...Quando o Medo se Disfarça de Recomeço...
Pouco depois do amanhecer, Clara despertou assustada, sem saber onde estava. O desespero tomou conta de seu corpo, e, num reflexo, ela levou a mão ao bolso da capa de chuva — mas logo percebeu que não estava com ela. Nem a capa, nem o canivete.
Os olhos vasculharam cada canto da pequena sala em busca de pistas. Do sofá onde estava deitada até a televisão à sua frente, ela examinava tudo com atenção. Passou o olhar lentamente pelos quadros pendurados na parede e se deteve por alguns segundos em um deles: as pinceladas suaves formavam uma pintura abstrata.
"Faz tanto tempo desde que pintei pela última vez... Será que meus dedos, tão trêmulos e calejados, ainda conseguiriam criar algo bonito?" — pensou, distraída.
Logo depois, avistou sua capa de chuva sobre uma poltrona no canto. A lembrança da noite anterior voltou de forma fragmentada, e ela retomou a consciência de estar em território desconhecido.
Com passos cautelosos, aproximou-se da poltrona e pegou o canivete. Tentou reconstruir mentalmente os últimos acontecimentos. Lembrava-se da chuva, da estrada, do cansaço. Lembrava-se da caminhonete. Dormira durante o trajeto... então, só podia estar na casa do senhor que lhe oferecera ajuda.
Nesse instante, a porta se abriu devagar, e Joaquim entrou com um sorriso gentil no rosto.
— Bom dia — disse ele, sereno.
Clara apenas assentiu com a cabeça, ainda sem pronunciar palavra.
— Querida, venha tomar café. Aposto que está com fome — chamou Amélia, que estava na cozinha e agora se fazia notar. Clara nem havia percebido a presença dela até então. Repreendeu-se mentalmente por ter deixado passar um detalhe tão importante.
— Vamos, menina. A gente não morde... só a comida! — completou a mulher com um sorriso acolhedor.
Ainda desconfiada, Clara aproximou-se devagar e sentou-se na cadeira mais afastada da mesa. Seus movimentos eram contidos, e os olhos atentos analisavam cada gesto do casal. Pegou um pão e deu uma mordida pequena, sem tirar os olhos das duas figuras diante dela.
Aos poucos, foi percebendo que não havia ameaça ali. A tensão em seu corpo relaxou minimamente, o suficiente para que ela começasse a comer com vontade — como há muito tempo não fazia. Dava até para contar nos dedos quantas refeições completas tivera nos últimos meses.
— Está gostando da comida? Se quiser, posso cozinhar pra você todos os dias — comentou Amélia, animada.
Joaquim olhou para a esposa, percebendo sua empolgação exagerada, e interveio com leveza:
— Querida... assim você vai acabar assustando a garota. Vocês mal se conhecem. Vá com calma, tudo bem?
Mesmo contrariada, Amélia assentiu com um sorriso contido.
— Não quero incomodar. Hoje mesmo procuro um lugar pra ficar — disse Clara, enfim quebrando o silêncio.
A mulher se apressou em responder, parecendo um pouco culpada:
— Não é incômodo algum. Eu ficaria muito feliz se você ficasse.
O marido, vendo que ela ignorava o próprio bom senso, tentou conter, mas Amélia prosseguiu:
— Você pode morar com a gente. E... se quiser, posso te dar um trabalho na minha padaria. O que acha?
Clara pensou por um momento antes de responder.
— Aceito o trabalho... mas morar aqui não me parece apropriado. Acabei de conhecê-los e... preciso do meu próprio espaço. Um lugar onde eu possa ter privacidade — respondeu com firmeza.
Amélia baixou os olhos, visivelmente desapontada.
— Tudo bem, menina — disse Joaquim, compreensivo. — Minha esposa às vezes se deixa levar. O sonho de ter uma filha a faz agir por impulso. Mas... temos uma casinha no terraço da padaria. Costumamos alugá-la para turistas, mas no momento está vazia. Talvez sirva para você. Que acha?
Clara refletiu por alguns segundos. A proposta era boa. E parecia segura.
— Pode ser... desde que eu pague o aluguel — respondeu, decidida. E, antes que pudessem argumentar, voltou a comer como se não houvesse amanhã. Seu apetite, depois de tanto tempo reprimido, parecia ter sido despertado.
O casal compreendeu o recado. Ela precisava de espaço. Precisava de tempo. Então julgaram que não era o momento certo para perguntar sobre o passado que ela tentava esconder.
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Na mesma tarde, Joaquim levou Clara até sua nova casa. Ela ainda não confiava totalmente em ninguém — especialmente quando a bondade vinha fácil demais —, mas algo naquele casal lhe transmitia sinceridade. E isso era raro o suficiente para lhe dar um voto de confiança.
A casa era pequena, mas acolhedora. Não ocupava todo o terraço, e o restante do espaço formava uma varanda ao ar livre, com algumas plantas, um banco e uma mesa de madeira.
O interior era simples: sala conjugada com cozinha, um quarto e um banheiro. Por ser destinada a turistas, já estava mobiliada, mas ainda faltavam itens pessoais e detalhes de conforto que ela teria que providenciar.
"Será esta uma nova fase pra mim? Será que a vida está tentando me recompensar por tudo que tirou?" — pensou, sozinha, depois de se despedir de Joaquim, agora seu senhorio.
Diante do espelho, ela examinou o próprio reflexo. O rosto marcado por hematomas, os cabelos longos e claros... E, de repente, a lembrança.
Uma voz repulsiva sussurrou dentro de sua mente:
"Gosto do seu cabelo assim, longo e claro. Eu amo loiras..."
A risada que ecoou em seguida fazia seu estômago revirar. Clara correu ao banheiro e vomitou.
Decidida a romper com o passado, dirigiu-se até um salão de beleza que havia visto no caminho até ali. Ao entrar, foi recebida por uma mulher simpática, provavelmente na casa dos trinta.
— Olá, jovem! É sua primeira vez aqui, não é?
Clara assentiu.
— Em que posso te ajudar?
— Quero cortar o cabelo e voltar à minha cor natural.
A cabeleireira pediu que ela se sentasse e perguntou qual comprimento e cor desejava.
— Preto. E pode cortar até um palmo abaixo do ombro. Não quero ver loiro nunca mais na minha vida — disse com firmeza.
A mulher acatou o pedido. Quando terminou, Clara olhou-se no espelho e se viu diferente. Mais ela mesma. Mais livre.
No caminho de volta para casa, passou por uma pequena loja e comprou algumas roupas. As únicas peças que trouxera consigo eram três conjuntos de moletom e um par de chinelos. Felizmente, ela tinha uma quantia razoável de dinheiro guardada, reservada para quando encontrasse um lugar seguro onde pudesse recomeçar.
"Preciso estar preparada caso tenha que fugir novamente..." — pensou, ao dobrar uma esquina. "Essa é uma nova fase da minha vida, mas sei que virá cheia de desafios. E, honestamente, não sei se conseguirei enfrentá-los..."
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Atualizado até capítulo 44
Comments
Gigliolla Maria
espero que ela consiga encontrar paz nesse lugar
2025-06-23
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