GRECORY

GRECORY

CAPÍTULO I

O mundo dos semideuses nunca foi tão glorioso quanto as lendas pregavam. Por trás de cada grande feito heroico, havia algo sujo, obscuro. Aqueles que deveriam lutar contra monstros e honrar os ritos e tradições em nome dos deuses cederam a um sistema corrompido, "livres" do controle dos Olimpianos.

De certa forma, eu entendia esse sentimento. Muitos de nós sequer recebiam respostas de seus pais divinos, vagando sem rumo, sem saber para onde ir ou o que fazer. Estavam perdidos, sozinhos, sem ninguém para ajudá-los no momento mais difícil da vida de um semideus: a descoberta de sua verdadeira natureza.

A minha foi assim.

Uma noite normal e feliz transformada em um coral de gritos e disparos. Meu pai, minha mãe — que mais tarde descobri ser apenas minha madrasta — e eu. Cada segundo era uma fuga, cada respiração um desespero. O som das chamas devorando minha casa, o calor queimando minha pele e os cortes espalhados pelo corpo.

Poderia ter cedido, como tantos outros. Quando o primeiro monstro apareceu para mim, disfarçado de uma velha senhora que vivia sozinha na floresta, eu já estava fraco. Carregava a culpa de tê-los deixado morrer. Poderia ter acreditado nas palavras gentis da criatura, que prometia um lugar seguro, onde eu seria amado, protegido e valorizado.

Mas eu escolhi resistir. Lutar contra ela. Contra todos eles.

— Gregory!

A voz sussurrante ao meu lado me puxou de volta à realidade. Meus dedos remexiam a terra argilosa e úmida, sentindo a textura dos pequenos substratos misturados ao solo. Mesmo com as luvas de jardinagem, eu distinguia cada detalhe — até as pequenas minhocas se movendo sob a superfície. Entre minhas mãos, um caule estreito de folhas em formato de estrelas de cinco pontas crescia vigorosamente.

O cheiro forte e excêntrico da planta dominava o ar, um aroma viciante para qualquer um... exceto para um filho de Deméter. Nosso sangue nos tornava imunes a toxinas, até mesmo as alucinógenas e viciantes.

Levantei-me, absorvendo a cena ao redor. O suor escorria pelas minhas costas, mas não era apenas o calor da estufa. Estar ali, em território inimigo, me deixava em alerta constante. Eu não podia errar. Não depois de tudo que já perdi.

O calor abafado da estufa se intensificava ao meio-dia, refletindo sobre os inúmeros pés de maconha iluminados em tons de verde vibrante. As plantas eram cultivadas em fileiras simétricas, formando corredores de terra onde trabalhadores iam e vinham, arrancando folhas de alguns, colocando-as nos cestos em suas costas e transportando outros para fora da estufa em vasos improvisados.

Voltei o olhar para Elly, que me observava de braços cruzados. Seus olhos cor de lama brilhavam sob o sol, e a sombra do grande chapéu de palha não escondia a interrogação em seu rosto. Ao contrário do que muitos pensavam ao ouvir seu nome, Elly era um garoto — e, como sempre, estava pronto para me lembrar de que eu pensava demais.

Foi então que me lembrei do porquê estava ali.

Uma missão de reconhecimento em uma das áreas de cultivo ilegal de drogas em Medford, Oregon. A fabricante e exportadora se intitulava Theiro's Express, mas eu sabia que aquilo era apenas um nome de fachada, assim como nosso trabalho de cultivadores substitutos, que não passava de uma desculpa para investigar o local. A verdadeira missão? Encontrar provas de que essa operação estava ligada às indústrias Gaya's Corp — a empresa que não só mergulhou os semideuses nesse inferno, como também era a provável assassina dos meus pais.

Bom, pelo menos essa era a minha missão. Elly resolveu vir junto porque acreditava que aquela empresa tinha algo a ver com o desaparecimento repentino dos deuses.

Não é como se alguém pudesse prender um bando de deuses em um porão empoeirado... certo? Alguma coisa bem séria estava acontecendo, algo que estava fazendo até as forças da natureza se agitarem ao ponto de causar uma série de incêndios por toda a Califórnia, mergulhando-a em chamas.

Ok, você deve pensar que "é apenas as consequências da poluição que o ser humano trouxe ao mundo". Disso eu não posso discordar. Mas, por outro lado, Elly parece ter razão sobre o que diz. Os deuses são forças da natureza implacáveis, agem de acordo com a própria vontade, mantendo o equilíbrio do universo. Só que isso... Isso não parecia uma vingança ou consequência natural. Era algo a mais. Algo maior do que todos nós podíamos imaginar.

