...— BELLA STEWART —...
O interior tinha cheiro de óleo e café frio. Uma medalhinha amassada balançava no retrovisor. Havia um boné no painel e um bilhete preso com fita isolante: “não esquecer a marmita — mãe”. Sorri sozinha. Gostei da ideia de alguém lembrando Atlas de comer.
— Oficina muito longe? — perguntei.
— Dez minutos. — Ele ligou o rádio baixo, numa estação de notícias. Mãos grandes no volante, postura atenta. Era o oposto dos homens com quem eu costumava lidar: não parecia interessado em impressionar ninguém.
Virei o rosto incrédula.
— Como é que é?! Você disse três horas!
Dessa vez, ele riu. Não uma gargalhada, mas um riso baixo que revelou dentes perfeitamente alinhados e bonitos. E, por um instante, eu fiquei presa olhando, surpresa com o quanto aquele sorriso suavizava o jeito duro dele.
— Mentira. — Atlas confessou, ainda rindo. — Se eu falasse a verdade, você nunca ia subir nessa caminhonete.
Apertei os lábios, tentando não sorrir junto, mas foi impossível. A audácia dele me irritava e, ao mesmo tempo, me fazia sentir viva.
— Você trabalha sozinho? — tentei puxar conversa.
— Tinha mais dois. — Pausa. — Mas devido algumas coisas, agora trabalho só.
— Deve ser cansativo.
— É trabalho. — Ele deu de ombros. — Cansativo é fingir o dia inteiro. Ou trabalho ou não como.
Eu virei o rosto para a janela, como se a rua tivesse ficado fascinante. Aquela frase me acertou num ponto que eu passava maquiagem por cima.
Chegamos. A oficina era um galpão simples com paredes pintadas de branco encardido e um letreiro azul desbotado: Oficina Atlas e Silva. O “e Silva” tinha sido retocado à mão. Havia plantas em latas de tinta nos cantos, um rádio velho com a antena remendada e um cachorro muito atento deitado na sombra, orelhas em alerta. Ele ergueu a cabeça e abanou o rabo quando viu Atlas.
— O nome dele é Thor. — Atlas comentou, notando meu olhar.
— Thor e Atlas. — Sorri. — Você gosta de mitologia, pelo visto.
— Meu pai gostava. — O jeito como ele disse “meu pai” carregava uma saudade. — Eu gosto de ter no que pôr o nome.
Houve algo no modo contido como ele disse aquilo que me deu vontade de perguntar mil coisas e nenhuma. Em vez disso, segui o protocolo.
— Tem um lugar, ahn, limpo, para eu esperar e chamar um carro?
— Tem a sala ali. — Ele apontou para um escritório pequeno com uma janela. — Água filtrada, café ruim. Wi-Fi… às vezes. Mas você pode chamar seu motorista, imagino.
— Não tenho motorista. — Falei mais rápido do que pretendia. — Quer dizer, tenho. Mas não quero.
Ele me lançou um olhar breve que dizia muito: “entendi”. Não insistiu. Voltou para o carro, anotou números numa prancheta, abriu o capô de novo, examinou. Eu o observei de lado, como quem observa um idioma novo. Havia dignidade no jeito de trabalhar, uma espécie de orgulho sem plateia. Senti um aperto de admiração que era também curiosidade. Quem era ele antes de ser “o cara da oficina”? Quem ele era quando ninguém olhava?
— Posso ver seu número? — Ele apareceu ao meu lado com uma caneta. — Quando estiver pronto, te ligo para avisar.
Passei. Ele digitou no próprio celular, um aparelho com a tela trincada no canto. O toque do meu nome no telefone dele foi quase cômico: Bella Stewart. Parece que o sobrenome entra antes da gente em qualquer lugar.
— Só “Bella” está bom. — arrisquei.
— Certo, “Só Bella”. — O canto da boca dele cedeu um centímetro. — Dois dias.
Assenti. De repente, dois dias pareceram uma eternidade e um piscar de olhos ao mesmo tempo. Meu pai ficaria furioso, minha mãe me daria aquele sermão passivo e eu seria empurrada de volta para o vestido perfeito e a conversa perfeita ao lado do “homem admirável” no jantar.
Pedi um carro por aplicativo e esperei do lado de fora, sob uma árvore. Atlas ajeitava algo no motor do meu carro com concentração. O sol marcava o contorno dos ombros dele, e eu me peguei pensando em como ele devia ser aos seis anos: mãos curiosas desmontando brinquedos, a primeira bicicleta, o primeiro motor. Ri da própria imaginação. Eu era ótima em inventar histórias, péssima em viver a minha.
