03

Olhou para o leste, onde as encostas e os platôs amarelo-esverdeados do Monte Eskel se erguiam até o pico azul-acinzentado. Ao norte, descortinava-se uma cadeia de montanhas em tons que se esvaneciam do roxo para o azul e deixavam-na perder-se de vista no cinza. Apesar do amplo horizonte, ela não enxergava nada ao sul, onde, em algum ponto, seria possível encontrar o mar, misterioso. A oeste, ficava a estrada dos mercadores que ia dar no desfiladeiro, levando à planície e ao restante do reino. Ela não conseguia imaginar como seria a vida lá embaixo, assim como não conseguia visualizar um oceano.

Lá embaixo, a pedreira parecia um alvoroço de formas retangulares incertas, blocos semi expostos, homens e mulheres trabalhando com cunhas e marretas para soltar pedras da montanha, alavancas para soerguê-las e talhadeiras para aparelhá-las. Mesmo lá do alto da colina em que se encontrava, Miri podia ouvir a cantoria que dava ritmo aos trabalhos, com todos os sons se sobrepondo uns aos outros e as vibrações se propagando até onde ela se havia sentado.

Vieram à mente um incômodo e a imagem de Doter, uma das operárias, com o comando abafado que moderou a batida. O jeito de falar na pedreira. Miri se inclinou para a frente, querendo ouvir mais.

Os operários falavam assim sem emitir voz alta para poderem ser ouvidos apesar dos protetores de argila que usavam nos ouvidos e do estrondo ensurdecedor das marretadas. A voz emitida daquele jeito só funcionava mesmo na pedreira, mas Miri conseguia perceber o eco quando se sentava ali pelas redondezas. Não compreendia o funcionamento com exatidão, mas já ouvira um operário dizer que todas as marretadas e a cantoria impregnavam a montanha de ritmo. Assim era que, quando precisavam falar uns com os outros, a montanha usava o ritmo para transportar a mensagem por eles. E agora Doter deveria estar avisando para um colega bater mais de leve na cunha.

Miri achava que seria uma maravilha cantar em conjunto com os demais e chamar, ao jeito da pedreira, um colega trabalhando noutro veio. Compartilhar o trabalho.

O caule da miri começou a amolecer entre seus dedos. Que desejo faria? Ser alta como uma árvore? Ter braços iguais aos do pai? Conseguir escutar a rocha pronta para ser extraída e tirá-la da montanha? Mas desejar coisas impossíveis parecia ser um insulto para a flor de miri e um desrespeito ao deus que a fizera. Ela se entretinha com desejos impossíveis – a mãe viva novamente, botinas que não se rasgassem com as lascas de pedra, mel em vez de neve. Para poder ser, de alguma forma, tão útil para a aldeia quanto seu pai.

Balidos frenéticos chamaram sua atenção de volta para a rampa em que se encontrava. Um garoto de seus 15 anos corria pelo riacho com água pelos joelhos atrás de uma cabra desgarrada. Era alto, de corpo esguio e cabelos castanhos encaracolados, com a pele ainda bronzeada pelo sol do verão. Seu nome era Peder. Normalmente, Miri o teria cumprimentado com um grito a distância, mas nos últimos meses uma comichão esquisita se apoderava de seu ser e ela estava mais disposta a se esconder dele do que atirar pedrinhas pelas costas para importuná-lo.

Vinha começando a perceber algumas coisas nele, como o cabelo claro em contraste com a pele bronzeada e a linha entre as sobrancelhas que se aprofundava quando a perplexidade o dominava. E estava gostando dessas coisas.

Ficou curiosa para saber se ele também a percebera.

Desviou o olhar da flor de miri despetalada para a cabeleira alourada de Peder e sentiu um desejo do qual teve receio de falar.

– Eu queria... – sussurrou. Ela iria mesmo ter coragem?

– Queria que Peder e eu...

Um toque de cometa ecoou tão subitamente entre os penhascos que Miri chegou a deixar cair o caule da flor. Não havia cometa na aldeia, de modo que só poderia ser gente da planície. Ela detestava responder ao chamado deles como um animal a um apito, mas a curiosidade sobrepujou o orgulho. Agarrou os cabrestos e tocou os bichos ladeira abaixo.

– Miri! – Peder veio correndo para perto dela, puxando suas cabras areboque. Miri ficou torcendo para que seu rosto não estivesse sujo de terra.

– Olá, Peder! Por que você não está na pedreira? – Em quase todas asfamílias, cuidar das cabras e dos coelhos era atividade reservada apenas àqueles jovens ou velhos demais para trabalhar na pedreira.

– Minha irmã queria aprender a trabalhar com as cunhas e minha avóestava com dor nos ossos, então minha mãe me pediu para tanger as cabras hoje. Você sabe por que o toque de cometa?

– Mercadores, acho eu. Mas para que tanta fanfarra?

– Você sabe como o povo da planície é – disse Peder. – Eles se achammuito importantes.

– Talvez um deles tenha gás e todos saiam tocando as trombetas paraque o mundo inteiro saiba da novidade.

Ele abriu um sorriso bem à sua maneira, com a boca mais puxada para a direita que para a esquerda. As cabras soltavam balidos como crianças brigando entre si.

– É mesmo? – Miri perguntou para a líder do rebanho, como se entendesse a conversa delas.

– O que foi? – disse Peder.

– Aquelazinha ali disse que o riacho está tão frio que dá para secar oleite.

Peder riu, deixando-a com vontade de dizer mais alguma coisa, cheia de esperteza e esplendor, mas o desejo impediu os pensamentos, de modo que ela tratou de calar a boca antes de dizer uma besteira.

Os dois pararam na casa dela para prender as cabras. Peder tentou ajudar recolhendo as amarras, mas os bichos começaram a se empurrar uns aos outros e foi ele quem acabou com os tornozelos presos num emaranhado de cordas.

– Ei, parem com isso! – disse, acabando por se desequilibrar e cair nochão.

Miri se aproximou correndo para ajudar e também se estatelou ao lado dele, às gargalhadas.

– Estamos fritos como as costeletas delas numa frigideira. Não há o quenos salve agora! Quando, por fim, se desvencilharam das cordas e tornaram a se levantar, Miri teve um impulso de se aproximar dele e dar um beijo no rosto. Chocou-se com o ímpeto e ficou ali parada, muda e encabulada.

– Que confusão! – ele exclamou.

– Pois é. – Miri baixou o rosto, batendo das roupas a terra e o cascalho.Achou melhor fazer logo uma piadinha para o caso de ele ter lido seus pensamentos. – Se há uma coisa em que você é bom, Peder Doterson, é em arranjar confusão.

– É o que minha mãe sempre diz, e todo mundo sabe que ela nunca estáerrada.

Miri se deu conta de que a pedreira estava em silêncio e o único barulho que escutava era o do próprio coração batendo em seus ouvidos. Ficou torcendo para que Peder não conseguisse ouvir. As trombetas soaram novamente, alertando-os, fazendo-os correr.

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Comments

Viviane Gheradi

Viviane Gheradi

adorando a releitura das histórias, utilizando dos personagens dos contos de fada

2023-05-18

0

Maria Silva

Maria Silva

desculpa mas essa história não tem nada haver com a escrita das duas autoras maravilhosas que são VCS

2023-04-20

0

Amanda

Amanda

💕💕💕💕💕💕💕💕

2022-12-05

0

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