Se os deuses realmente sumiram, estávamos por nossa conta em risco. E se essa empresa tinha algo a ver com isso... precisávamos descobrir antes que algo pior acontecesse.

— Não fica aí parado olhando pro nada! — sussurrou Elly, me repreendendo. — Estamos sendo observados, se esqueceu?

Falar era fácil. Ele sempre se esquecia que toda a nova geração de semideuses desde 2013, o que me incluía, nascia com o transtorno do déficit de atenção, hiperatividade e dislexia em certos casos. E eu tive a sorte de não ter apenas a dislexia. Tudo isso porque alguém escreveu sobre isso em um livro e, agora, a maior parte do mundo basicamente nos imaginava assim. E posso te garantir que essa visão das pessoas sobre nós pode ser tão poderosa quanto a Névoa — outro dos incríveis presentes que recebemos por virarmos ficção.

De canto de olho, percebi uma das várias câmeras espalhadas acima de nós, instaladas nos canos de irrigação e nas extremidades da estufa. Além disso, guardas altamente armados patrulhavam os corredores das plantações, verificando se fazíamos nosso devido trabalho da maneira correta. E aquelas armas...

— Desculpa — murmurei, suspirando. — Só estava pensando no plano...

Mentira. Eu definitivamente não estava pensando nisso.

— Se qualquer coisa der errado, nós-

— Ei — disse Elly, pousando sua mão suja de terra sobre a minha. Seu olhar era o mesmo de quando me acordava de um pesadelo no meio da noite — o que, como semideus, não era tão raro de acontecer. — Vai ficar tudo bem, ok? Nós vamos pegar o que precisamos da sala do diretor e dar o fora desse lugar com fedor de meia suada.

— Que engraçado... — disse uma voz rouca e levemente aguda sobre nossas costas. — Não lembro de termos contratado vocês para ficar de papinho durante o serviço.

Antes que eu soltasse uma risada da descrição de Elly sobre aquele lugar, uma sombra cobriu o calor do sol sobre minhas costas, fazendo-me virar e encarar um dos guardas. O fuzil de bronze celestial reluzia mesmo sob sua sombra.

Elly retirou sua mão de cima da minha sorrateiramente. Mantivemos as cabeças baixas, demonstrando um falso respeito. O rosto do guarda era quase indecifrável, como se a Névoa — uma espécie de véu mágico que separa o mundo dos deuses e criaturas mitológicas do mundo mortal — se desfizesse por pequenos fragmentos sempre que tentávamos focar nele.

— Sentimos muito por isso, senhor — disse Elly, curvando-se. — Só estava tentando ajudar Gregory com um problema nas luvas.

Ele me lançou um olhar afiado e, instintivamente, imitei Elly, curvando-me também.

— S-Sim. Me desculpe por isso — murmurei.

O guarda hesitou. Mesmo com aquela bagunça de Névoa e insetos distorcendo sua face, pude sentir sua desconfiança. Mas, após alguns segundos, ele baixou a arma.

— Tudo bem — disse. — Vou deixar essa passar, já que são novatos. Mas, na próxima vez, não prometo que serei tão bonzinho assim. Agora, voltem ao trabalho! Quero essas plantas brilhando de tão verdes até o pôr do sol!

— Sim, senhor! — respondemos, voltando ao trabalho.

Elly recolheu suas pequenas pás de jardinagem e as guardou no cinto de utilidades preso sobre o avental.

— Acho melhor ficarmos distantes por enquanto, até sairmos da estufa.

Eu queria protestar, mas conhecia Elly. Nada o faria mudar de ideia. Apenas assenti.

— Nos vemos no dormitório?

Ele sorriu levemente sob a sombra do chapéu, dando as costas para mim e seguindo adiante pelo corredor de ervas.

{o}

Estávamos naquela missão há quase duas semanas, todos os dias realizando a mesma rotina: cuidar do solo, colher as folhas com o máximo de cuidado possível e transferi-las para vasos caso seja necessário. Ao anoitecer, depois do toque de recolher, estudávamos o local em busca de informações sobre as estufas e os negócios de contrabando e vendas ilegais de drogas por todo o país, planejando rotas de fuga e averiguando a segurança da sala de reuniões do diretor Kallan Taveiros, um administrador daquela área de cultivo.

