takeshi, mas ainda marcado pela brutalidade. Ela sabia que nada seria igual depois daquele dia. Eles estavam vivos, mas uma parte de suas almas, talvez, já estivesse perdida.
E a pergunta que mais ecoava em sua mente era: por quanto tempo mais poderiam resistir? Até quando a crueldade poderia dominar suas vidas antes que perdessem o pouco de humanidade que lhes restava? Natsumi sentia o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Seus irmãos, ainda tão pequenos, dependiam dela. Ela não podia falhar. Mesmo que o regime, o pai e a mãe tivessem tentado destruí-los, ela sabia que algo dentro dela ainda lutava. E ela faria qualquer coisa para proteger os outros.
Mas dentro dela, uma nova dor surgia: a raiva de não poder fazer mais, de não poder fazer o que precisava ser feito. E, à medida que o vento frio soprava pela janela quebrada, Natsumi sabia que, ao contrário do que seu pai e o regime queriam, ela e seus irmãos ainda estavam vivos. Mas quanto mais sobrevivessem, mais a guerra interna deles crescia — e talvez isso fosse o único caminho para a libertação.
Os olhos de Natsumi estavam vazios, mas dentro de sua mente, as lembranças voltavam com a força de um furacão. Ela sabia que aquelas imagens estavam queimando sua alma, e ao mesmo tempo, eram as únicas coisas que restavam de uma infância marcada pela dor.
O pai, aquele homem de olhos frios e mão forte, sempre foi o terror dentro de sua casa. Cada dia era um pesadelo, mas havia algo que se repetia mais do que qualquer outra coisa: o aperto de suas mãos ao redor do pescoço de Natsumi, o toque gelado e ameaçador que roubava sua respiração, que a deixava tonta, sem forças. A sensação de sufocar, de não conseguir respirar, era uma tortura que ia além do físico. Aquela dor, aquele pânico que se espalhava pelo corpo, não podia ser desfeita nem com o tempo, pois se enterrava na alma, se tornando uma marca indelével.
"Você não é nada", ele sempre dizia, com a voz carregada de desprezo, enquanto suas mãos apertavam cada vez mais. "Nada além de um estorvo."
Cada vez que ele fazia isso, Natsumi sentia uma sensação de desespero, uma solidão crescente. Mesmo em meio à dor, ela sentia a presença dos irmãos ao seu redor, vendo-os passar pelas mesmas torturas. Seus olhos cheios de medo, mas ela sabia que nenhum de vocês tinha saída. E a mãe? Ela observava, sempre em silêncio, com aquele olhar perdido. Nunca fez nada. Como se a crueldade fosse algo normal.
Ela lembrava de como, quando o pai se cansava dela, ele ia atrás de seus irmãos. Às vezes, ele começava com o mais novo, Koharu, ou com o pequeno Daichi, e as mãos fortes se fechavam ao redor de seus pescoços, empurrando-os para o chão. Eles mal podiam entender o que estava acontecendo, mas sentiam a mesma dor, o mesmo pânico. E Natsumi, mesmo quando era sua vez, ficava paralisada, incapaz de fazer mais do que observar o sofrimento deles. Era um ciclo sem fim. Sempre mais dor, sempre mais gritos.
Em meio a tudo isso, ela questionava por que não havia uma válvula de escape. Como alguém podia ser tão cruel com os próprios filhos? O que eles haviam feito de errado? E por que sua mãe nada dizia? Ela não se lembrava mais de quando a mãe tinha se tornado uma sombra silenciosa, mas já não a via como uma mãe. Aquele ser frágil e submisso só contribuía para a perpetuação da violência, tornando-se cúmplice naqueles momentos de sufocamento.
Com o tempo, Natsumi se acostumou com a dor. Ela aprendeu a viver com o medo, a perceber o momento exato em que a mão do pai se levantava para pegar seu pescoço, e a como o ar se tornava mais escasso a cada segundo. Mas o pior não era a dor física. O pior era o que isso fazia com a alma, com a sensação de ser nada, de não ter valor. O sufocamento não parava quando ele parava de apertar. Ele ficava lá, dentro dela, em sua mente e em seu coração, consumindo tudo.
Ela sempre se perguntava, depois de cada sessão de tortura, o que teria acontecido se alguém tivesse feito algo. Se alguém tivesse se oposto, se tivesse feito justiça. Mas sabia que não podia esperar por isso. O regime já tinha tomado a sua casa, suas vidas, e a violência era a linguagem deles. A resposta do pai e da mãe para o sofrimento nunca mudava. Eles nunca se importaram com os filhos. Eram meros peões no jogo de uma sociedade opressora, uma sociedade que as tratava como ferramentas, preparadas para serem descartadas assim que não servissem mais.
Naqueles momentos, Natsumi sentia que o amor era um conceito distante, algo que ela não conseguiria alcançar. O único amor que existia era o amor entre seus irmãos, e isso era a única coisa que a fazia continuar. Ela sabia que não importava o quanto o pai tentasse destruí-los, o quanto o regime tentasse esmagá-los, a união entre ela e seus irmãos era algo que nada nem ninguém poderia roubar.
E foi naquele momento que ela teve certeza de algo: **não importava o que acontecesse, ela lutaria por eles.** Eles eram a única razão para ela continuar respirando. Mesmo que o pai, o regime, a dor e o sofrimento tentassem destruí-los, ela faria o impossível para protegê-los. Eles mereciam uma chance de viver, mesmo que o mundo ao redor deles fosse consumido pela escuridão.
Ela sabia que, algum dia, se eles sobrevivessem, ela teria que fazer justiça — não apenas pela dor que havia sofrido, mas por tudo o que eles haviam sido forçados a suportar. Mesmo que ela tivesse que lutar contra o próprio regime, Natsumi sabia que uma faísca de revolta já estava crescendo dentro dela. Não seria fácil, e o caminho à frente estava cheio de sombras, mas ela estava pronta. Porque, ao contrário de seu pai, ela nunca iria sufocar seus irmãos, nem suas esperanças.
E enquanto o vento cortava o ar gélido daquela noite, Natsumi fez uma promessa silenciosa a si mesma: ela e seus irmãos sairiam daquele inferno, ou morrendo tentando. Porque, no fim das contas, o único poder real que eles tinham era o amor que compartilhavam.
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Atualizado até capítulo 60
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