O carro chegou. Eu abri a porta, olhei de novo para ele. Entrei, e enquanto o carro arrancava, Thor latiu uma vez e deitou. A oficina foi ficando pequena pelo retrovisor.
No caminho, meu celular vibrou.
Mamãe: Onde você está? Seu pai quer você em casa às 17h para provar o vestido. O jantar começa às 19h. Não se atrase.
Pai: Não invente. Hoje é importante.
Olhei a hora. Faltavam ainda nove horas para eu me transformar de novo em vitrine. Mas sai era isso. Minha mãe sempre encurtando a corda invisível que ela amarrou em mim.
Pensei em Atlas dizendo “fingir o dia inteiro é cansativo”. Pensei no nome dele, esse peso bonito do mundo nos ombros.
Respondi um ok seco. Apoiei a cabeça no encosto e fechei os olhos por um instante. O vestido azul-claro, Richard Moreau, os cristais da sala, os flashes, as mãos calculando alianças como negócios — tudo me veio numa onda. Por cima, porém, ficou o som do capô se fechando, o “dois dias” de Atlas, a promessa muda de que, por algum motivo que eu ainda não entendia, meus passos tinham esbarrado em algo real.
Quando o carro entrou na alameda da mansão, o portão abriu-se com a docilidade dos hábitos. Pensei em Thor abanando o rabo, em latas de tinta virando vasos, na caneca de café frio do painel. A primeira coisa que fiz ao entrar foi mandar mensagem para um número salvo como “Atlas (oficina)”.
Bella: Se aparecer “surpresa idiota”, me avisa antes. E… obrigada por hoje.
Demorei para perceber que estava sorrindo para a tela. O retorno veio minutos depois, quando eu já atravessava o hall.
Atlas: Aviso sim, princesa.
Ri sozinha. Enfiei o celular no bolso antes que minha mãe me visse com uma expressão que não combinava com “refinamento”.
Subi para o quarto. Olhei para o vestido vermelho que estava estendido sobre a cama, pronto para me vestir como uma moldura. Toquei o tecido com as pontas dos dedos e, pela primeira vez, imaginei como seria escolher outra coisa.
Tenho tudo.
Pelo menos, é o que dizem. Faço faculdade, tenho dinheiro no banco, patrimônios em meu nome que recebi quando completei dezoito anos. Apartamentos, ações, participações em empresas que nem sei explicar direito como funcionam. No papel, sou a filha perfeita, a herdeira blindada contra qualquer ameaça do mundo.
Mas ninguém nunca conta o preço desse “tudo”.
Desde os meus dezoito anos, precisei colocar a vida para frente. Cada passo medido, cada movimento controlado. Nada era simplesmente porque eu queria, mas porque se encaixava no que esperavam de mim. Hoje, com vinte e cinco anos, meus pais ainda seguram a ponta da corda que amarraram em mim.
Eles me monitoram. Me vigiam. Às vezes acho que cada respiração minha passa por um filtro invisível, para ver se está dentro do padrão Stewart.
E eu me pergunto: de que adianta ter liberdade no papel, se na prática não posso escolher nem a cor do vestido que vou usar à noite?
Meus amigos da faculdade sempre falavam em viajar nas férias, pegar a estrada sem rumo, acampar na beira da praia. Eu sorria, fingia empolgação, mas sabia que jamais teria permissão para isso. No máximo, uma viagem “planejada” para a Europa, com motorista particular, hotéis cinco estrelas e roteiros aprovados pela minha mãe. Não é liberdade quando tudo já vem embrulhado e entregue pronto.
E o pior é que, depois de tanto tempo presa a essas correntes invisíveis, eu comecei a acreditar que talvez fosse normal. Que eu realmente fosse incapaz de decidir por mim mesma.
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Atualizado até capítulo 73
Comments
Maria Sena
Nossa, que vida é essa que ela não pode nem respirar por conta própria? A impressão que eu tenho é que os pais estão punindo ela pelo irmão gêmeo ter morrido. Se fosse o contrário, acho que não seria assim. É muito triste não se ter vida própria, sempre comandada pelos outros.
2025-09-15
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Simone Ferreira
Enquanto muitas querem vida de princesa ,Bella quer vida de roceira,mundo cruel🤣🤣🤣
Isso só afirma uma coisa,ser pobre é ser feliz 🤣 Temos liberdade de escolhas,nem que nos arrependamos depois, mas temos . 🤣🤣🤣
2025-09-19
0
Irene Saez Lage
Isso é muito triste não poder ser ela mesma ela nasceu pra que? se tem que ficar igual marionete nas mãos dos pais da doido 😅
2025-09-13
1