CAPÍTULO V

O fato de termos escapado por pouco do diretor cara de inseto e supostamente explodido suas estufas parecia ter mexido mesmo com o ego dele. Era bem compreensível. Na verdade, eu faria o mesmo se fosse um gigante do tamanho de um prédio de três andares prestes a levar uma bronca do chefe por deixar dois pirralhos causarem um Tártaro nos meus negócios, tudo isso com a barriga vazia há quase uma década. Mesmo assim, essa simpatia não me fazia querer virar o lanchinho da madrugada de uma pilha de insetos carnívoros, e tenho certeza de que Elly e o garoto sinistro ao nosso lado concordavam comigo.

Os insetos avançaram, alguns rastejando pelo chão, outros formando uma nuvem de gafanhotos pelo ar, tentando nos cercar e atacar de todos os lados. Eu me preparei, minha adaga em mãos pronta para fatiar alguns exoesqueletos, enquanto Elly segurava o arco, pronto para jogar golfe com uns besouros. Mas algo inexplicável aconteceu bem diante dos nossos olhos. Os insetos estavam a um metro de distância quando pararam de avançar – ou melhor, continuavam tentando, mas uma força invisível os impedia de nos alcançar, como uma bolha transparente cercada pela visão mais nojenta possível de um amontoado de insetos.

Eu não fazia ideia do que estava acontecendo, mas meu olhar se fixou no garoto esquisito. Ele nem tinha invocado aquela espada esquisita dele e estava com as mãos nos bolsos. Soltou uma risada de desdém e balançou a cabeça, como se estivesse decepcionado.

— Por um momento, você até que me preocupou — disse em voz alta, claramente querendo que Kallan ouvisse em alto e bom som. — Mas isso...? — Ele olhou ao redor, para a multidão de insetos que nos cercava. — É decepcionante.

Não dava para ouvir os sons do lado de fora, nem mesmo o zumbido dos insetos, mas o tremor de uma pancada violenta na parte de cima do domo invisível deixou claro que a provocação tinha funcionado. Alguns insetos foram esmagados no impacto, outros arremessados para longe, e a parte superior ficou visível o suficiente para revelar a cara feia de Kallan, agora ampliada umas cem vezes, pairando sobre nossas cabeças. Mais golpes e cortes de foice vieram em sequência, e a cada um meu coração disparava.

— Não acho que foi uma boa ideia provocá-lo — disse ao garoto, que continuava de costas para mim.

— Realmente — respondeu ele. — O escudo provavelmente não vai durar mais que alguns minutos. Mas eu precisava saber o que estávamos enfrentando. O que vamos enfrentar a partir de hoje, no caso.

— Quer matar nós três esmagados só para saber a força daquela coisa?! — exclamou Elly, irritado, quase avançando no garoto, mas eu o segurei.

— Você é um psicopata! — continuou ele.

O esquisitão de mullet lançou um olhar frio e cortante para Elly, mas virou-se para a frente, suspirou e tirou as mãos dos bolsos.

— Nós não vamos morrer esmagados, garoto planta… — disse ele.

Num piscar de olhos, estávamos fora da bolha, de volta às margens frias de cascalho do rio. A brisa carregava o aroma de pinheiros, e meu corpo foi tomado por um calafrio que doía os ossos. Estávamos a mais de cinquenta metros do gigante – o que não era muito, considerando o tamanho dele. O garoto misterioso continuava à nossa frente, a expressão séria encarando Kallan, que ainda desferia golpes furiosos contra a bolha de insetos abaixo dele. Sua respiração estava um pouco ofegante, mas ele não deixava transparecer. Provavelmente, manter aquele escudo tinha exigido um esforço danado das habilidades dele, fossem quais fossem.

Encarei minhas mãos por um instante. Estavam trêmulas, de medo e de frio, assim como minha voz.

— C-Como você-?

— Ele logo vai perceber que estamos aqui. É só uma questão de tempo — interrompeu o garoto, virando-se para nos encarar bem nos olhos. — Precisamos fugir enquanto ainda dá tempo. Alguma ideia de onde ir?

— Fugir?! — perguntou Elly, os olhos agora num tom de amora vermelha e azeda. — Já viu o tamanho daquela coisa?! É impossível fugir daquilo!

— V-Vou ter que concordar com Elly nessa — disse, voltando o pensamento para a situação. — E mesmo se conseguíssemos fugir, ele provavelmente nos encontraria de novo. O que seria pior ainda.

