A casa acordou antes do sol.
Nin atravessou o jardim ainda úmido de orvalho, descalça sobre as pedras lisas. O vestido de algodão branco batia nos joelhos a cada passo. O ar trazia o cheiro doce das flores de jasmim e o som dos guardas trocando os turnos, botas em sincronia e rádios sussurrando códigos. Ela parou junto à escultura de um peixe de bronze e fechou os olhos por um segundo, como se pudesse, assim, pausar o mundo.
— Nin.
A voz veio das sombras do corredor externo. Jay estava encostado no pilar, camisa preta dobrada nos antebraços, o braço tatuado em arabescos de dragões sob a luz pálida da manhã. O olhar varreu o jardim antes de pousar nela — não como um homem que admira, mas como um general que mede distâncias.
— Senhor Volkov — disse Nin, controlada. — Acorda cedo.
— Quem dorme, perde terreno — respondeu Jay, neutro. — E hoje, terreno é tudo o que você tem.
— Engano seu. — Nin ergueu o queixo. — O que eu tenho é tempo. O terreno nunca foi meu.
Jay deu dois passos, mantendo distância respeitosa.
— Tempo é a única moeda que os nossos inimigos não costumam conceder.
— “Nossos”? — Nin arqueou uma sobrancelha. — Ainda soa estranho me ouvir incluída no plural russo.
— O plural é uma armadura. — Jay apontou, com um gesto mínimo, para a ala dos fundos. — Hoje à tarde você vai ao templo deixado por sua mãe. É o que está na sua agenda, certo?
Nin mediu as palavras.
— Certo. Como soube?
— Eu leio casas. — Jay inclinou a cabeça para uma mesa baixa onde repousava um arranjo de flores frescas, incensos e um porta-fotos vazio. — E leio silêncios. Seu mordomo abriu o altar na noite passada. Ele não faz isso sem motivo. Metade das pessoas anuncia seus segredos com o zelo de quem esconde.
Nin inspirou devagar.
— E o que você pretende com essa leitura? Proibir minha saída?
— Pretendo que você volte viva. — Jay não mudou o tom. — Mude o trajeto. Troque de carro. Três motos na retaguarda. Eu vou atrás, fora de vista.
— O senhor manda nos outros, não em mim. — Nin manteve a voz calma. — E a última pessoa que me disse como devo andar terminou… distante.
— Eu não digo como você anda. — Jay sustentou o olhar. — Eu digo como as balas voam. E elas têm o péssimo hábito de encontrar caminhos óbvios.
A porta de madeira se abriu no andar de cima, e Win surgiu na varanda, de camiseta e calça de treino, o cabelo ainda úmido, o dragão desenhado nas costas marcando o tecido como fogo por baixo da pele. Ele apoiou as mãos no corrimão, os olhos negros cravando na cena lá embaixo.
— Jay — chamou Win, sem esforço de cordialidade. — Saia do meu jardim.
Jay não se virou.
— Seu jardim tem pontos cegos. Estou nomeando cada um.
Win desceu os degraus devagar, cada passo uma ameaça contida. Ton apareceu logo atrás, discreto, atento, um cão de guarda com planos próprios.
— Você não nomeia nada aqui — disse Win, parando a poucos metros de Jay. — Eu dou os nomes. Eu dou as ordens.
— Então ordene que a sua irmã não morra por previsibilidade. — Jay finalmente se virou e encarou Win. — O trajeto dela para o templo é um convite.
Nin cortou o ar com a mão.
— Eu estou ouvindo. Se for para falar de mim, falem comigo.
Win respirou fundo e assentiu para ela, sem tirar os olhos de Jay.
— Vamos para a sala de reuniões. — Win indicou o caminho. — E trate de levar seus mapas, Volkov. Quero ver essas “leituras”.
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A mesa de reuniões recebia luz diagonal por duas janelas altas. Mapas da cidade se espalhavam sobre a madeira: rotas, horários, pontos de parada, nomes de ruas. Oleg, ao lado de Jay, rabiscava com caneta e imãs. Ton, junto de Win, examinava cada marcação como quem busca um erro para cravar.
