A casa Calderon parecia ter vida própria. Durante o dia, era cheia de vozes e passos; à noite, tudo mergulhava num silêncio que me dava a impressão de estar em um teatro vazio, depois do fim da peça.
Na manhã seguinte, acordei mais cedo que o habitual. Um raio de sol atravessava a fresta da cortina e me atingia o rosto como um lembrete incômodo de que eu ainda estava ali. De alguma forma, ainda respirando.
Fiquei alguns minutos deitada, encarando o teto, até ouvir batidas leves na porta.
— Valentina? — Era Marina.
— Entra.
Ela apareceu com o cabelo solto, bagunçado, e uma expressão animada demais para a hora. Segurava um copo de suco e uma mochila pendurada no ombro.
— Tô indo pra feira de livros que tem no centro. A professora de literatura da escola deu uns pontos extras pra quem visitar e fizer um relatório. Quer vir?
Hesitei.
— Não sou da sua escola.
— Mas ainda assim pode sair de casa, né? — Ela arqueou a sobrancelha, sorrindo. — Serra Dourada tem mais a oferecer do que esse mausoléu de porcelana.
A ideia de sair de casa não era exatamente ruim. Talvez fosse bom respirar outro ar. Talvez ver pessoas que não soubessem quem eu era. Que não olhassem para mim como "a órfã" ou "a filha da nova esposa do Ernesto".
— Que horas?
— Agora.
Ela me lançou um olhar de desafio e saiu, confiante de que eu iria.
Me vesti devagar, peguei minha bolsa e desci as escadas. Na sala, Bianca estava jogada no sofá, assistindo a um programa qualquer. Quando me viu passar, me deu um tchau com a mão, sem tirar os olhos da TV.
Marina me esperava na varanda, sentada no batente com os fones de ouvido pendurados no pescoço.
— Bora?
Assenti, e seguimos a pé pelas ruas arborizadas de Serra Dourada. Era uma cidade pequena, mas bem cuidada. As calçadas largas, os postes com vasos de flores pendurados, os comércios com fachadas coloridas. Nada de mais… mas tudo parecia ter sido tirado de um catálogo de “vida perfeita”.
— Você parece surpresa, — comentou ela, quando viu que eu observava tudo com atenção.
— Não esperava que fosse tão... bonito.
— É. Bonito e entediante. Aqui todo mundo se conhece. Qualquer passo fora da linha e a cidade inteira comenta.
— Isso parece sufocante.
— É. Mas às vezes também é bom. Pelo menos você sabe com quem tá lidando.
Chegamos à feira. Era montada na praça central da cidade, sob tendas brancas. As mesas estavam cheias de livros usados, escritores locais, adolescentes de uniforme escolar — e, claro, professores circulando com pranchetas e olhares atentos.
Marina foi direto a uma banca que vendia zines independentes. Eu fiquei parada por um tempo, observando de longe. Era estranho estar no meio de tanta gente outra vez. Fazia semanas que eu não me misturava com o mundo. Me sentia invisível e, ao mesmo tempo, exposta demais.
Foi quando ouvi meu nome.
— Valentina?
Virei devagar e dei de cara com uma garota de cabelo cacheado, óculos redondos e sorriso curioso.
— É você? A filha da Helena?
A pergunta me atingiu como um soco.
— Era. — Respondi, engolindo seco.
— Desculpa. Eu conhecia ela. Minha mãe trabalhou com a sua mãe numa ONG em Alvorada dos Campos. Ela falava de você com tanto orgulho...
Sorri sem mostrar os dentes, apenas por educação. A garota pareceu notar meu desconforto.
— Me chamo Lívia. Se precisar de alguma coisa, tô por aqui, tá?
Assenti. Ela se afastou, e eu me virei para procurar Marina.
— Tá tudo bem? — perguntou ela, notando minha expressão.
— Só encontrei alguém que conhecia minha mãe.
— Ah... — Ela ficou em silêncio por um momento. — Quer ir embora?
— Não. Acho que... posso tentar aproveitar.
Ficamos ali por mais uma hora. Marina me mostrou seus livros favoritos, me apresentou ao vendedor de bolinhos de chocolate da praça (“você precisa provar esse, é tipo crime de tão bom”), e me contou histórias engraçadas sobre os professores da escola.
Foi a primeira vez, desde que tudo desabou, que eu ri de verdade.
Na volta para casa, o céu começava a escurecer. O ar tinha cheiro de grama molhada e tarde de domingo. Caminhamos devagar, em silêncio confortável.
— Posso te perguntar uma coisa? — disse Marina, do nada.
— Pode.
— Por que você odeia tanto estar aqui?
Respirei fundo.
— Porque não escolhi. Porque a última coisa que minha mãe me deixou foi essa vida que não é minha. Porque tudo nessa casa grita "família feliz", e eu... não me sinto parte de nada disso.
Ela não respondeu de imediato.
— Sabe... nem a gente se sente parte disso o tempo todo. Acha que o Lorenzo é tão perfeito quanto parece? Ou que o papai sabe ser pai de verdade? Todo mundo aqui tem rachaduras. A diferença é que a gente já aprendeu a disfarçar.
Fiquei em silêncio.
— Você não precisa gostar da gente agora. Mas talvez, um dia, possa deixar de nos odiar.
Quando chegamos, a casa estava iluminada, e uma discussão vinha da sala de jantar. Vozerio abafado. Reconheci a voz do Ernesto, exaltada. E a de Lorenzo, firme e baixa.
Paramos na varanda e nos entreolhamos.
— Eles brigam muito? — perguntei.
— Só quando ninguém vê.
E foi aí que entendi: Talvez eu não fosse a única deslocada ali.
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Atualizado até capítulo 44
Comments
Vania Lucia
Difícil a situação dela,será que ela é filha do Ernesto?
2025-09-10
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