A partida

Capítulo 3 – A Partida

Domingo nasceu cinzento, o céu carregado de nuvens pesadas. A brisa gelada, mas Heitor quase nem percebeu. A adrenalina, uh, ainda pulsava, mesmo depois de quatro horas na prova da faculdade. Saindo do prédio, exausto, pernas bambas e mãos molhadas. Andou lento nas calçadas desertas, tentando lembrar o que acertou — e, ah, claro, o que deixou em branco.

— Dei o meu máximo — sussurrava, tipo um mantra, apesar de não saber se tinha sido o bastante.

Chegando no seu quartinho, jogou a mochila no chão e se esticou no colchão magro. O teto rachado o observava. O silêncio, quase total, só interrompido pelo zumbido do ventilador velho e os sons distantes da rua.

Ninguém pra dividir aquilo com ele. Sem amigo pra falar da prova, sem família pra saber se estava ansioso. Só o vazio ali.

Era mesmo isso o motivava ele queria preencher esse vazio com triunfos, com glorias, com algo que afinal fizesse sua vida valer a pena.

Nos dias depois, a ansiedade começou a consumi-lo. Cada manhã era uma mistura de esperança e terror. Tentava manter a cabeça ocupada, fazendo uns servicinhos pra vizinhança lavava carros, fazia entregas, consertava coisas simples. Era pouco dinheiro, más era o bastante pro café, o pão de ontem e, ás vezes, uma quentinha barata no boteco da esquina.

Dona Judite, a senhora que alugava o quartinho pra ele, gostava dele. Achava-o educado, esforçado, “diferente dos outros garotos que passam aqui e só querem confusão”, como ela falava. De vez em quando, deixava um prato com arroz e feijão na porta, como quem faz caridade sem confessar que esta ajudando. Heitor sempre agradecia com um sorriso tímido.

O tempo passava, vagaroso e cruel. A espera pelo resultado parecia infinita. Heitor sonhava toda noite com a faculdade. Imaginava-se sentado numa sala, com livros novos, uma mochila boa, ouvindo os professores falar sobre empresas, estratégias e liderança.

Mas a realidade, oh sim, ela chegava com tudo durante o dia, batendo na porta. Literalmente, a cobrar. O dono da quitanda, implacável, cobrava pelos fiados. O ventilador? Deu pane. Água, nem pensar, faltou por uns dois dias. Teve que vender, acredita, o relógio, um presente de um ex-voluntário do orfanato, pra comprar sabonete, arroz e aquele sabão em pó.

Mas, ainda assim, ele resistia bravamente. Devorava os livros emprestados da biblioteca, lia jornal velho pra entender, sabe, mais de economia, e anotava toda palavra nova que ouvia nas ruas. Ele sabia, aceito ou não, precisava estar preparado. O ingresso na faculdade, ufa, não era o fim, não. Era, de verdade, só o começo.

Até que, numa quarta de manhã, o silêncio foi estraçalhado por um grito da vizinha: — Saiu o resultado da Estadual! Tá no site!

Heitor, num choque, congelou. Estava sentado no chão, remendando o zíper da mochila, usandos linhas de costura emprestadas. O coração, disparou! Correu, como pode, até a lan house mais próxima, com a grana que tinha, uns míseros R$2,50, uns 15 minutos na internet.

O atendente, ah, ele conhecia o Heitor de vista. — Hoje é o dia, hein, guerreiro? Vai lá!

Heitor sentou, com os dedos ali, tremendo...

Digitou o endereço do site, buscou a lista dos aprovados, e no fim, encontrou sua inscrição.

O nome surgiu.

Heitor Oliveira da Silva – Administração – Aprovado!

Ele leu, leu de novo. Não conseguia crer. Fechou os olhos com força, pensando que podia ser outro Heitor. Mas, era ele. Seu CPF, seu nome todo. Era verdade.

Ficou paradão, alguns segundos. As mãos suavam, a garganta travou. Logo, se levantou e saiu da lan house, sem dizer uma palavra. Andou sem direção por umas quadras, em choque. Quando finalmente se tocou, tava sentado no meio-fio da praça central, rindo e chorando tudo junto.

— Eu consegui! Eu consegui!

A frase saiu, como um sussurro, mas parecia ecoar por toda a cidade.

Naquela noite, dormiu sem medo pela primeira vez. Com a certeza que, mesmo com tudo em sua contra, ele tinha ganho a primeira luta. A maior de todas, certo?

Porém, a alegria durou pouco. Logo após a euforia, veio a real: ele não tinha como pagar o material, a passagem, a comida. A matrícula era pessoal, e ele precisava comprar pelo menos uma camisa legalzinha. Precisava se virar, novamente.

E foi o que fez.

Trabalhou arduamente nos dias seguintes, com afinco. Consertou torneiras, limpou pátios, ajudou numa mudança familiar. Em troca, alguns cobres, roupas usadas, e esperanças de indicações...

Uma semana se passou, rumando para a faculdade, com mochila velha e documentos, camisa "pega", cortesia de Rafael, agora morando com um parente.

A fila, gigantesca. Jovens bem-apessoados, sorrisos com pais. Heitor, de novo, solitário. Mas, altivo! Internamente, um grito:

— Conquistei. Cheguei!

Matrícula efetuada, papéis em mãos, um troféu imaginário.

No ponto de ônibus, sentou ao lado de uma jovem, cabelos castanhos longos, olhos brilhantes. Ela o fitou, um sorriso, perguntando:

— Administração também?

Heitor, atônito, respondeu:

— Sim, me inscrevi agora.

— Eu também, sou Beatriz.

Essa a primeira conversa com a moça mais linda da faculdade. Ele, por hora, ignorava.

Ele só sabia de uma coisa que, daquele ponto em diante, sua vida ia mudar, isso devagar, dolorosamente, sim, mas ia.

E ele, tava pronto pra tudo.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!