...— ATLAS —...
Eu não sei se acredito em destino. Pra mim, a vida nunca teve nada de mágica. Ela simplesmente acontece, cobra caro, e ou você paga, ou fica para trás. E é por isso que eu não tenho me impressionado tanto com aquela garota do carro importado. Não que ela passasse despercebida — seria impossível. Mas eu já vi gente demais achando que o mundo gira ao redor de um sobrenome. E o mundo, do meu lado da cerca, gira porque alguém está suando, se matando de trabalhar, e não porque nasceu dentro de uma casa com colunas de mármore.
Meu nome é Atlas. Tenho vinte e oito anos. O nome não foi escolha minha, claro, mas eu aprendi a carregar ele como um tipo de ironia: Atlas, o titã condenado a sustentar o céu nas costas. A diferença é que eu não sustento o céu — sustento minha mãe e meu irmão, depois que meu pai faleceu.
Minha mãe sempre foi meu porto seguro. O tipo de mulher que nunca teve luxo, mas que transformava qualquer pedaço de pão em banquete só porque sentava com a gente e fazia parecer especial. Eu e Elian fomos tudo que ela teve. Na verdade, nem sei se posso dizer que eu sou dela desde o começo.
Fui abandonado. Isso não é segredo. Minha mãe nunca escondeu de mim. Um bebê deixado na porta de uma casa simples, embrulhado numa manta, numa madrugada chuvosa. Ela me encontrou quando voltava de um turno de trabalho e, em vez de chamar alguém ou me largar num abrigo, me pegou no colo e decidiu que eu seria dela.
Eu sempre carreguei essa história como um peso e, ao mesmo tempo, como orgulho. Peso porque, de alguma forma, eu nunca soube quem realmente me colocou no mundo. Orgulho porque, mesmo sem ter nada, minha mãe escolheu ficar comigo. Isso é amor de verdade.
Dois anos depois, nasceu Elian. Esse sim, filho de sangue da minha mãe. Crescemos juntos, mas diferentes como água e fogo. Eu aprendi cedo que precisava ajudar, carregar, me virar. Elian, sempre foi o oposto. Não é que ele não tenha coração — até tem — mas ele nasceu com essa mania de achar que a vida vai se ajeitar sozinha, sem esforço.
Enquanto eu ia trabalhar na oficina, carregando caixas, consertando motor, fazendo de tudo um pouco, ele ia pra rua. Primeiro eram só amigos, depois brigas, depois copos de bebida. Quantas vezes já precisei buscar ele em um bar, em esquina, em briga besta… Eu perdi a conta. E cada vez que eu chegava, minha mãe estava em casa, preocupada, esperando a porta abrir com medo de ouvir notícia ruim.
Eu não consigo culpar ela. Mãe é mãe, sempre vai acreditar que o filho vai mudar. Mas eu sei que Elian ainda não entendeu o peso das coisas. A vida cobra cedo ou tarde, e eu tenho medo do dia em que ela vai bater na porta dele mais forte do que ele consegue aguentar.
Apesar disso, ele é meu irmão. Eu não deixo de cuidar. Não deixo de estar lá. Se tem uma coisa que aprendi com a vida é que, quando você ama alguém, você não escolhe só as partes boas. Você pega tudo: o erro, a fraqueza, a decepção. É pesado, mas é real.
E enquanto eu seguro as pontas com minha mãe e com Elian, ainda trabalho como um condenado. Oficina não é um serviço limpo nem leve. Você chega cedo, sai tarde, volta pra casa com cheiro de óleo, graxa e suor. O corpo dói, a mente pesa, mas no fim do mês tem comida na mesa. E isso é o que importa.
Eu nunca reclamei, porque sei que podia ser pior. Mas às vezes, quando encosto a cabeça no travesseiro e a calmaria da noite chega, eu penso em como seria ter uma vida que fosse só minha. Sem carregar ninguém, sem buscar meu irmão em boteco, sem minha mãe olhar pra mim com os olhos pedindo que eu não desista.
