Olívia
Descer aquelas escadas é como atravessar um campo minado. Cada degrau carrega o peso da incerteza, da dor e do medo. O som da voz de Brandon ao telefone ecoa pelo hall como um alerta. É grave, firme, envolto em uma falsa tranquilidade que me causa arrepios. Só de ouvi-lo, meu sangue gela. O coração acelera, e minhas mãos começam a suar.
Sua presença me apavora. Nunca sei o que esperar. Às vezes, ele está calmo, quase gentil, e tenta se aproximar com toques e palavras doces. Outras vezes, basta um olhar atravessado para que a violência se instale. Mas não sei o que me incomoda mais: o toque fingidamente afetuoso ou o estresse que precede os gritos e os socos. Ambos me causam pavor. Ambos me fazem desejar desaparecer.
Não suporto quando ele me toca. Quando exige sexo como se fosse um direito adquirido, como se meu corpo fosse propriedade dele. Quando quer que eu retribua com carícias e sorrisos, como se o prazer fosse obrigatório. Quando percebe meu torpor, minha ausência durante o ato, torna-se agressivo. E aquilo que poderia ser íntimo transforma-se em tortura.
— Querida, como se sente? — ele pergunta, encerrando a ligação e vindo ao meu encontro no pé da escada.
Sua voz é suave, mas não há suavidade verdadeira ali. É encenação. É controle.
— O jantar já vai ser servido. Estávamos te esperando.
Ele tenta me abraçar. Meu corpo recua, involuntariamente. É instintivo. É defesa. Ele percebe. Sei que percebe. Mas, por estarmos diante dos nossos filhos, mantém-se discreto. Não faz comentários. Não agora.
— Sim, vamos — respondo, com a voz baixa, quase inaudível.
Caminho até a sala de jantar. As crianças já estão sentadas, aguardando por nós. Phillip me observa com atenção. Kate balança os pés sob a cadeira, distraída, mas seu olhar se ilumina ao me ver.
Eu estava com fome. Mas o apetite se esvai só de estar perto dele. Sento-me à mesa com o coração apertado, os ombros tensos e a alma em silêncio. Tento parecer presente, mas estou longe. Estou em outro lugar, dentro de mim, onde ainda posso respirar.
Phillip, ao perceber meu semblante abatido, estende sua pequena mão e a pousa sobre a minha. Olho para ele. Seus olhos me encaram com ternura, sem palavras, mas repletos de afeto. Kate, ao lado dele, me oferece um sorriso tímido — como se, em meio ao caos, ela ainda pudesse me enxergar.
É nesse instante, entre o toque suave e o sorriso frágil, que algo em mim muda. Não posso continuar vivendo assim. Eles merecem mais. Eu mereço mais.
A Sra. Dexter, nossa governanta, passa pela porta e me olha com um ar de pena. E isso me destrói. Odeio viver nessa situação em que todos sabem e veem o que acontece, mas ninguém pode dizer ou fazer nada. E eu sou a pior delas. Porque sou a mãe. Porque sou a mulher que deveria proteger, que deveria agir. E permaneço inerte.
Minha filha não pode continuar vendo o que se passa comigo, enquanto eu aceito humilhações, agressões e traições. Que exemplo estou dando a ela? Se continuar assim, serei para minha filha o que minha mãe foi para mim.
Cresci normalizando as traições de meu pai. Acreditando que os homens tinham direito a esse “escape”, enquanto às mulheres cabia apenas cuidar da casa e dos filhos, deixando os maridos trabalharem e acumularem suas fortunas. Eu estava preparada para a infidelidade de Brandon — mas jamais imaginei que viveria esse inferno de agressões e humilhações.
— Mãe, você melhorou da dor de cabeça? — pergunta Kate, com a voz doce.
Tento, de todas as formas, esconder dela as marcas que ficam em meu corpo — mas é difícil ocultar a tristeza que me consome.
— Estou bem, filha. E você, já fez a lição de casa?
— Amanhã tem aula de balé. Sua mochila está pronta com os seus pertences?
Pergunto, esforçando-me para manter a naturalidade da nossa rotina. Tento sorrir. Tento parecer inteira.
— O Phillip me ajudou a fazer a tarefa, e minha mochila já está prontinha. Você vai fazer meu penteado amanhã, mamãe? Quando faço sozinha, não fica tão bonito quanto quando você faz.
