Capítulo 1 - Minha volta

Essa voz… eu conheço essa voz.

Julie.

Mas… como?

Abro os olhos devagar, como se o próprio ar ao meu redor fosse pesado demais para me permitir despertar por completo. Minha visão, turva no início, lentamente se ajusta à luz suave que entra pela janela do meu quarto. Meu quarto. Aquele quarto.

Reconheço os cortinados azul-escuros bordados com fios dourados, as paredes decoradas com pinturas que sempre admirei quando criança, o carpete macio sob a cama em que agora repouso.

Eu estava em casa.

Um arrepio percorre meu corpo inteiro, da ponta dos dedos até a espinha. Desvio o olhar para baixo, e a sensação de vertigem toma conta de mim: minhas mãos são menores, mais delicadas, a pele clara ainda sem as marcas da dor e da guerra. Meu corpo não é o mesmo. O coração dispara.

“Eu… voltei?”

Não. Não pode ser. Deve ser um delírio da mente, um último truque antes do fim definitivo. Talvez, em instantes, eu finalmente veja minha família me esperando e poderei descansar.

Mas então, por que… porque Julie está aqui? Por que a escuto tão claramente, como se estivesse viva, preocupada, ao meu lado?

Minha cabeça lateja. Uma dor aguda, pulsante, me obriga a soltar um gemido involuntário.

— Jovem dama Kate? — a voz de Julie treme levemente, tomada pela preocupação. — Está pálida… está doente?

Seus olhos azuis me encaravam como duas luas cheias em uma noite escura. Tão familiares, tão verdadeiros. Eu quase perco o fôlego. Ela está mesmo aqui.

Respiro fundo. O ar é real. O cheiro é real. A cama sob meu corpo é real.

“Então… isso não é um sonho?”

O pânico me toma. Estou mesmo no passado? Estou viva outra vez? E se for isso… então esse é o destino que devo carregar? É assim que devo salvá-los?

Mas eu não quero. Não quero.

O peso do que vivi ainda me dilacera. Não quero sofrer aquilo tudo de novo, não quero reviver cada perda, cada lágrima, cada despedida.

— Julie… poderia me deixar sozinha? — minha voz sai mais fraca do que eu pretendia. — Não estou me sentindo bem.

Preciso pensar. Preciso entender. Como diabos isso aconteceu? O que foi aquela visão? Eu deveria estar morta. Eu escolhi estar morta.

Julie hesita. A lealdade em seu olhar se mistura com a relutância em me abandonar.

— Deseja que eu traga o seu café da manhã? — pergunta suavemente.

Quase deixo que uma lágrima escape. Escutar sua voz… depois de ter me despedido dela minutos atrás, ao saltar daquele maldito parapeito… é como receber uma punhalada no peito e um abraço caloroso ao mesmo tempo.

— Apenas… prepare meu banho. E me deixe sozinha, por favor.

Minha resposta soa fria. Ela não merece esse tratamento. Ela jamais mereceria. Mas eu não posso encará-la agora, não depois do que fiz, não depois de saber que ela sofreu ao me ver desistir. Mesmo assim, sei que ela me perdoaria. Julie sempre me perdoaria.

— Como desejar, jovem dama… — sua voz triste acompanha o ranger leve da porta que se fecha atrás dela.

O silêncio retorna, e então tento organizar meus pensamentos. Preciso de respostas.

Primeiramente, como eu voltei ao passado?

Segundamente, em que época exatamente estou?

Terceiramente, se realmente voltei, significa que meus pais e meu irmão estão vivos?

Levanto-me devagar, ainda tonta, e caminho até o espelho encostado na parede. O reflexo me assusta: sou uma criança novamente. Meus cabelos, mais longos do que me recordava nessa idade, caem pelos ombros em ondas claras. Meus olhos, grandes e vibrantes, parecem carregar inocência, não o peso das mortes que já testemunhei.

Encostei a palma da mão fria no espelho. Esse é o rosto da Kate Elise Axen antes da guerra. Antes da dor. Antes de tudo.

Respiro fundo. Tenho de organizar as ideias. Sei que no futuro o reino de Turlon declarará guerra contra o Império de Rafta logo após minha cerimônia de maioridade. Se estou certa sobre onde vim parar, isso significa que tenho apenas alguns anos para impedir a destruição que se aproxima.

Mas como? Como convencer alguém? Se eu simplesmente aparecer diante de Vossa Majestade e disser:

“O reino de Turlon declarará guerra. Precisamos impedir.”

Serei taxada de louca. Ou pior, de traidora, pois nesse tempo Turlon e Rafta ainda gozam de uma frágil aliança de paz.

Não. Antes de qualquer coisa, preciso de aliados. Preciso de uma posição de autoridade, de poder, para que minhas palavras tenham peso. Mesmo sendo filha de um duque, ainda sou apenas “a filha mimada”.

Não basta. Preciso encontrar uma forma de estar mais próxima do poder… do imperador… e, sobretudo, de impedir que meu pai e meu irmão sejam arrastados para a morte certa.

Estou perdida em pensamentos quando a porta range.

— Jovem dama? — Julie surge, discreta. — Ainda planeja sair para escolher o vestido para o Festival Celeste?

Meu coração dispara. Festival Celeste?

Um estalo me atravessa como um raio. Se eu tenho nove anos agora, então… sim, esta é a época em que o Festival celebra o nascimento do Império de Rafta, sob um céu estrelado que marcou a história.

Se estou certa, este pode ser o ano exato em que eventos improváveis acontecerão. Eu posso usá-los. Posso provar que venho do futuro.

— Julie… quantos filhos Vossa Majestade tem? — pergunto, quase sem pensar.