Eu pensava em poupar a floresta de mais destruição com esse argumento. Ela já tinha sofrido demais com as chamas das estufas e a presença devastadora de Kallan, e isso pareceu convencer o garoto.

— O que sugere então? — perguntou ele.

Queria dizer que não sabia o que fazer, que não tinha um plano. Mas meu olhar cruzou o rio e sua correnteza feroz, e uma ideia surgiu – uma que Elly não ia gostar nem um pouco. Engoli em seco, juntando coragem para contar a eles.

Quando terminei, Elly parecia um mirtilo de tanto medo, e o garoto esquisito até que gostou da ideia.

— É bem arriscado — disse o garoto.

— Muito arriscado, na verdade — corrigiu Elly.

— Eu sei disso — respondi. — Mas quando ouvi ele dizer o próprio nome, me lembrei das histórias antigas. Da luta que ele teve contra Perséfone e minha mãe, Deméter, na guerra dos deuses contra os gigantes. Foi minha mãe quem fez aquele corte na boca dele, e foi Perséfone quem o aprisionou no Tártaro. Ele matava os filhos semideuses delas a sangue-frio e oferecia a carne deles como sacrifício de vingança. Não importa quem estivesse na luta, ele sempre se importava mais com os filhos das deusas do que com os outros semideuses… Deve ser por isso que ficou tão animado em devorar a gente.

— Adorei a história, mas preciso ser estraga-prazeres e dizer que estamos sem tempo — disse o garoto.

— Gregory, por favor — a voz de Elly tremia de preocupação. — Deve ter outro jeito de-

— Não se preocupe, eu vou ficar bem — disse, segurando a mão dele. — Além disso, eu não vou ficar sozinho nessa.

Olhei para o garoto esquisitão, que manteve a mesma expressão séria e bufou. Soltei as mãos quentes de Elly e tomei a frente, respirando fundo para reunir o resto de coragem que ainda tinha em mim.

— Ele não vai hesitar em te atacar, então não desvie o olhar em hipótese alguma — instruiu o garoto.

— Não vou — respondi.

Me afastei deles, agora a meio caminho da distância que estávamos do gigante.

— Ok… Vamos lá. Você consegue, Gregory — murmurei para mim mesmo.

Observei a cena. Kallan – ou melhor, Phtheiros – ainda não tinha me notado. Ele continuava batendo no escudo freneticamente, até que, num certo momento, o domo se desfez, e seus punhos se chocaram contra o chão, lançando pedras, gravetos e insetos para todos os lados num tremor que parecia mais um terremoto. Quando ergueu as mãos da enorme cratera que se formou, não viu nenhuma papinha de semideus, nem mesmo entre os dedos. Seu urro de fúria ecoou pelo bosque, espantando um grupo de pássaros ao longe.

— Onde estão vocês, seus pirralhos?! Apareçam!

— Eu estou bem aqui, Phtheiros! — gritei, chamando sua atenção. — Espero que goste de um filho de Deméter ensopado!

O gigante se virou para mim, os insetos chiando num coral raivoso. Seus olhos laranjas podres se fixaram em mim, e eu podia sentir o peso da sua ira. Mas o plano estava em ação. Enquanto ele avançava, os insetos formando um exército ao seu redor, o garoto misterioso se posicionou ao meu lado, pronto para o que viesse. Elly, ainda hesitante, ficou mais atrás, mas eu sabia que ele confiava em mim.

— Vamos distraí-lo até o rio — sussurrei para o garoto, que assentiu.

Brandindo minha adaga, avancei contra os insetos que vinham pelo chão, cortando-os em pedaços enquanto o garoto usava aquela força estranha dele para afastar a nuvem de gafanhotos. Phtheiros rugiu, erguendo um braço colossal para me esmagar, mas eu rolei para o lado, sentindo o chão tremer com o impacto. Corremos em ziguezague, aproximando-nos da margem do rio, enquanto ele nos perseguia, derrubando árvores e deixando um rastro de destruição.

— Agora! — gritei, quando chegamos à beira.

Sem hesitar, pulei na correnteza, seguido pelo garoto e, relutantemente, por Elly. A água gelada me engoliu, e meu corpo foi jogado de um lado para o outro pela força avassaladora das águas. Tentei encontrar equilíbrio, mas antes que pudesse, minha cabeça se chocou contra algo duro, e minha visão ficou turva.

Quando voltei a mim, meus olhos se abriram lentamente. Uma silhueta pairava sobre meu rosto, que aos poucos tomou forma: Elly. Ambos estavam completamente encharcados, como se tivessem se jogado num rio… Espera, nós tínhamos nos jogado num rio, e a correnteza parecia uma montanha-russa submersa. O que aconteceu depois que bati a cabeça, eu não lembrava.