— Faço sim, meu amor — respondo, aproximando-me dela e beijando seu rostinho lindo. — A mamãe vai te deixar ainda mais linda do que já é.
— Como foi o seu dia, querida? — Brandon me pergunta, com a maior cara de pau.
Ele sabe o que fez. Sabe o que isso provoca em mim. Mas finge. Ignora suas ações e me força a atuar como se nada tivesse acontecido — ou como se “não fosse nada demais”.
— Foi tranquilo — respondo, escondendo minha dor atrás de uma entonação leve.
Sento-me à mesa. Phillip conversa animadamente sobre a aula de ciências. Kate conta sobre a coreografia do balé. Enquanto ouço, permito-me por alguns segundos esquecer tudo — e apenas olhar para eles.
A infância ainda mora nos olhos dos meus filhos. E eu não posso permitir que ela seja apagada pelas sombras que Brandon espalha nesta casa.
Com o garfo trêmulo entre os dedos, sinto nascer em mim algo diferente. Não é coragem ainda — é uma urgência silenciosa. Mas ela cresce. Como uma faísca.
Brandon continua a me observar, com aquele ar cínico, como se tivesse feito algum gesto gentil. Mas não há gentileza possível quando o corpo ainda lateja.
Sirvo as crianças com gestos cuidadosos, evitando que percebam o tremor involuntário que se esconde sob a superfície.
— E você, Phillip? — pergunto, forçando um sorriso. — Já terminou a leitura do capítulo do livro da escola?
Ele assente, animado, e começa a falar sobre o livro. A voz dele me atravessa como um lembrete daquilo que ainda é bom, daquilo que ainda é luz.
Brandon tenta encostar sua mão na minha. Me afasto discretamente, como quem serve água ou ajeita um talher. Ele finge não perceber.
A noite segue com sua aparência de normalidade. Mas dentro de mim... cada gesto de Phillip, cada olhar de Kate, cada pequena ternura dos meus filhos acende uma certeza:
Algo precisa mudar, só não sei quando, muito menos como. Mas a faísca está acesa — e agora, ela arde.
— Mamãe, que tal contar uma história para a Kate dormir? Você pode até dormir com a gente, que tal? — sugere Phillip, com o olhar esperançoso.
Percebo sua estratégia. Ele está tentando me afastar de Brandon esta noite — e essa ideia, tão simples e genuína, me emociona.
— Vocês não acham que já estão bem crescidinhos para sua mãe contar histórias e dormir com vocês? — Brandon retruca com rispidez, dirigindo-se aos nossos filhos.
O tom deixa claro: não se trata apenas de uma opinião. É uma tentativa de manter o controle.
— Ah, papai! Sinto tanta saudade da mamãe me contando histórias. Faz muito, mas muito tempo que ela não faz isso... — diz Kate, com um olhar triste e voz miúda, como quem não quer confrontar, mas não consegue esconder sua decepção.
Brandon respira fundo, apertando levemente o copo que segura.
Olho para meus filhos. Phillip continua com a expressão serena, como quem espera que o mundo faça sentido. Kate tenta sorrir, mas sei que carrega nos olhos o peso do que vive — mesmo que não compreenda totalmente.
Sinto que devo algo a eles. Uma história antes de dormir não será apenas um conto — será um abrigo. Será a chance de dizer, sem dizer, que a mamãe ainda está aqui.
— Que tal subirmos assim que terminar o jantar? — digo com suavidade.
Phillip sorri, e Kate pula da cadeira, radiante. Brandon permanece em silêncio. Mas pela primeira vez esta noite, sou eu quem define o próximo passo.
As crianças jantam em silêncio. Phillip evita olhar para o pai. Kate mexe no prato, distraída, como se quisesse desaparecer.
Eu estou presente fisicamente, mas é como se meus pensamentos estivessem trancados num quarto escuro dentro de mim. Cada palavra de Brandon ecoa como uma sentença — e seu olhar...
Seu olhar diz tudo o que ele deseja que eu entenda sem ousar responder.
Mas agora, há algo diferente em mim. A faísca não se apagou e ela arde. E talvez, pela primeira vez, esteja pronta para se transformar em fogo.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 103
Comments