Acordei com o som de vozes no andar de baixo. Por um momento, não reconheci o teto branco acima de mim, nem o lençol macio que cobria meu corpo. Tive um lapso de confusão — como se minha mente tivesse me levado de volta para a casa antiga, onde minha mãe ainda cantava baixinho na cozinha e o cheiro de café tomava conta das manhãs.
Mas não havia cheiro de café.
Não havia canto suave.
Só uma casa estranha. E uma garota estranha dentro dela: eu.
O relógio na parede marcava 8h12.
Me levantei devagar, o corpo ainda pesado pelo choro da noite anterior. Atravessei o quarto até a janela. Do lado de fora, o jardim da frente parecia recém-podado. Tudo ali era excessivamente organizado, como se qualquer bagunça fosse punida.
Peguei uma muda de roupa da mochila e fui até o banheiro da suíte. A água quente do chuveiro me trouxe algum alívio, como se quisesse apagar a realidade por alguns instantes. Vesti um jeans simples e uma camiseta preta, sem me preocupar com aparência. Não estava tentando impressionar ninguém. Nem queria.
Desci as escadas em silêncio, tentando não chamar atenção. Ao virar o corredor, dei de cara com uma garota — uns 16 anos, cabelo preso em um coque bagunçado, segurando uma tigela de cereal.
Ela me olhou por um segundo, como se estivesse tentando identificar se eu era real.
— Ah, oi... bom dia. — Ela mordeu o lábio, como se estivesse sem saber o que dizer. — Você dormiu bem?
— Sim. — Menti.
— Sou a Marina. Irmã do meio. Tem mais gente espalhada por aí, mas... cada um no seu mundo. — Ela sorriu de leve. — Quer comer alguma coisa?
— Não tô com fome, obrigada.
Ela assentiu, compreensiva, e voltou a se sentar no balcão da cozinha.
Andei pela casa com passos hesitantes, como quem pisa em território alheio. Tudo ali parecia ter dono: os móveis, as plantas, até o cheiro. Eu era a única peça solta.
Foi quando o vi.
Encostado no batente da porta da sala de estar, braços cruzados, olhar firme. Alto, postura imponente, cabelos escuros, e uma expressão que deixava claro que ele não estava disposto a ser simpático.
— Você fugiu do jantar ontem. — A voz dele era direta, sem suavidade.
— Não achei que alguém fosse sentir falta. — Cruzei os braços também, numa tentativa tola de igualar a tensão.
— A questão não é essa. A gente tem regras aqui. E uma delas é: ninguém janta sozinho.
— Engraçado... ninguém foi me buscar. — Sorri de canto, amarga.
— Porque não somos babás. — Ele deu um passo à frente. — Você não é uma criança.
— Não. E também não sou parte disso. — Dei de ombros. — Só estou aqui porque alguém achou que era o certo.
Ele me encarou por longos segundos. Eu podia ver nos olhos dele a mistura de julgamento e algo mais — talvez pena? Raiva? Não consegui decifrar.
— Eu sou o Lorenzo. — Disse por fim. — Sou o mais velho. Esse lugar pode parecer perfeito, mas ele só funciona porque todo mundo aqui respeita os limites. Você quer ficar na sua? Beleza. Mas não atrapalha quem já tá aqui.
— Pode deixar. Não pretendo tocar em nada.
— Ótimo.
Ele virou as costas e subiu as escadas, como se aquela conversa tivesse sido apenas um item riscado na lista de afazeres.
Fiquei ali, parada no meio da sala, com o coração acelerado. A primeira impressão que tive dele ontem se confirmou: Lorenzo Calderon era feito de concreto. Frio, rígido e impossível de atravessar.
Voltei para a cozinha. Marina ainda estava lá, agora no celular. Quando percebeu minha presença, ergueu o olhar com um sorriso tímido.
— Desculpa por ele. O Lorenzo é... assim mesmo.
— Não precisa pedir desculpa por ele. Eu já conheci gente pior.
Ela riu.
— Talvez. Mas com o tempo, você se acostuma.
— Não estou planejando ficar tempo suficiente pra isso.
Ela me olhou com atenção, mas não insistiu. Terminou o cereal e deixou a tigela na pia.
— Vai sair hoje? — perguntou, pegando uma mochila que estava pendurada na cadeira.
— Sair? Pra onde?
— Sei lá. Dar uma volta. Conhecer a cidade. Serra Dourada tem uns lugares legais.
— Acho que vou ficar por aqui mesmo.
Ela assentiu e foi embora. Fiquei sozinha outra vez.
Voltei para o meu quarto e me sentei à escrivaninha. O caderno ainda estava ali, com a capa fechada. Abri de novo, li a frase que havia escrito ontem. Pensei em riscar. Pensei em escrever outra coisa.
Mas não escrevi nada.
Em vez disso, me levantei, abri a janela e fiquei ali. O vento entrava devagar, bagunçando meus cabelos. Do lado de fora, ouvi vozes dos outros irmãos. Risadas, barulhos de passos correndo no quintal.
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Atualizado até capítulo 44
Comments
Isabel Esteves Lima
Coitada da Valentina, a mãe morreu e foi morar com um família que nunca viu.
2025-09-08
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