...HORAS ANTES…...
...(PARTE UM)...
ACORDEI ÀS NOVE HORAS DA MANHÃ.
Neste exato momento, minha mãe estava na igreja participando da campanha de oração mensal — tinha algo a ver com restituição; uma vez a peguei orando no quarto, de joelhos, pedindo a Deus para que eu voltasse para a igreja.
Para ela, isso sim seria a restituição. Ela se culpa, por achar que errou em alguma coisa na minha criação. Na cabeça dela, eu saí da igreja por conta de um castigo divino.
Fui criado na igreja desde os meus quatro anos de idade e minha mãe se sentia na obrigação de me tornar um pastor de igreja. Eu não teria escolha alguma para decidir o que queria ser da vida. Ela já tinha planejado tudo, mas afirmava que era os Sonhos de Deus.
Mas Deus não dava o livre arbítrio? Por que eu não tinha direito a isso?
— Porque, a partir do momento que lhe apresentei no altar, os seus planos já não valiam mais — ela me disse uma vez, quando questionei. Na época, eu tinha dezessete anos e estava começando a despertar, a me incomodar… — Sua vida está entregue nas Mãos de Deus. Você não precisa mais do livre arbítrio. Quem tem isso é pecador que vive à mercê dos próprios desejos e vontades. Você é servo e não precisa se submeter a isso. Só precisa confiar mais em Deus, meu filho. É n’Ele que está o seu futuro.
— E por que você decidiu uma coisa dessas por mim? Por que não me deixou crescer? Tinha que fazer voto através de mim?
— Porque eu sou sua mãe — seu tom era incisivo, emanando fanatismo. Ela não gostava de ser contrariada, porque era uma blasfêmia. — Eu sei o que é melhor para você. Aliás, Deus fala comigo nas minhas orações para mostrar o que é melhor para você. Tudo o que decidi para você até agora foi com a permissão d’Ele.
— E por que ele não fala comigo agora? — provoquei. — Tenho quase dezoito anos e sinto que eu mesmo devo ser o meu próprio responsável.
— Você, meu filho? — ela riu, balançando a cabeça. E continuou: — Sabe o que você precisa sentir? Seus olhos e ouvidos sendo abertos pela Verdade. Vejo que não estás dando lugar para que isso aconteça. Por isso que fica pensando nessas coisas — desdenhou.
— É anormal ter autonomia, agora?
— O que você anda lendo, garoto? — Nietzsche, Balzac, Dostoiévski, Clarice Lispector… pensei. — Vejo você lendo um monte de coisa, menos a Bíblia. A Bíblia é importante!
— Tá, mãe. Tá. — Me levantei do sofá e fui para o quarto. Não valia a pena discutir com ela. Mesmo assim, queria bater na tecla.
— Você vigie, ouviu? — ela falava sozinha enquanto eu subia as escadas. — Tá se deixando levar por pensamentos que não são do alto! Logo você, um levita da Casa do Senhor. Não era pra demonstrar esse tipo de comportamento!
A voz dela ficava mais distante. Mas eu conseguia ouvir, no corredor.
— Cabe somente você aceitar sem questionar. Deus sabe o que faz. E eu também!
— Subserviência… — soltei, balançando a cabeça. E entrei no quarto.
FUI NO CENTRO DA CIDADE.
Desci do Uber e fui em direção ao brechó, andando. Queria reencontrar uma pessoa muito especial para mim, que fez parte da minha vida na fase mais delicada — onde eu estava totalmente entregue à tristeza, que se aprofundava cada vez mais. Antes de abrir a porta, avistei uma criatura familiar se aproximando de mim. Larguei o trinco.
— Bibi! — era a minha amiga. Eu a conhecia desde o tempo que ainda era Fabrício, há quase cinco anos. Naquela época, inúmeras questões com o próprio corpo a afligiam. Nós trabalhávamos juntas numa empresa de contact center — no começo, tínhamos uma antipatia em comum até que acabou naturalmente. Assim que ouvi toda essa questão com a identidade de gênero, resolvi dar de presente o livro do João Nery: Viagem Solitária.
Ele caiu como uma luva, junto com o acompanhamento psicológico.
Fabrício se descobriu mulher e resolveu seguir com a transição. Ela sempre foi Fabiana. A Fernanda, melhor amiga, deu abrigo a ela quando a mãe a expulsou de casa.
