O primeiro dia

Capítulo 4 – O Primeiro Dia

A alvorada do primeiro dia letivo irrompeu antes do sol nascer. Heitor despertou na penumbra, ao som insistente do alarme de seu celular já antigo. Aquele ruído agudo parecia anunciar não apenas um novo dia, mas sim uma nova fase em sua vida.

Tomou um banho gélido utilizando a água do tanque no quintal da casa de dona Judite, vestiu sua calça jeans menos desbotada e uma camisa social azul que obteve como doação na igreja. Seus sapatos estavam limpos, mesmo desgastados. E sua mochila… velha, com um rasgo num dos cantos, mas cuidadosamente costurada à mão.

No trajeto até a universidade, sentia uma dualidade entre orgulho e receio. Ele superara o improvável, mas agora adentrava um mundo totalmente desconhecido. Um mundo onde outros alunos chegavam em carros, vestiam roupas de grife e conversavam sobre viagens internacionais com desenvoltura. Um mundo que, para ele, ainda era incerto e hostil.

Ao entrar no campus, ficou maravilhado. Os edifícios modernos, os jardins bem cuidados, os estudantes animados, os professores circulando com pastas formais… tudo lembrava um filme. Mas também percebia olhares. Muitos. Olhares que percorriam sua roupa simples, sua mochila gasta e seus tênis sujos.

Seguiu o fluxo até localizar a sala da turma de Administração. A porta estava aberta. Entrou e buscou um lugar ao fundo, como sempre fazia. Não queria atrair atenção. Queria unicamente aprender. Sobreviver.

As conversas ao redor giravam em torno de viagens, celulares de última geração e festas de boas-vindas. Dois rapazes à sua frente soltaram uma gargalhada quando ele pediu licença para passar.

— Olha só, o bolsista chegou — sussurrou um deles, com o cabelo modelado com gel.

Heitor fingiu não escutar. Mas sentiu. Sentiu como uma punhalada silenciosa. Não seria fácil. Ele sabia. Só não imaginava que o desprezo seria tão direto.

As aulas se iniciaram. A primeira professora, uma mulher enérgica e experiente chamada Cláudia, apresentou o cronograma do semestre e conduziu algumas dinâmicas de apresentação. Quando chegou a vez de Heitor, ele se levantou, respirou fundo e disse com voz decidida:

— Meu nome é Heitor. Estudei na rede pública, moro sozinho e trabalho com pequenos serviços. Escolhi Administração pois acredito que posso transformar minha vida com este curso.

A sala silenciou por alguns instantes. Alguns pareciam impressionados. Outros simplesmente voltaram a atenção para seus celulares. Mas Beatriz, sentada na fileira do meio, sorriu sinceramente.

— Muito bom, Heitor — disse a professora. — Você representa muitos que estão aqui. Seja bem-vindo.

Beatriz virou-se discretamente e lhe piscou. Aquilo aqueceu seu peito de uma forma incomum, quase esquecida. Era um gesto simples, porém genuíno. E naquele ambiente frio, a sinceridade era um refúgio.

Nos dias que se seguiram, Heitor começou a sentar-se mais perto de Beatriz, embora não tivesse coragem de iniciar uma conversa. Ela representava tudo o que ele nunca imaginara para si. Era bonita, amável, vestia-se bem e seu sorriso parecia iluminar os corredores. Todos a conheciam e muitos a cortejavam, mas ela nunca demonstrava interesse em ninguém.

Numa ocasião, após uma aula exaustiva, ela se aproximou enquanto ele guardava seus cadernos numa sacola plástica improvisada.

— Você é o Heitor, certo?

— Sim — respondeu ele, um pouco surpreso.

— Gosto da sua escrita. Suas respostas na aula de Teoria Organizacional foram ótimas.

Ele ficou vermelho. Aquilo era raro.

— Obrigado. Eu… tento entender tudo à minha maneira. Não fiz cursinho, nem tive muito apoio, mas estudo bastante.

— Dá para perceber. Admiro isso em você.

A frase ficou ecoando em sua mente por dias. “Admiro isso em você.” Ninguém nunca havia dito algo parecido. Ele foi para casa com um sorriso no rosto e dormiu pensando nela.

No entanto, o contraste entre o interesse de Beatriz e o resto da turma era evidente. Os comentários maldosos começaram a surgir pelas costas. Um dia, na aula de Ética, um grupo cochichava no corredor:

— Viram que o mendigo da turma está tentando se aproximar da Bia? — disse uma garota rindo falsamente.

— Tadinha. Deve estar com pena dele — acrescentou outro.

Heitor ouviu. Abaixou os olhos, mas não respondeu. Sabia que revidar só o colocaria ainda mais em evidência. Preferiu guardar as humilhações como combustível para o fogo que alimentava seu objetivo.

Aos poucos, começou a ser ignorado nos trabalhos em grupo. Muitos fingiam que ele não existia. Teve que fazer algumas atividades sozinho, o que prejudicou sua nota. Mesmo assim, não reclamava. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, a vida os colocaria frente a frente novamente. E ele estaria numa posição diferente.

Beatriz continuava gentil, mas discreta. Às vezes sentava-se perto dele, fazia perguntas sobre os textos, ria dos comentários que ele fazia em sala. Era um alívio naquele ambiente hostil.

Na segunda semana, ela se ofereceu para fazer dupla com ele numa apresentação sobre “Empreendedorismo Social”.

— Gosto de quem pensa fora da caixa — disse ela, quando ele hesitou. — Além disso, sua ideia do projeto comunitário foi genial.

— Você realmente acha isso?

— Com certeza. Você é diferente, Heitor. Diferente num bom sentido.

Aquela frase tocou sua alma. Por anos, ele se sentiu diferente — mas sempre de uma forma ruim. Pela primeira vez, alguém dizia isso como um elogio.

A apresentação foi um sucesso. Heitor falava com convicção, usava exemplos reais de seu bairro, mencionava experiências que viveu lavando carros e distribuindo panfletos. A professora elogiou. A turma, em silêncio, apenas observava.

Ao sair da aula, Beatriz tocou levemente seu braço.

— Vamos tomar um café? — perguntou com naturalidade.

Ele hesitou por um instante.

— Claro.

Foi desse jeito que se iniciou algo que ele jamais imaginaria: a oportunidade de ser notado, não pela aparência ou de onde vinha, mas pela sua essência.

Sem ter ideia, logo estaria diante de uma decepção que o arrasaria por completo. Contudo, a grande mudança na sua história já estava bem próxima.

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