Eu não quero me casar

*Brasil, Paraíba, 2023

Lara Beatrice Morabito. Dezessete anos. Um metro e oitenta de pura contradição. Morena, olhos verde-esmeralda herdados da avó siciliana. Temperamento que ninguém conseguia dobrar — nem mesmo a máfia.

Mas, no fundo, eu já estava cansada.

Cansada de ser tratada como um enfeite raro, como uma boneca de porcelana guardada a sete chaves.

“Lara, você tem que aprender piano porque seu noivo gosta de ouvir.”

“Lara, você precisa ser perfeita em suas maneiras, afinal, vai receber pessoas importantes.”

“Lara, não fale palavrão, senhoras da máfia são meigas em seus atos.”

Eu não aguento mais.

Só queria um dia comum. Um só. Sair sem escolta. Rir alto. Falar o que penso sem medo de alguém ouvir e contar. Tomar um sorvete na calçada. Receber uma mensagem de alguém que me ache bonita — e que não seja o futuro Don me monitorando à distância.

Dezessete anos e nem um beijo. Nem um toque verdadeiro. Tudo cercado. Controlado.

Até minhas aulas são escolhidas por ele — o tal do noivo que nunca apareceu, mas vive mandando ordens como se já fosse dono de mim. Tiro, etiqueta, defesa pessoal. Sempre com instrutoras mulheres, porque ele não permite que outro homem me toque.

Ele não me conhece. Nunca me viu. Mas quer me moldar à imagem que idealizou. Como se eu fosse uma estátua sendo esculpida para agradar os olhos dele.

É sufocante.

E quando tento respirar, vem a voz da minha mãe — doce, mas impregnada de obediência:

— Lara, você fez dezessete anos. Logo seu noivo deve vir te conhecer. Aí vai ver como ele é bonito e vai se apaixonar por ele.

— Mãe, eu odeio ele. Minha vida inteira foi ouvindo o quanto ele é bonito, mas eu não quero me casar.

Ela suspira, desviando o olhar como quem não suporta ver a dor da filha. Mas sabe que não tem saída. Ela mesma não teve.

Se ela soubesse quantas vezes sonhei com outro futuro pra nós duas… Se ela soubesse o quanto dói dizer essas coisas sabendo que está matando a vontade de viver da própria filha.

Mas o mundo em que vivemos não aceita revoltas. Não perdoa mulheres rebeldes. Ou você obedece, ou vê quem ama pagar o preço.

— Filha, somos parte de um grupo. Não questionamos decisões. E você vai fazer a sua parte, sem contestar.

— Não tem nada que eu possa fazer para que ele desista de mim?

— Isso é um acordo de família. Nem se ele quisesse, poderia desistir de você.

Nem se ele quisesse... E, às vezes, eu até acho que ele quer.

Ouvi coisas. Dizem que o Don jovem, o seu prometido, tem coração. Mas aqui, coração não é luxo que se use à mostra. Aqui, ordens são ordens.

E Lara ainda não entende — mas se entender cedo demais, pode se quebrar.

— Nossa… somos dois peões nesse jogo.

— Não, filha. Eu, seu pai e seu irmão somos peões. Você e Antônio são o rei e a rainha.

— Mas nem podemos mandar em nossas vidas. Como podemos ser rei e rainha?

Ela sorri de canto. Mas não é um sorriso alegre — é resignado. Quase triste.

— Mais pra frente você vai entender. Tente não se rebelar, senão seu irmão pagará com a vida.

— Um irmão que eu vi duas vezes na vida.

— Mas que tem seu sangue. E é um menino bom.

E é por ele, por você, por mim... que eu continuo. Fingindo força, passando regras, apagando incêndios no olhar da minha filha.

Mas eu vejo. Vejo o fogo. E tenho medo de que um dia ela queime o mundo inteiro — ou seja queimada por ele.