A verdade é que eu não sei nem se eu sei viver só por mim. Talvez eu tenha nascido com essa sina de carregar. Talvez seja por isso que o nome caiu tão certo: Atlas.
Saí da oficina já passava das oito da noite. O corpo doía como se cada músculo tivesse sido arrancado e colocado de volta no lugar errado. Mas essa era a rotina: motor atrás de motor, cliente atrás de cliente, e eu atrás do dinheiro que nunca parece suficiente.
Fechei a caixa registradora, contei o que entrou no dia e guardei num envelope. Não era muito, mas já dava pra segurar as contas da semana. Peguei o dinheiro que me cabia, enfiei no bolso e segui a pé até a padaria da esquina.
O cheiro de pão quente me acertou assim que abri a porta. Sempre gostei dessa sensação, talvez porque fosse uma das poucas coisas que me lembravam infância: minha mãe, o café preto dela e um pedaço de pão amanhecido com manteiga. Nada de banquete, nada de mesa farta. Só aquilo já bastava.
— Boa noite, Atlas. — disse o padeiro, acostumado a me ver quase todo fim de tarde. — O de sempre?
— O de sempre. — Respondi, passando as mãos na camisa cheia de graxa, como se isso adiantasse.
Ele embrulhou os pães num saco de papel, e eu aproveitei para pegar também um litro de leite e umas fatias de queijo. Coisa simples, mas que fazia diferença em casa. Depois, dei uma passada no mercadinho da rua de baixo e comprei arroz, feijão e algumas verduras. Nada sofisticado, só o básico.
Carregar aquelas sacolas não me incomodava. Pelo contrário, era satisfatório. Apesar de todo o peso que o nome “Atlas” carrega, pelo menos eu podia colocar comida na mesa da minha mãe.
Quando cheguei em casa, a luz da sala já estava acesa. Vi a cortina se mexer discretamente e, logo em seguida, minha mãe abriu a porta. O sorriso dela era sempre o mesmo, cansado, mas cheio de amor.
— Filho, demorou. — disse, estendendo a mão para pegar as sacolas. — Trabalhou demais hoje?
— Nada que eu não aguente, mãe. — Entreguei os sacos e beijei o rosto dela. — Trouxe pão fresquinho.
Os olhos dela se iluminaram como se eu tivesse trazido um presente caro. É isso que me dói: ver como coisas tão pequenas fazem tanta diferença.
Entrei, larguei as chaves em cima da mesa e me joguei na cadeira. A casa era simples, pequena, mas cada canto tinha história. O sofá gasto, a mesa de madeira com uma das pernas mancando, os quadros tortos nas paredes. Tudo aquilo era nosso. Tudo aquilo era real.
— E o Elian? — perguntei, já sabendo a resposta.
Minha mãe suspirou, olhando para o relógio de parede.
— Disse que voltava cedo, mas até agora nada.
Balancei a cabeça, frustrado.
— Eu vou atrás dele.
Ela não me impediu. Nunca impede. Só assente e continua mexendo as panelas, como se cozinhar fosse a forma que ela encontrou de segurar o mundo no lugar.
Mas sei que ela pensava assim como eu, que a qualquer momento o celular tocaria, e receberiamos uma ligação avisando que Elian se meteu em uma briga. Mas ela também sabia, que eu prontamente estaria lá para o defender, como sempre faço.
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Atualizado até capítulo 73
Comments
Irene Saez Lage
A vida simples é boa com amor ❤️ tudo se ajeita mais sempre tem problemas e um pessoa verdadeira obedecendo com juízo pra não deixar desanimar de vez as coisas que estão acontecendo
2025-09-13
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Maria Sena
Esse irmão dele ainda vai meter ele em sérios problemas, e a culta e dele por está sempre o protegendo.
2025-09-15
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Celma Rodrigues
Atlas é um Homem admirável. E sua Mãe também. Esse irmão ainda vai dar muito trabalho, uma pena.
2025-09-13
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