De vez em quando, eu e Elly subíamos no teto dos alojamentos para observar as estrelas. Nunca ficávamos muito tempo, com receio de sermos pegos ao retornar. O suficiente apenas para sentir o calor do abraço de Elly e o aroma de amora dos seus cabelos castanhos, cacheados e levemente desalinhados pela brisa fria da noite. Aquela seria uma delas, se não fosse o fato de o diretor Kallan ter marcado uma reunião com os patrocinadores poucas horas depois do toque de recolher. Como sabia disso? Com um pouco de lábia, certas quantidades refinadas de cocaína e um favor íntimo, podia-se conseguir tudo naquele lugar, isso se você encontrasse a pessoa certa no local certo.

Eu não gostava daquilo, muito menos Elly, que me ajudava com os informantes. Ter que vender nosso corpo em troca de informações era completamente nojento, mas era isso ou nada sobre as atividades internas do local. Estávamos no banheiro, na área dos chuveiros onde tomávamos banho depois do trabalho. Ali, nem mesmo os guardas que patrulhavam os pavilhões nos incomodariam—eram preguiçosos demais para checar ali. Nosso informante era o mesmo da noite anterior: Conner Still, um homem adulto, porém jovem, não passava dos vinte e cinco. Seus cabelos eram escuros e ligeiramente desgrenhados, os olhos penetrantes, a roupa discreta, como alguém que sabia que precisava passar despercebido. Sua expressão não era nada amigável ou serena, qualidades que geralmente se esperavam dos filhos de Deméter; pelo contrário, havia algo de malicioso e ansioso em seu semblante, uma impaciência faminta pelo que viemos lhe oferecer em troca das informações.

Conner passou pelos armários de aço, os pias e mictórios, aproximando-se de nós com aquele mesmo sorriso malicioso que me lançou na noite anterior. Seus cabelos eram curtos, castanhos escuros e ligeiramente despenteados. Os olhos, que pareciam vácuos sombrios, analisavam nossos corpos com uma expressão de fome e arrogância. Vestia roupas discretas, uma camiseta escura e jeans gastos, o que não era incomum entre os trabalhadores do local.

— Ora, ora... O que temos aqui? Gostaram tanto assim de ontem que vieram para o segundo round? — disse ele, em um tom baixo e cortante como o frio que preenchia a área dos chuveiros.

— Só queremos mais informações sobre a reunião de hoje — respondi, encarando-o com desprezo.

Conner riu, um som seco e desagradável.

— Então vamos logo ao que interessa — aproximei-me dele, sentindo o cheiro forte de cigarro que exalava de sua boca. Tentei manter o nojo sob controle, pois sabia que aquele momento era necessário.

Antes que pudesse continuar, ele me afastou com um gesto brusco.

— Você já teve sua vez — murmurou, voltando-se para Elly. Meu coração acelerou quando vi meu namorado recuar instintivamente, até suas costas tocarem a parede gelada. Conner se aproximou, deslizando um dedo pelo rosto de Elly com um sorriso presunçoso.

— Agora é a vez dele, enquanto você observa.

Antes que eu pudesse reagir, videiras emergiram das rachaduras do piso, enrolando-se ao redor dos meus braços e pernas. Seus espinhos fincaram-se na minha pele, atravessando a roupa e deixando arranhões ardentes. Meus pensamentos corriam desenfreados enquanto tentava ordenar que as plantas me soltassem, mas elas pareciam ignorar minha presença. Conner riu ao ver minha expressão frustrada.

— Eu não tentaria nada, se fosse você — alertou, com um brilho cruel nos olhos. — Isso só vai tornar as coisas mais demoradas.

Olhei para Elly. Ele estava assustado, mas determinado. Assentiu levemente, um gesto quase imperceptível. Eu queria detê-lo, impedir que aquilo acontecesse, mas sabia que não podíamos perder a oportunidade de obter as informações que precisávamos.

Depois de ter que assistir Elly ser despido até os pés por Conner, usado como um objeto sem sentimento, apenas o calor mesclado ao frio da área de chuveiros, as videiras se soltaram do meu corpo, revelando cortes em todos os lugares, fendas pelas minhas roupas e, o pior, a excitação inconsciente que senti ao observar os dois. Não me culpe, culpe a minha puberdade desenfreada de um adolescente de dezessete anos. Se estivesse no meu lugar, sentiria o mesmo que eu ao ver uma cena daquela diante de seus olhos, mesmo que fosse seu namorado nos braços de outro.

Por outro lado, eu queria voar no pescoço dele e afastá-lo de Elly, mas sabia que não podia—não sem o que precisávamos. A respiração de Elly estava ofegante, assim como a de Conner, com um vapor saindo de suas bocas devido ao frio da noite que preenchia o ambiente. Me aproximei deles e beijei Elly, o que deixou Conner levemente surpreso, mas logo me virei para ele, permitindo que o momento nos consumisse de uma forma que garantisse a informação que procurávamos. Quando acabamos, estávamos deitados sobre o piso frio e úmido, completamente exaustos, o suor escorrendo por todo o corpo. Não sabia que três pessoas eram capazes de se perder daquele jeito, principalmente porque na noite passada não fizemos metade do que aconteceu naquela.

