CAPÍTULO IV

Aos poucos, a cerca que delimitava o espaço das terras de Kallan foi ficando para trás, mas o brilho das chamas e a fumaça ainda podiam ser vistos mesmo a vários metros floresta adentro. Eu não gostava daquela sensação. Era como se tivesse revivido o pesadelo que me assombra desde os meus doze anos. Aquele brilho incandescente às minhas costas, o cheiro da fumaça cobrindo meu corpo e minha respiração, a noite fria misturada com o calor da adrenalina…

E-Eu não queria ver aquilo de novo. Não queria aquelas imagens correndo na minha cabeça.

Por favor, pare com isso, suplicava para minha mente. Por favor, pare!

De repente, senti algo me envolvendo num forte abraço. Era quente, mas não do tipo que me fazia lembrar daquelas imagens; era aconchegante e tranquilizador.

— Tá tudo bem, Greg — disse Elly, com a mão no meu peito. — Eu tô aqui.

Lágrimas irromperam dos meus olhos. Eu não podia evitar. Minha respiração, mais que ofegante, foi se acalmando lentamente. Quando me dei conta, estava escorado no tronco de uma árvore numa clareira, a luz da lua cheia passando por entre os galhos e iluminando o espaço circular a céu aberto onde nos encontrávamos.

Elly estava ali, bem ao meu lado, limpando minhas lágrimas enquanto eu encarava seus olhos, agora da cor de uma amora madura, que me observavam com consolo.

— Você teve outra crise enquanto fugimos — explicou o óbvio, mas eu não me importava com isso àquela altura. Só precisava do calor do seu abraço e daqueles olhos, que afastavam tudo o que havia de mais ruim em mim. — Mas não podemos continuar parados aqui. Ainda estamos próximos da área de cultivo.

Me afastei do abraço dele e enxuguei o resto das lágrimas que molhavam meu rosto, me colocando de pé e recompondo minha sanidade. Eu precisava fazer isso se quisesse estar o mais longe possível daquele inferno.

Estava de costas para Elly. Não conseguia encará-lo naquele estado, mesmo não sendo a primeira vez que isso acontecia.

— Por quanto tempo eu fiquei… você sabe? — perguntei, a voz saindo tímida, quase com vergonha.

— Apenas alguns minutos — respondeu Elly. — O suficiente para eu pedir ajuda a uma das dríades da floresta e ela me contar o caminho. — Ele apontou o indicador para noroeste. — Tem um rio a poucos metros seguindo naquela direção.

Eu ia perguntar por que ele mesmo não sentia o caminho até um local seguro, mas logo percebi que seria uma pergunta idiota. A mãe dele era uma dríade de Amora-do-Himalaia, uma planta menor. Só as dríades de árvores, especialmente as de florestas, têm essa habilidade, assim como os filhos de Deméter. Se eu não estivesse tendo uma crise idiota, poderia ter encontrado o caminho sozinho. Mas, mentalmente e fisicamente – com bastante ênfase no “fisicamente” –, não ia reclamar de uma ajuda.

— A correnteza é bem forte — continuou ele. — Mas a Abeto aqui disse que as náiades vão nos ajudar a chegar num local seguro.

Eu não tinha percebido, mas atrás do tronco do pinheiro em que me apoiava havia uma jovem garota linda. Seu cabelo era longo e esverdeado, como as agulhas macias de um pinheiro, caindo em camadas que pareciam balançar ao vento mesmo sem brisa. A pele tinha um tom acinzentado suave, remetendo à casca áspera da árvore, e os olhos eram de um castanho profundo, como madeira recém-cortada. Ela me olhava envergonhada, tentando se esconder ao ponto de quase se fundir com o tronco – o que não seria impossível. Mas sua expressão não era de medo; era mais como a curiosidade de ver algo sem coragem suficiente para se aproximar.

Sorri para ela, o que me surpreendeu um pouco, já que não tinha muitos motivos bons para isso.

— Obrigado pela ajuda, Abeto.

Se uma árvore podia ficar vermelha de vergonha, eu não sabia, mas o rosto dela parecia mais um tronco de acácia prestes a explodir do que o do seu próprio pinheiro. Ela soltou um:

— De nada — com as mãos no rosto, envergonhada, antes de se transformar numa névoa com cheiro de pinheiro, dissolvendo-se no ar e sendo levada pelo vento frio da noite.

Olhei para Elly, e sua expressão beirava o ciúme e a vontade de sair andando na frente, irritado. Mas ele ficou onde estava, apenas cruzando os braços e bufando.

— É melhor a gente ir andando... Nunca se sabe quando algum galho pode cair na cabeça de alguém e ter outra coisa junto.

Soltei uma risadinha. Não podia acreditar no que estava vendo.

— Não vai me dizer que está com… ciúmes? — perguntei, e isso foi uma péssima ideia.

— Por que eu estaria com ciúmes de um pinheiro? — retrucou Elly, cedendo à vontade de andar na frente. — Eles não são tão bonitos assim... A não ser, é claro, que você prefira plantas maiores...

