Capítulo 2 — Paredes que Escutam

Acordei com o som de vozes no andar de baixo. Por um momento, não reconheci o teto branco acima de mim, nem o lençol macio que cobria meu corpo. Tive um lapso de confusão — como se minha mente tivesse me levado de volta para a casa antiga, onde minha mãe ainda cantava baixinho na cozinha e o cheiro de café tomava conta das manhãs.

Mas não havia cheiro de café.

Não havia canto suave.

Só uma casa estranha. E uma garota estranha dentro dela: eu.

O relógio na parede marcava 8h12.

Me levantei devagar, o corpo ainda pesado pelo choro da noite anterior. Atravessei o quarto até a janela. Do lado de fora, o jardim da frente parecia recém-podado. Tudo ali era excessivamente organizado, como se qualquer bagunça fosse punida.

Peguei uma muda de roupa da mochila e fui até o banheiro da suíte. A água quente do chuveiro me trouxe algum alívio, como se quisesse apagar a realidade por alguns instantes. Vesti um jeans simples e uma camiseta preta, sem me preocupar com aparência. Não estava tentando impressionar ninguém. Nem queria.

Desci as escadas em silêncio, tentando não chamar atenção. Ao virar o corredor, dei de cara com uma garota — uns 16 anos, cabelo preso em um coque bagunçado, segurando uma tigela de cereal.

Ela me olhou por um segundo, como se estivesse tentando identificar se eu era real.

— Ah, oi... bom dia. — Ela mordeu o lábio, como se estivesse sem saber o que dizer. — Você dormiu bem?

— Sim. — Menti.

— Sou a Marina. Irmã do meio. Tem mais gente espalhada por aí, mas... cada um no seu mundo. — Ela sorriu de leve. — Quer comer alguma coisa?

— Não tô com fome, obrigada.

Ela assentiu, compreensiva, e voltou a se sentar no balcão da cozinha.

Andei pela casa com passos hesitantes, como quem pisa em território alheio. Tudo ali parecia ter dono: os móveis, as plantas, até o cheiro. Eu era a única peça solta.

Foi quando o vi.

Encostado no batente da porta da sala de estar, braços cruzados, olhar firme. Alto, postura imponente, cabelos escuros, e uma expressão que deixava claro que ele não estava disposto a ser simpático.

— Você fugiu do jantar ontem. — A voz dele era direta, sem suavidade.

— Não achei que alguém fosse sentir falta. — Cruzei os braços também, numa tentativa tola de igualar a tensão.

— A questão não é essa. A gente tem regras aqui. E uma delas é: ninguém janta sozinho.

— Engraçado... ninguém foi me buscar. — Sorri de canto, amarga.

— Porque não somos babás. — Ele deu um passo à frente. — Você não é uma criança.

— Não. E também não sou parte disso. — Dei de ombros. — Só estou aqui porque alguém achou que era o certo.

Ele me encarou por longos segundos. Eu podia ver nos olhos dele a mistura de julgamento e algo mais — talvez pena? Raiva? Não consegui decifrar.

— Eu sou o Lorenzo. — Disse por fim. — Sou o mais velho. Esse lugar pode parecer perfeito, mas ele só funciona porque todo mundo aqui respeita os limites. Você quer ficar na sua? Beleza. Mas não atrapalha quem já tá aqui.

— Pode deixar. Não pretendo tocar em nada.

— Ótimo.

Ele virou as costas e subiu as escadas, como se aquela conversa tivesse sido apenas um item riscado na lista de afazeres.

Fiquei ali, parada no meio da sala, com o coração acelerado. A primeira impressão que tive dele ontem se confirmou: Lorenzo Calderon era feito de concreto. Frio, rígido e impossível de atravessar.

Voltei para a cozinha. Marina ainda estava lá, agora no celular. Quando percebeu minha presença, ergueu o olhar com um sorriso tímido.

— Desculpa por ele. O Lorenzo é... assim mesmo.

— Não precisa pedir desculpa por ele. Eu já conheci gente pior.

Ela riu.

— Talvez. Mas com o tempo, você se acostuma.

— Não estou planejando ficar tempo suficiente pra isso.

Ela me olhou com atenção, mas não insistiu. Terminou o cereal e deixou a tigela na pia.

— Vai sair hoje? — perguntou, pegando uma mochila que estava pendurada na cadeira.

— Sair? Pra onde?

— Sei lá. Dar uma volta. Conhecer a cidade. Serra Dourada tem uns lugares legais.

— Acho que vou ficar por aqui mesmo.

Ela assentiu e foi embora. Fiquei sozinha outra vez.

Voltei para o meu quarto e me sentei à escrivaninha. O caderno ainda estava ali, com a capa fechada. Abri de novo, li a frase que havia escrito ontem. Pensei em riscar. Pensei em escrever outra coisa.

Mas não escrevi nada.

Em vez disso, me levantei, abri a janela e fiquei ali. O vento entrava devagar, bagunçando meus cabelos. Do lado de fora, ouvi vozes dos outros irmãos. Risadas, barulhos de passos correndo no quintal.

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Isabel Esteves Lima

Isabel Esteves Lima

Coitada da Valentina, a mãe morreu e foi morar com um família que nunca viu.