Hoje em dia, tudo se ajustou. A mãe aceitou Fabiana de volta e aceitou sua verdadeira identidade de gênero.
— Oi, sua doida! — Ela adorava usar adjetivos femininos comigo. Eu não me importava. — Quanto tempo! E aí, tá fazendo o quê da vida?
Nos abraçamos.
— Você está linda, meu anjo — elogiei.
— Sempre, meu amor. — Ela me rodopiou. Eu ri. — A senhora também está uma gatinha!
— Trabalha por aqui?
— Sou empresária — ela deu um beijinho no ombro. — Eu sei que você está formada, trabalhando numa empresa de Marketing…
— Graças aos céus, sim — ergui as minhas mãos. — Não há nada melhor do que viver trabalhando na sua área.
— Fato, meu bem. Fato!
— Como você está? — sorri, feliz com o resultado da transição mostrava.
— Você sabe que eu estou mais feliz que nunca, né? — Agora foi a vez dela rodopiar, jogando o cabelo. — Estou podendo ser eu mesma neste mundo, apesar dos percalços.
— Os percalços nunca deixam de existir — falei, pensativo.
— Mas a gente sobrevive a cada um deles — ela concluiu.
— Ainda bem! — dei uma risadinha.
— Mas como vai você? Bem resolvido do que nunca?
— Claro — respondi. — Finalmente vou poder ser eu mesmo e em paz.
— Vai embora de casa?
— Finalmente — sorri, com as mãos nos bolsos.
— Aleluia, hein, querido? — brincou ela. Fabiana sabia da minha situação em casa. — Quando você vai sair?
— No próximo fim de semana.
— Está mais perto do que longe… — ela deu uma batidinha no meu ombro. Olhou o relógio. — Garota, eu preciso ir. Você tem meu número, certo?
— Claro que sim! A gente marca um rolê?
— Você vai me ligar para marcar e ir, certo? — ela ergueu um dedo. — Prometa pra mim, porque preciso ir agora pra minha loja.
— Prometo, garota! — Eu ri. E dei um abraço. Fabiana era uma figura e tanto.
— A gente precisa falar das novidades! — Ela foi se afastando. — Tchau!
— Tchau. — Acenei de volta, rindo.
— TIA?
Entrei no brechó. O balcão não tinha ninguém atendendo, no caso só ela. Fiquei ali parado esperando. Olhei em volta e vi que o lugar era bem convidativo: tinha peças unissex para todos os gostos e de todas as cores.
— Oi? Quem entrou? — ouvi a voz dela, lá dentro do que poderia ser um depósito.
— Tia? — elevei a voz. — Sou eu. Orlando!
Ela saiu do compartimento, surpresa. Soltou o sorriso aberto que era familiar demais para mim. Antonia — uma mulher de meia idade, branca, cabelos dourados, pele de porcelana, aura angelical, olhos castanhos escuros — não era a minha tia de sangue, mas valia por duas. Eu a chamo de tia, porque ela me adotou quando quis prestar suporte para mim. E me defendeu também, em algumas situações que não imaginava ter acontecido.
— Meu sobrinho querido! Se achegue mais! — Ela acenou. — Quanto tempo eu não te vejo mais…
— Muito tempo, né? — Fiquei um pouco sem graça. Na última vez em que nos vimos, eu ainda estava na igreja. Mas confidenciei para ela que gostava de um menino no meu antigo trabalho, e provavelmente o mesmo gostava de mim. Senti um pouco de desconforto por sentir essa passagem do tempo, mas ao mesmo tempo senti nostalgia.
Ao mesmo tempo que era uma época conturbada, minha vida parecia ser tranquila em alguns momentos. Não, não sinto saudades do meu passado.
— Como você está, menino? — Ela me pegou pelo braço e nos sentamos na mesinha ali perto.
— Ah, eu estou bem… — suspirei.
Ela pegou na minha mão.
— Tem certeza? — sua voz era terna e maternal. Às vezes, ela conseguia ser mais minha mãe do que a minha própria.
Isso foi o suficiente para eu cair no choro.
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Atualizado até capítulo 60
Comments
Tania Maria Rufino
Coitado. Conheço situações assim.😞
2024-09-07
0
Raquel Alves Pedrosa Rachel Alves
essa mãe e fanatica mesmo
2024-01-02
1