Não pude deixar de rir novamente, mesmo que fosse bem baixinho. Era impossível para mim não achar Elly fofo quando estava com ciúmes, mesmo que não admitisse isso. Então alcancei ele e fiquei ao seu lado, dando um beijinho no seu rosto.

— Na verdade, eu prefiro as amoras… Elas são mais doces e cheirosas.

Percebi de soslaio um sorriso de vergonha em seu rosto, o que me deixou feliz.

— Vamos — disse, tomando a frente. — Ainda temos um bom caminho até o rio.

                                        {o}

Enquanto passávamos por pinheiros e mais pinheiros, o ambiente levemente seco se tornava úmido, e musgos começavam a surgir em toda parte, cobrindo troncos e grandes entulhos de pedras espalhados em lugares aleatórios. Era um sinal claro de que estávamos no caminho certo. Cruzamos um riacho quase vazio, e uma náiade que vivia naquelas águas quase amassou minha cabeça com uma pedra por eu ter pisado nela, confundindo-a com uma das rochas. Não saí de lá antes de levar uns bons chingos em grego antigo e um jato de água na cara que me deixou ensopado.

Elly não conseguiu esconder o quanto achou a situação engraçada, mesmo tentando disfarçar – talvez uma pequena vingança por eu ter deixado ele com ciúmes mais cedo. Não tinha como ou com o que me secar, então precisei aguentar o frio cortando meus ossos a cada sopro de vento que nos atingia.

Tentei me distrair do desconforto puxando conversa com Elly, que me abraçava sempre que eu tremia como um cachorro na chuva. Ao longo do caminho, ele me contou que a maioria das dríades do bosque não respondeu quando ele tentou contatá-las mentalmente pedindo ajuda. Segundo a Abeto, elas estavam ocupadas demais, preocupadas com a explosão e o incêndio que começaram na área de cultivo, temendo ser as próximas vítimas do fogo e ansiosas pelas irmãs que viviam nos limites entre a floresta e a cerca. Algo me dizia que havia mais por trás disso, mas eu não tinha energia para cavar mais fundo agora.

O cheiro de terra úmida e o ar pesado foram ficando mais intensos, até que o labirinto de árvores pareceu se abrir mais à frente. Ao atravessarmos, o calor úmido e o silêncio da floresta foram substituídos pela brisa fresca das águas e pelo som das correntezas de um grande rio. O solo agora era de cascalho, formando uma espécie de praia ao redor do curso d’água, o que tornava a vista ainda mais bonita. Não dava para saber até onde o rio ia; ele fazia uma curva brusca a quase um quilômetro dali, e os pinheiros altos bloqueavam qualquer visão além disso.

Me aproximei da margem e me abaixei para beber um pouco de água. Sim, era meio nojento, mas eu já tinha feito isso inúmeras vezes enquanto vagava pelas florestas sem rumo, tentando sobreviver. Só não cheguei à sanidade de um maluco solitário porque encontrei meu primeiro acampamento de semideuses – que não seria o único. Era bem simples, até demais, mas me ajudou a manter a cabeça no lugar.

— Agora é só chamar as náiades. Ou esperar, na verdade. Não sei como funcionam os espíritos das águas — disse Elly, cruzando os braços.

Eu me levantei, limpando a boca com a manga da camisa encharcada, e olhei para o rio. A correnteza era forte, como a Abeto tinha avisado, mas as águas pareciam quase vivas, refletindo a luz da lua em tons prateados. 

Era hipnótico, quase me convidando para outro banho de água doce. Mas algo na floresta chamou minha atenção. Virei-me para a imensidão de pinheiros e arbustos e senti que alguma coisa nos observava. Não sabia o que era, mas a presença que se movia entre os troncos e montes de plantas era tão fria que quase escapava aos meus sentidos aguçados para a flora.

— Tem alguém aqui — avisei Elly, desembainhando minha adaga sem tirar os olhos da floresta.

Elly virou-se na mesma direção, preocupado, e pegou seu arco. Bom, como não tinha mais flechas, ele teria que improvisar, segurando-o como se fosse um taco.

De repente, um grupo de arbustos revelou um movimento maior entre eles, mas já era tarde demais.

— Gregory! — chamou Elly, assustado.

Quando meus olhos encontraram os dele, Elly estava desarmado. O arco jazia entre o cascalho, e suas mãos estavam erguidas, enquanto a ponta de uma lâmina obscura, que parecia feita de fumaça, pairava próxima ao seu pescoço. O desespero poderia ter me dominado, mas a dúvida e a surpresa falaram mais alto. Diante de nós estava um garoto, talvez da minha idade ou da de Elly – dois anos mais velho que eu. Seu cabelo escuro era cortado num mullet, curto nas laterais e na frente, mas com uma cauda longa e desgrenhada caindo sobre a nuca. Os olhos eram profundos e misteriosos, como poços negros que engoliam a luz da lua, e a pele pálida refletia um brilho fantasmagórico sob o luar. Ele usava uma camiseta roxa desbotada do Metallica, com o logo meio apagado, uma calça jeans surrada com rasgos nos joelhos e um All Star preto velho, coberto de lama seca e manchas escuras. No canto inferior da boca, uma cicatriz vertical marcava seu rosto, semelhante à de Kallan, mas mais discreta e reta, como se tivesse sido feita por um corte preciso.

