Capítulo 5

...— BELLA STEWART —...

Os dois dias se passaram como passam todos os dias que eu tento controlar: devagar por fora, rápidos por dentro. Acordei cedo, fui para a faculdade, fingi que as leituras do seminário eram mais interessantes do que realmente eram, e almocei uma salada que tinha gosto de remorso. No grupo das meninas — eu, Lolla e Bruna — a conversa estava a todo vapor:

Lolla: Hoje é a festa do Alex! Vai, né?

Bruna: Com certeza. Já separei o vestido. Curto. Muito curto.

Lolla: Bella, responde. E não vem com “minha mãe, meu pai”.

Eu: Vou. À noite. Sem escolta de mordomo. E sem buquê de desculpas.

Bruna: Aleluia!

Aniversário de Alex Donovan, o garoto mais popular da faculdade. Já namoramos. Terminamos por culpa dele — traiu e depois quis argumentar. “Não foi bem assim”, ele disse na época. Foi exatamente assim. A única coisa boa naquela história era que eu tinha finalmente aprendido a dizer “não” sem tremer. Ainda assim, festa é festa; e havia em mim uma necessidade teimosa de me sentir normal. Como qualquer outra menina que escolhe um vestido, passa batom, ri alto e dança sem pensar em planilhas e sobrenomes.

Eu precisaria do meu carro para hoje. Uber resolve, claro, mas eu não queria chegar de carona na festa do meu ex. Orgulho besta? Talvez. Ou só vontade de estar no volante pela primeira vez em dias. Decidi: sairia da faculdade e iria direto à oficina.

A tarde escorreu num diagramado de PowerPoint e professores que amam ouvir a própria voz. Às quatro e meia, fechei o notebook, pedi um Uber.

O motorista me deixou na esquina da Oficina Atlas e Silva. O sol do fim do dia fazia as fachadas velhas parecerem douradas. O letreiro desbotado continuava o mesmo, e Thor — o cachorro mais atento do bairro — levantou as orelhas assim que me viu. Abanou o rabo, mas sem efusões baratas; Thor tinha dignidade.

— Oi, grandão. — Abaixei para coçar atrás da orelha. — Vim buscar meu xodó. O seu dono está?

— O xodó tá ali dentro. — A voz de Atlas veio de algum lugar atrás de mim, grave, limpa, a mesma corda que vibra sem esforço. — O carro, digo. Se o “xodó” for o cachorro, vai ter briga.

Levantei o rosto e encontrei o dele: camiseta escura, jeans, mãos marcadas de graxa, barba por fazer. Tinha um risco de óleo na bochecha, como se fosse uma pintura de guerra. E aquele jeito de olhar sem pressa, que me desmonta a pose.

— Vim buscar meu carro, sim. — Fiz de conta que não notei a ponta do sorriso dele. — Confirma pra mim: são dez minutos de distância até aqui, não três horas, certo?

Ele riu, aquele riso baixo que mostra os dentes perfeitamente alinhados e bonitos sem fazer alarde.

— Dez minutos. A mentira é só pra princesas teimosas subirem caminhonete. E como ver, funcionou. Pelo menos com você.

— Você mentiu com convicção. — Cruzei os braços. — Isso devia ser crime.

— Deve ser. — Ele deu de ombros. — Mas você teria preferido caminhar de salto?

— Ponto pra você. — Suspirei. — Posso ver meu carro?

Ele fez sinal com a cabeça e caminhamos para dentro. Meu carro estava ali, impecável, mais limpo do que eu tinha deixado. O capô ainda aberto, uma bandeja com peças ao lado.

— Vazamento no sistema de arrefecimento. — Atlas apontou, didático. — Mangueira cansada, abraçadeira frouxa. Troquei as correias também, já estavam pedindo socorro. E fiz uma limpeza no sistema. Testei duas vezes. Tá novo.

— “Abraça… o quê?” — Fiz careta. — Eu só entendi “tá novo”.

— O importante é esse. — Ele secou as mãos num pano. — Orçamento tá aqui. — Me passou um papel com os itens anotados à caneta e os valores ao lado.

Olhei os números e, por um segundo, achei que tinha entendido errado. Não estava barato — nenhum carro importado é barato para arrumar —, mas estava justo. Mais justo do que eu esperava de alguém que poderia facilmente me arrancar o dobro.