Ela me olha surpresa, como se minha pergunta fosse absurda.

— Vossa Majestade tem apenas um filho, o príncipe herdeiro Leonardo Armani. A jovem dama não se lembra?

— Claro que me lembro… só queria confirmar — respondo rápido, tentando esconder a euforia.

Um sorriso involuntário escapou de meus lábios. Se Leonardo ainda é filho único, então realmente voltei no tempo certo. Ainda dá para mudar tudo.

Julie faz menção de sair, mas se volta para mim antes:

— Ah, o Duque não tomou café com a Duquesa e o jovem mestre hoje — Meu coração aperta.

Por que papai faltou ao café? Ele sempre fez questão de estar presente.

Antes que eu possa refletir, uma voz familiar ecoa na porta:

— Você também não apareceu, Kate. Mamãe ficou preocupada.

Congelo.

Michael.

Meu irmão.

Lá está ele, apoiado à soleira da porta, ainda jovem, com o mesmo semblante travesso de quando éramos crianças. Faz quase um ano, no futuro, que não via seu rosto antes de sua morte no campo de batalha. Agora, diante de mim, está vivo. Vivo.

Quase choro.

— Não me senti bem hoje — tento disfarçar. — E você? Não deveria estar na aula de esgrima?

Ele suspira, entra no quarto e se senta à beira da minha cama.

— Odeio admitir, mas estava preocupado com você. E… fugir das obrigações de herdeiro de vez em quando não faz mal.

Ele dá um meio sorriso, que me faz lembrar imediatamente do destino cruel que o aguarda.

Mas então, sem saber, ele me ofereceu a chave.

— E esse papo de “comandante do exército”? — resmungou, cruzando os braços.

Meu coração dispara. Claro. Comandante. Essa é a solução.

Levanto num ímpeto.

— Michael… onde está o papai?

Ele me olha, intrigado.

— No escritório. Por quê?

— Você acabou de me dar a resposta que eu precisava. — Dou um beijo rápido em sua bochecha e saio correndo pelos corredores, o coração martelando no peito.

Respiro fundo diante da porta do escritório. Bato suavemente.

— Papai… sou eu, Kate. Posso entrar?

— Entre — responde sua voz grave.

Abro a porta e o vejo.

Roberto Axen. Meu pai.

Ele está exatamente como nas lembranças que guardei com tanto carinho: o longo cabelo branco, o coque bem preso, os óculos constantemente ajustados no rosto. Rodeado de pilhas de papéis, com o ar sempre sobrecarregado de quem carrega não apenas um ducado, mas o peso de toda a família.

Meus olhos ardem. Estou diante dele novamente. Meu pai, vivo.

— Soube que não foi ao café da manhã — diz, erguendo os olhos vermelhos que sempre me hipnotizaram. Diferente dos oceanos pacíficos de Julie, os olhos dele são chamas. Chamas que aquecem, mas também queimam.

Engulo em seco.

— O senhor também não foi. Trabalho demais?

Ele arqueia uma sobrancelha.

— Ser duque exige muito. Mas diga, Kate, o que a traz aqui? Nunca vem ao meu escritório por vontade própria.

Talvez, afinal, eu realmente tenha dado motivos para ser chamada de mimada.

— Tenho… um pedido egoísta. — Tento manter a voz firme, mesmo com meus dedos tremendo.

Ele deixa a pena de lado, retira os óculos e me encara com intensidade.

— Pedido egoísta? É sobre o vestido do Festival? Está sem dinheiro?

— Não é isso! — a ansiedade me faz mover os dedos nervosamente, mas forço-me a parar.

— Então diga logo, filha.

Encho os pulmões de ar, reúno coragem e encarei aquelas chamas rubras sem desviar.

— Eu, Kate Elise Axen, quero me tornar comandante do exército ducal.

Silêncio.

Meu pai não hesita.

— Não.

A resposta é seca, firme, como uma muralha.

Mas eu não posso recuar.

— Estou falando sério.

— E eu também não estou brincando — responde, tomando um gole de chá. — Por que colocaria minha preciosa filha no campo de batalha? Você é inteligente, perspicaz, mas… não nasceu para isso.

Exatamente o contrário. Esse é o meu propósito agora.

— Então me teste — proponho, sentindo a adrenalina percorrer minhas veias.

Ele ergue uma sobrancelha.

— Um teste?

— Sim. Chame o capitão Harry Forms. Peça que me treine. Depois, organize um duelo entre mim e Michael. Se eu vencer, torno-me comandante. Se perder, nunca mais toco nesse assunto.

Por um instante, o silêncio retorna. Ele me observa como se tentasse ler minha alma. E, no fundo, sei que percebe minha mentira quando respondo à sua próxima pergunta com evasivas.

— Você sabe demais sobre o capitão Harry… como?

— Se almejo algo, devo conhecer o caminho — respondo com convicção.

Um sorriso surge em seus lábios. Ele conhece a filha que tem.

— Está bem. Encontre Harry antes de sair para comprar seu vestido. Ele decidirá se vale a pena investir em sua teimosia.

Meu coração quase explode. O primeiro passo foi dado.

Mas junto à euforia, vem o peso da lembrança: Harry Forms… no futuro, ele tentou me proteger quando tudo ruiu. Ele foi um dos últimos a permanecer ao lado de Julie e de mim. Não sei sequer se sobreviveu.

A guerra ainda não começou. Minha mãe ainda vive, embora a doença que a consome nunca possa ser vencida. Michael ainda sorri, ignorando o destino que o aguarda.

E meu pai… meu pai ainda está aqui.

Dessa vez, juro a mim mesma: não vou deixar nada destruir minha família.

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