Conner se ergueu do chão, ficando sentado enquanto ofegava.

— Pelos deuses... — murmurou, parecendo satisfeito. — Isso foi melhor do que eu esperava vindo de dois mortais.

O sangue gelou em minhas veias. Elly e eu trocamos um olhar rápido antes de nos afastarmos ligeiramente.

— Você disse "mortais"? — perguntei, minha voz carregada de alerta.

Conner piscou, fingindo confusão.

— Eu disse? — ele riu. — Desculpe. Às vezes esqueço que são semideuses como eu.

Isso não me convenceu, nem convenceu Elly. Mas não podíamos nos dar ao luxo de desvendar outro mistério naquela noite.

— Tanto faz... — murmurei, vestindo minhas roupas. Lancei um pacote de cocaína para Conner, que pegou com um brilho cintilante nos olhos. Por um breve instante, achei ter visto suas íris mudarem para um tom roxo bem claro, confirmando minhas suspeitas.

— Muito bem — disse ele, inspecionando o pacote. — Podem perguntar o que quiserem. Vou até deixar que peçam mais uma informação pelo serviço extra de hoje.

— Quero saber sobre a segurança da reunião de patrocinadores — disse, sem rodeios. — Sabemos que estará redobrada, mas queremos um furo na vigilância. Alguma brecha que nos leve à sala do diretor sem sermos vistos.

Conner, com um brilho de maldade nos olhos, começou a detalhar a segurança da reunião:

— Há guardas em cada entrada e câmeras monitorando todos os corredores. Mas há uma brecha. O corredor oeste, perto dos escritórios de manutenção, tem uma porta que não tranca bem. Se conseguirem chegar lá sem chamar atenção, podem usar o túnel de manutenção que leva diretamente à sala de reuniões. Apenas certifiquem-se de não serem pegos pelas rondas noturnas que acontecem a cada hora.

— Nós não vamos — garanti. — Agora, se nos dá licença, temos assuntos a resolver.

Elly e eu começamos a nos mover em direção à porta do banheiro, prontos para aproveitar essa informação crucial. No entanto, Conner, ainda com aquele sorriso calculista, nos deteve com uma última observação:

— Tem certeza de que vão jogar uma segunda informação fora? Não é todo dia que faço isso de bom grado.

Ainda de costas para Conner, senti um cheiro suave de uva pairando pelo ambiente. Me virei, encarando-o diretamente nos olhos.

— O que eu quero perguntar, você não vai responder. Mas avise minha mãe que estou bem, e que seja lá o que estiver acontecendo com vocês, vamos arrumar um jeito de ajudar.

Conner ficou imóvel por um momento, seu sorriso calculista voltando a se formar:

— Você é mais esperto do que eu imaginava garoto. Mas se é isso que quer, então está feito.

Com isso, o corpo de Conner começou a se dissolver em uma fina poeira púrpura, que se moveu em direção à janela do banheiro e desapareceu.

Elly, com a voz falhando de surpresa, perguntou:

— Então... nós... nós realmente...

— Sim — respondeu Gregory, surpreendentemente calmo. — Duas vezes, inclusive. Mas não é nada de mais. Dionísio sempre aparece quando quer algo mais... louco.

Elly olhou incrédulo para Gregory, sua indignação evidente.

— Transamos com um deus por dois dias e você nem perguntou o paradeiro dos outros, da sua mãe?!

Seus punhos estavam cerrados de raiva, mas Gregory os segurou gentilmente, tentando acalmá-lo:

— Olha, eu sei que você está com raiva de mim por isso, e eu te entendo. Mas mesmo que eu lhe perguntasse sobre isso, continuaríamos no escuro, porque ele não iria contar. Eu sei disso. Posso te garantir que quero achar eles tanto quanto você, mas essa não é a hora. Eles querem que encontremos um caminho para ajudá-los sozinhos.

Elly, ainda processando tudo aquilo, perguntou:

— Como você pode ter tanta certeza assim?

— Eu não sei — respondeu Gregory, com um olhar distante. — É apenas uma intuição, mas uma intuição que faz sentido. Se Dionísio precisasse nos avisar de algo, já teria feito isso antes mesmo de... você sabe.

— Vamos torcer para que sua intuição esteja certa — disse Elly, soltando seus braços e andando em direção a saída.

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