O olhar frio e impiedoso que ele lançava sobre Elly fazia meu namorado tremer, como se aquele garoto pudesse fatiar a alma dele em pedacinhos.

Quem era ele? Como tinha chegado ali? Que espada sinistra era aquela? Essas perguntas giravam na minha cabeça, mas o que saiu da minha boca foi bem diferente.

— Você trabalha para Kallan, não é? — perguntei.

O garoto não parecia interessado em responder, mas abriu a boca sem desviar os olhos de Elly.

— Não sei do que está falando — disse, e havia um tom de verdade nisso, pelo menos em parte.

— Então o que você quer? — insisti. — Nós não temos nada para oferecer.

Seus olhos finalmente passaram de Elly para mim, e senti o mesmo desconforto que meu namorado. Ele parecia confiante de que Elly não reagiria – o que era tão idiota quanto correr na direção de três cães infernais do tamanho de um micro-ônibus. Eu esperava que ele soubesse disso.

— Você deve ser o Gregory, certo? — perguntou ele.

Aquela pergunta me assustou de verdade.

— S-Sou, mas—

— Maravilha — interrompeu ele, guardando a espada, que, em vez de deslizar para uma bainha, se dissipou no ar como se nunca tivesse existido. — Já me poupa de ter que procurar mais.

Elly suspirou aliviado e tentou pegar o arco, mas o garoto colocou o pé sobre a arma e o encarou com desconfiança.

— Eu sei o que quer fazer. E não faria isso se você — disse ele.

Elly ficou cabisbaixo, concordou em silêncio, pegou o arco com cuidado e se afastou até ficar atrás de mim.

Mais perguntas surgiam na minha mente. Por que ele me procurava? Como sabia meu nome?

— Vou explicar tudo, tem minha palavra. Mas antes, precisamos de um lugar seguro para conversar — disse ele, quase como se lesse meus pensamentos. — Aqui não é um local segu…ro.

Antes de completar a frase, ele se virou para a floresta, preocupado.

— Você nem mesmo disse o seu nome — reclamou Elly, indignado. — Como a gente pode confiar em alguém assim?

— Estando vivos — murmurou o garoto, com um toque de desdém. — Se quisesse mesmo matar vocês ou algo do tipo, já teria feito antes mesmo de você sequer respirar.  Além disso, nomes não importam. Não agora.

— Ele tá certo — concordei, encarando as árvores enquanto minhas mãos formigavam de adrenalina. — A gente precisa sair daqui. AGORA.

Eu não queria ter dito isso na frente de Elly, logo depois de ele ter uma lâmina apontada para a garganta, mas era a verdade. Ele não teve tempo de planejar outra vingança envolvendo um banho no rio, porque, a poucos metros à nossa frente, nos limites da floresta, os pinheiros altos e verdes começaram a murchar e se contorcer. Eles se curvaram para os lados, as agulhas ganhando tons doentios de amarelo e marrom antes de se desfazerem no vento. Das sombras atrás deles, uma mão gigantesca, feita inteiramente de insetos, se apoiou num dos troncos. E quando digo gigantesca, quero dizer do tipo que fazia as árvores parecerem varinhas de brinquedo em comparação.

Outra mão igualmente colossal surgiu, empurrando outra árvore para o lado e abrindo espaço para olhos alaranjados, tão podres quanto as folhas murchas, que nos fuzilavam com fúria. O medo em mim já estava no limite, mas então um som gutural ecoou pela floresta, acompanhado pelo ruído de incontáveis insetos se movendo uns sobre os outros, como um enxame de milhões – ou talvez zilhões – de formigas devorando tudo no caminho. Uma risada rouca e aguda ribombou por todos os lados, e eu já sabia de quem era.

— Fujam o quanto quiserem, semideuses…

Aos poucos, a figura se revelou sob a luz da noite, com mais de vinte metros de altura. Sua pele era rachada e ressequida, como terra árida e estéril, cheia de fendas profundas de onde emergiam enxames de gafanhotos e besouros, infestando o ar ao redor. O corpo era esguio, mas os músculos eram visíveis, como os de um predador faminto à espreita. Os cabelos longos e desgrenhados pareciam palha seca balançando ao vento, e os olhos brilhavam com aquele tom podre e intenso, evocando fome e destruição. Ele usava trapos escuros e puídos, que se misturavam à poeira e às cinzas ao seu redor, e partes do corpo pareciam cobertas por cascas quebradiças ou raízes mortas.

Estava bem mais feio do que da última vez que nos enfrentamos, e sua sede de vingança parecia ainda maior.

— Ninguém provoca o grande Phtheiros, senhor das pragas e da fome, e sai vivo para contar história. Ninguém destrói os meus planos e foge sem ter a cabeça decepada! — rugiu ele.

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Comments

Mari🧝‍♀️16

Mari🧝‍♀️16

Essa história é ouro!

2025-02-28

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