— Você cobrou menos do que podia. — Falei antes de pensar.

— Eu cobrei o que vale. — Ele disse, simples. — “Mais do que podia” é coisa de quem acha que cliente imprime dinheiro.

— Há quem ache que eu imprimo. — Respondi, metendo a mão na bolsa para pegar o cartão. — E há quem funcione assim com todo mundo. Obrigada por não ser esse.

— Eu só quero dormir à noite. — Ele passou o cartão na maquininha, me entregou. — Senha.

Digitei, tentando não sorrir. O gesto automático do cotidiano tinha virado uma conversa sobre valores, e eu não sabia muito lidar com essas coisas sem querer abraçar o mundo. Aprovado.

— Quer que eu te mostre o que troquei? — ele ofereceu. — Não porque você precise saber, mas porque talvez você queira.

— Eu quero. — Respondi, e me surpreendi com a sinceridade. — Não quero ser a pessoa que só entrega a chave e pergunta “ficou pronto?”.

Ele foi pegando peça por peça, explicando com palavras que eu entendia. Quando viu que eu franzia a testa, traduzia: “isso aqui esquenta demais, esse negócio prende, esse outro segura”. Eu fiz algumas perguntas que talvez tivessem sido bobas, e ele respondeu como se fossem importantes. Em algum momento, me peguei interessada de verdade em uma mangueira que não significa nada para quem nasce em casas com colunas de mármore. Eu não tinha aula sobre isso na minha vida — sobre como as coisas funcionam debaixo do capô.

— Quer dar uma volta? — ele perguntou por fim. — Só pra sentir. Eu dirijo, você ouve barulho. Se tiver algo fora do lugar, eu volto e vejo.

— Você dirige o meu carro? — arqueei a sobrancelha, fingindo ciúme.

— Ou você dirige e eu ouço. — Ele apontou pro banco do passageiro. — Mas se bater um poste, eu cobro em dobro.

— Que cavalheirismo… — Revirei os olhos. — Dirija você.

Entramos. Ele ajustou o banco com a naturalidade de quem respeita máquina, ligou o motor e deixou o ronco existir por alguns segundos. O som veio macio, cheio, como se o carro inspirasse depois de dois dias de spa.

— E então? — perguntei.

— Tá bonito. — Ele deu uma voltinha na quadra, freou, acelerou, ouviu com atenção. — Sem tremor, sem vibração estranha. As marchas entram macias. Tá redondo.

— Uau. — Sorri. — Se eu fechar os olhos, você parece um cardiologista falando do meu coração.

— Não fecha os olhos, não. — Ele disfarçou um sorriso. — Eu prefiro você vendo a rua.

Voltamos para a oficina. Ele estacionou, desligou e pousou as mãos por um segundo no volante, como quem agradece. Saí e me apoiei na porta, olhando para ele.

— Obrigada. — Eu disse — e não era só pelo carro. — Você cumpriu a promessa.

— Eu prometi “dois dias sem mentira”. Tá entregue.

Trocamos olhares rápidos, mas aquela bolha foi quebrada pelo celular caindo mensagem.

Lolla: “Sete e meia no meu prédio. Vai no vestido azul Royal, melhor que um vermelho.” Respondi com um “ok” e fechei o celular. Olhei para Atlas.

— Preciso ir. — Bati de leve no capô. — Obrigada por devolver meu xodó.

— Claro, se bagunçar novamente, já sabe onde vir — Ele passou a mão no pelo do Thor, que tinha encostado a cabeça no joelho dele.

— Sim, obrigada!

Entrei no carro, liguei, acenei e fui embora.

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Comments

Maria Sena

Maria Sena

Eu tenho a sensação que apartir de agora esse carro vai dar vários problemas só pra ir na oficina do Atlas.

2025-09-15

2

Irene Saez Lage

Irene Saez Lage

Não sei mais acho que o Atlas é o filho perdido do Sr amigo da família dela

2025-09-14

1

Rosilene Narciso Lourenco Lourenco

Rosilene Narciso Lourenco Lourenco

é uma pena ela não ter atitudes e se deixar levar pelas armações dos pais.

2025-09-17

0

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