Tentei me levantar, querendo ficar sentado no chão macio, mas a dor latejante na nuca não facilitava. O céu já estava clareando, e percebi que estava sobre uma grama alta e amarelada, numa área ressequida ao redor de um grande lago. Ao longe, via florestas na extremidade e, mais perto, uma área arenosa, rochosa e cinzenta cercava o lugar onde estávamos. Phtheiros não estava à vista, mas o eco distante de seu rugido ainda parecia ressoar nos meus ouvidos.

— Graças aos deuses! — Elly se jogou em mim com um abraço de urso, quase me derrubando na grama. — Eu achei que você tinha… que você não…

Ele não terminou, mas não precisava. As lágrimas verdes brilhando nos seus olhos cor de amora madura diziam tudo, escorrendo como tinta pelo rosto. Segurei suas mãos trêmulas, sentindo o calor delas contra as minhas, geladas e ainda molhadas.

— Ei, eu tô bem — murmurei, tentando soar mais firme do que me sentia. — Tô aqui com você agora.

Ele encostou a cabeça no meu peito, e eu o envolvi num abraço apertado, deixando o calor dele me aquecer contra o frio que ainda cortava meus ossos. Conhecia aquele olhar preocupado dele desde o dia em que nos encontramos, há um ano, em Medford. Eu tinha acabado de chegar à cidade, perdido e sem rumo, quando o vi sendo encurralado por um espírito dos grãos mal-humorado numa feira de legumes. Não sei o que me deu na hora – talvez só quisesse ajudar –, mas acabei enfrentando aquela coisa com uma pá emprestada e um punhado de sorte. Desde então, somos inseparáveis, enfrentando juntos os altos e baixos de uma vida que nunca nos deu trégua.

— Minha cabeça tá latejando — reclamei, esfregando a nuca com uma careta. — Nem acredito que aquele plano maluco deu certo.

Elly levantou o rosto, um sorriso tímido aparecendo apesar da tensão que ainda carregava.

— Agradeça às náiades — disse ele. — Foram elas que nos puxaram do rio. Sem elas, a gente teria se afogado.

Isso me fez dar um sorriso torto, quase sem querer. Então as náiades tinham finalmente decidido aparecer? Fiz uma oração silenciosa de agradecimento, imaginando elas revirando os olhos por eu ter pisado em alguma prima delas no riacho antes. Mas então percebi que o garoto misterioso não estava por perto.

— Cadê aquele esquisitão? — perguntei, olhando ao redor.

Elly apontou para uns metros à frente.

— Ali, deitado na grama.

Lá estava ele, esticado sobre a grama alta e amarelada, a camiseta roxa do Metallica e a calça jeans encharcadas grudadas no corpo. O cabelo mullet caía bagunçado sobre o rosto, e ele parecia apagado, como se estivesse ali há um tempo.

— Quanto tempo eu fiquei desacordado? — perguntei, franzindo a testa.

— Umas três horas, mais ou menos — respondeu Elly, hesitante. — Não sei ao certo. Quando as náiades te tiraram do lago, você não se mexia. Eu… eu pensei que-

Ele parou, engolindo em seco, e eu apertei sua mão mais forte.

— Tô aqui, Elly. Não precisa se preocupar mais.

Ficamos em silêncio por um instante, apenas sentindo a presença um do outro. Eu não sabia onde estávamos, mas o som suave da água e a brisa fresca da manhã eram um alívio depois de tudo. As semanas naquelas estufas tinham parecido anos, e agora, com o calor do abraço de Elly e a vista do lago livre daquele inferno, eu só queria aproveitar o momento. As respostas que eu precisava daquele garoto – quem ele era, por que me procurava – podiam esperar até ele acordar.

— Como você tá? — perguntei, olhando nos olhos dele.

— Melhor agora — respondeu ele, com um suspiro. — Mas ainda não acredito que pulamos naquele rio.

Eu ri baixinho, mesmo com a dor na nuca.

— Nem eu. Mas a gente tá vivo, e isso é o que importa.

Era verdade. Sobrevivemos juntos, como sempre. E naquele instante, com Elly ao meu lado e o pesadelo de Phtheiros para trás, pelo menos por enquanto, eu senti que podia respirar de novo.

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Comments

horasios

horasios

Preciso do próximo capítulo, autora!

2025-03-01

1

henrique ito

henrique ito

cadê o próximo cap?

2025-06-05

0

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