Lara — Sozinha

O som da porta se fechando atrás da minha mãe ecoou como um ponto final. Fiquei parada no meio do quarto, com as mãos cerradas ao lado do corpo, tentando engolir o nó que se formava na garganta.

Não chore, Lara. Você não chora. Não na frente deles.

Andei até a janela, tirei a cortina e encostei a testa no vidro frio. Lá fora, o jardim estava silencioso. Tudo tão arrumado, tão perfeitamente simétrico... como a minha vida. Bela por fora. Vazia por dentro.

Às vezes eu me pergunto quem sou além das ordens, dos vestidos de seda e das aulas de etiqueta. Quem eu seria se tivesse nascido em outro lugar. Talvez estivesse agora em uma escola comum, com amigas bobas, rindo de vídeos no celular. Talvez tivesse um diário escondido debaixo do colchão e alguém por quem suspirar.

Aqui, o que eu tenho é um piano que toco para agradar um homem que nunca vi. Uma arma guardada na gaveta da cômoda. E vigilância. Sempre vigilância.

Me sentei no chão, encostando as costas na parede, e abracei os joelhos. O silêncio me engoliu devagar. Meus olhos ardiam, mas não deixei as lágrimas caírem.

Eu queria fugir. Correr até perder o fôlego. Gritar o mais alto que conseguisse. Me sentir viva, pelo menos por um instante.

Mas só consegui fechar os olhos e imaginar…

Imaginei alguém me vendo. Não como "a noiva do Don", mas como Lara. Alguém que olhasse nos meus olhos e dissesse: "Você não precisa ser perfeita."

Alguém que me libertasse — ou ao menos me escutasse.

Um barulho lá fora me fez levantar a cabeça. Passos no jardim. Me aproximei da janela, mas não havia ninguém. Só o vento balançando as folhas da magnólia. Ainda assim… por um segundo, juro que senti. Como se alguém me observasse. Não com ameaça, mas com curiosidade.

Voltei para o quarto. Tranquei a porta. Abri o piano, mas não toquei. Abri a gaveta e encarei a arma.

Depois fechei tudo de novo.

Hoje não.

Hoje só quero lembrar como é ser uma menina.

Mesmo que o mundo diga que eu nasci para ser rainha.

*Itália, Calábria, 2023

Antônio Maori, Capo da 'Ndrangheta.

Trinta e quatro anos, 1,90 m, corpo escultural, olhos negros, cabelos longos.

Uma cicatriz vai da orelha ao queixo. Alguns dizem que ela dá um ar de perigo a quem o encara de frente.

Mas, para Antônio, é uma lembrança do dia em que seu pai morreu para salvá-lo. Nesse mesmo dia, ele se tornou o Capo, e seu melhor amigo, seu Consigliere.

— Tony, minha irmã completou 17 anos. Trouxe uma foto dela para você ver — disse Rodrigo, entrando com um envelope nas mãos.

— Rodrigo, sei que seu pai e sua madrasta devem estar cuidando bem dela. Mas... será que ela vai gostar de mim?

— Para com isso, Antônio. Ela não tem escolha. Vai cumprir a parte dela no acordo. Está se tornando uma mulher linda. Até eu, que sou irmão dela, admiro a beleza. Olha a foto. Fiz uma cópia para você.

— Deixa aí na mesa. Depois eu olho.

— Tudo bem. Vou fazer meu trabalho.

Depois que meu amigo saiu, fiquei olhando a foto virada em cima da mesa. Hesitei. Aproximei-me, coloquei a mão sobre ela e fiquei parado.

Falei para mim mesmo:

Coragem, Antônio. Ela não pode te rejeitar por uma foto. Ela ainda não viu a cicatriz.

Virei a foto.

Quando vi aqueles olhos verdes sorrindo para mim, algo aqueceu dentro do meu peito. Toquei a imagem e me sentei na cadeira. Esta é minha noiva.

— Você é muito bonita… Será que está aceitando esse casamento tão de boa como estão me fazendo crer? Será que, quando me conhecer, vai virar o rosto como fazem as mulheres que saem comigo, só para não ver minha cicatriz?