2025-09-08

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Capítulos
1 Prefácio — Entre Nós, os Calderon
2 Capítulo 1 — Uma Casa Que Não Era Minha
3 Capítulo 2 — Paredes que Escutam
4 Capítulo 3 — Por Trás das Cortinas
5 Capítulo 4 — Quando Ninguém Está Olhando
6 Capítulo 5 — Mesa para Sete
7 Capítulo 6 — O Lugar Onde Tudo Ecoa
8 Capítulo 7 — As Coisas que Não Dizemos
9 Capítulo 8 — Onde o Silêncio Quebra
10 Capítulo 9 — Tudo que Não Dizemos em Voz Alta
11 Capítulo 10 — Coisas que se Revelam no Silêncio
12 Capítulo 11 — Coisas que se Partem em Silêncio
13 Capítulo 12 — Coisas Que Doem em Voz Alta
14 Capítulo 13 — Depois do Aplauso
15 Capítulo 14 — Quando a Luz Incomoda
16 Capítulo 15 — O Dia em que a Cidade Escutou
17 Capítulo 16 — O Dia Antes
18 Capítulo 17 — Entre a Partida e o Sábado
19 Capítulo 18 — As Coisas que Voltam
20 Capítulo 19 — O Sábado que Chegou
21 Capítulo 20 — Quando as Rachaduras Se Mostram
22 Capítulo 21 — O Peso das Regras
23 Capítulo 22 — O Peso do Olhar
24 Capítulo 23 — O Quebra-Cabeça dos Irmãos
25 Capítulo 24 — A Casa em Estado de Sítio
26 Capítulo 25 — O Peso de Um Nome
27 Capítulo 26 — Quando As Paredes Escutam
28 Capítulo 27 — O Que Ele Nunca Disse
29 Capítulo 28 — O Peso do Que Não se Diz
30 Capítulo 29 — O Segredo que Queima
31 Capítulo 30 — Quando a Verdade Se Arrasta para a Luz
32 Capítulo 31 — Entre o Fogo e o Sangue
33 Capítulo 32 — Linhas que Não Podem Ser Cruzadas
34 Capítulo 33 — Trégua com Bordas (I)
35 Capítulo 33 — Trégua com Bordas (II)
36 Capítulo 34 — Vozes que Não se Apagam
37 Capítulo 35 — O Fantasma da Sala Fechada
38 Capítulo 36 — Vozes da Estrada
39 Capítulo 37 — O Peso das Verdades
40 Capítulo 38 — O Contra-ataque
41 Capítulo 39 — O Julgamento Dentro de Casa
42 Capítulo 40 — Quando o Silêncio Ecoa Para Fora
43 Capítulo 41 — Quando as Vozes se Tornam Grito
44 Epílogo — Entre Nós, os Calderon
Capítulos

Atualizado até capítulo 44

1
Prefácio — Entre Nós, os Calderon
2
Capítulo 1 — Uma Casa Que Não Era Minha
3
Capítulo 2 — Paredes que Escutam
4
Capítulo 3 — Por Trás das Cortinas
5
Capítulo 4 — Quando Ninguém Está Olhando
6
Capítulo 5 — Mesa para Sete
7
Capítulo 6 — O Lugar Onde Tudo Ecoa
8
Capítulo 7 — As Coisas que Não Dizemos
9
Capítulo 8 — Onde o Silêncio Quebra
10
Capítulo 9 — Tudo que Não Dizemos em Voz Alta
11
Capítulo 10 — Coisas que se Revelam no Silêncio
12
Capítulo 11 — Coisas que se Partem em Silêncio
13
Capítulo 12 — Coisas Que Doem em Voz Alta
14
Capítulo 13 — Depois do Aplauso
15
Capítulo 14 — Quando a Luz Incomoda
16
Capítulo 15 — O Dia em que a Cidade Escutou
17
Capítulo 16 — O Dia Antes
18
Capítulo 17 — Entre a Partida e o Sábado
19
Capítulo 18 — As Coisas que Voltam
20
Capítulo 19 — O Sábado que Chegou
21
Capítulo 20 — Quando as Rachaduras Se Mostram
22
Capítulo 21 — O Peso das Regras
23
Capítulo 22 — O Peso do Olhar
24
Capítulo 23 — O Quebra-Cabeça dos Irmãos
25
Capítulo 24 — A Casa em Estado de Sítio
26
Capítulo 25 — O Peso de Um Nome
27
Capítulo 26 — Quando As Paredes Escutam
28
Capítulo 27 — O Que Ele Nunca Disse
29
Capítulo 28 — O Peso do Que Não se Diz
30
Capítulo 29 — O Segredo que Queima
31
Capítulo 30 — Quando a Verdade Se Arrasta para a Luz
32
Capítulo 31 — Entre o Fogo e o Sangue
33
Capítulo 32 — Linhas que Não Podem Ser Cruzadas
34
Capítulo 33 — Trégua com Bordas (I)
35
Capítulo 33 — Trégua com Bordas (II)
36
Capítulo 34 — Vozes que Não se Apagam
37
Capítulo 35 — O Fantasma da Sala Fechada
38
Capítulo 36 — Vozes da Estrada
39
Capítulo 37 — O Peso das Verdades
40
Capítulo 38 — O Contra-ataque
41
Capítulo 39 — O Julgamento Dentro de Casa
42
Capítulo 40 — Quando o Silêncio Ecoa Para Fora
43
Capítulo 41 — Quando as Vozes se Tornam Grito
44
Epílogo — Entre Nós, os Calderon

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