— Se você me rejeitar... como vou conseguir fazer de você minha esposa?

Talvez seja hora de ir ao Brasil conhecê-la, minha linda...

Minha mãe entrou no escritório. Eu estava tão focado na foto que só percebi quando ela tocou meu ombro.

— Essa é minha futura nora? Nossa, como ela é bonita, Antônio! Que olhos verdes… Eu conheci a mãe dela. Esses olhos, com certeza, são da mãe. Mas será que ela é forte o bastante para aguentar nossa vida? Parece uma criança…

— Será que ela vai gostar de mim?

— Antônio, se você mostrar seu lado carinhoso, acho que não tem nada a temer. Mas ela não tem que apenas gostar de você. Ela tem que ser perfeita. Nossa vida não é para qualquer um. Você deve avaliar se ela tem sangue-frio suficiente para fazer o que precisa ser feito.

— Estou pensando em ir ao Brasil conhecê-la. O que a senhora acha?

— Se tem vontade, vá. Vocês ainda terão quase um ano para se conhecerem. Mas me prometa: se ela não for forte o bastante, você vai desfazer esse compromisso.

— Foi meu pai quem fez esse compromisso. Eu devo honrar o nome dele.

— Se ela for fraca, se não servir para assumir o lugar como dama da máfia, você vai precisar arrumar uma concubina.

— Nunca farei isso. Eu vou respeitar meu casamento. E pode deixar que sei tomar minhas próprias decisões.

— Não precisa se irritar comigo. Lembre-se: eu só quero o seu bem.

— Vou conversar com Rodrigo. Acho que ele vai querer visitar o pai dele.

— Isso, filho. Leve seu amigo com você. E lembre-se: mostre para ela seu melhor lado, não o Capo implacável. Me promete que, se ela não for o que precisamos, você vai deixá-la com os pais.

— Vou tentar, mãe. Prometo tentar.

Minha mãe me deu um beijo e foi cuidar dos afazeres. Como ainda não me casei, ela continua como dama da máfia.

Sei que ela não vê a hora de isso mudar, porque sai com o motorista — e só poderá assumir oficialmente o relacionamento quando não for mais dama da máfia.

Sei também que ela preferia uma nora em quem confiasse... e não uma estranha.

Mandei uma mensagem pedindo que meu Consigliere viesse me ver com urgência. Ele respondeu com um “joia”.

Agora, deixa eu pensar no que fazer ao chegar ao Brasil. Acho que não vou planejar nada — vou resolver os problemas conforme surgirem.

Perto da hora do almoço, Rodrigo chegou ao meu escritório.

— Antônio, o que aconteceu para me chamar com tanta urgência? Estive aqui mais cedo com você, não me disse nada.

— Rodrigo, quero ir ao Brasil conhecer minha noiva. E quero você comigo.

Ele me encarou por alguns segundos.

— Tudo bem. Quando vamos?

— Pensei em organizar tudo e partirmos daqui a uma semana. Mas não diga nada ao seu pai. Quero fazer uma surpresa.

— Combinado. Vou organizar tudo. Você fala com o Sottocapo, para avisar que ele ficará no seu lugar.

— Já pedi que ele viesse. Deve chegar em breve.

Ficamos conversando mais um pouco, organizando os detalhes para passarmos alguns dias fora.

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Comments

Sol Oliveira

Sol Oliveira

Isso mesmo, vai conhecer sua futura esposa, mais não fale quem vc é, só saia, conversem e vamos ver se vai ter química entre vcs.
/Joyful//Joyful//Joyful//Ok//Good/

2025-08-01

0

Ana Alice

Ana Alice

Mais uma vez... infelizmente é a história da máfia italiana. Essa foto não favoreceu a descrição sobre ele...

2025-05-16

1

roseli rosa martins floriano

roseli rosa martins floriano

não conta para ele, senão como ele vai ter coragem de vir ao Brasil?

2025-07-02

1

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