— — O trajeto atual — disse Jay, batendo com o indicador numa linha vermelha — passa por três cruzamentos previsíveis e uma ponte única. Se eu fosse você, esperaria na segunda curva, onde o muro alto cria sombra. Uma moto encosta, atira e some. Dois segundos de operação. Sem drama, sem vídeo para internet.
— — Isso é Bangkok, não Moscou — rosnou Ton. — Ninguém encosta numa comitiva nossa com facilidade.
— — Facilidade é questão de estudo — rebateu Jay, sem olhar para Ton. — E criminosos estudam melhor do que políticos.
Win manteve o olhar em Nin.
— — Você aceita mudar o trajeto?
Nin cruzou as mãos sobre a mesa.
— — Aceito, com uma condição: quero escolher a parada intermediária. No caminho do templo há um mercado antigo onde as crianças ensaiam dança. Eu vou parar ali e levar flores.
Win tensionou o maxilar.
— — Multidão.
Jay respondeu sem hesitar:
— — Multidão é duas coisas: caos e disfarce. Eu levo atiradores no alto do prédio da esquina e fecho três ruas com carros descaracterizados. — Ele se virou para Win. — A decisão final é sua. Mas eu não brinco com hipótese.
— — Você não “leva” nada — interrompeu Win, seco. — Se houver gente no telhado, são meus homens.
— — Seus homens não sabem a minha língua — devolveu Jay, baixo. — Um comando mal entendido custa um corpo.
Ton bateu a caneta na mesa, impaciente.
— — Já chega. Aqui não é curso de russo. E eu não vou aceitar sombra armada dele acima da minha irmã.
Oleg abriu a boca, mas Jay ergueu um dedo e o calou sem olhar. Depois, encarou Win com atenção predatória.
— — Você decide: morte por orgulho ou vida assistida.
Win demorou um segundo a mais do que gostaria. Quando falou, escolheu as palavras como quem escolhe lâminas.
— — Atiradores no telhado, mas são meus. Você envia os códigos e as posições. E qualquer ordem sua passa por mim. — Ele inclinou-se adiante. — Eu não perco o comando da minha casa para agradar a sua obsessão por controle.
— — Combinado — disse Jay. — Controle é a única coisa que nos mantém respirando.
Nin assentiu, leve.
— — Então vamos ao templo depois do almoço.
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O mercado antigo fervilhava no meio da tarde. Vendedores com frutas cortadas em flores, crianças improvisando passos sobre um tablado de madeira, turistas distraídos com celulares. A comitiva de Nin misturava-se como podia ao colorido do lugar: dois carros pretos, discretos, um à frente e outro atrás; no do meio, Nin sentada ao lado de uma Ayi idosa que costumava acompanhá-la desde pequena. Jay seguia em um sedã comum, duas quadras atrás, óculos escuros, rádio no ouvido. Win, contra a própria vontade, mantinha distância, observando dos telhados um jogo que preferia controlar no chão. Ton circulava a pé, camisa simples, um boné, celular no bolso — olhos afiados, boca dura.
— — “Ponto Alfa, posição” — murmurou Jay no rádio, em russo, olhando para o topo da esquina.
A resposta veio no idioma de Win, impecável, como combinado.
— — “Pronto. Dois no telhado, um no beiral.”
— — “Ponto Bravo?”
— — “Pronto.”
Jay desligou por um instante, observando o reflexo nas vitrines. O mundo inteiro era um espelho se você soubesse onde olhar. Ele notou o vendedor de flores que não vendia, as mãos muito limpas para carregar cestos, o olhar que não parava nas crianças. Notou também um homem parado à sombra, segurando uma sacola de mercado sem peso, o ombro direito um pouco mais baixo — postura de quem esconde ferro.
— — “Win” — disse Jay, tocando o ponto no ouvido, o tom seco. — “O homem de camisa listrada, sombra da árvore grande, ombro baixo. Vê?”
A resposta veio rápida, tensa.
— — “Vejo. Não é meu.”
— — “Nem meu.”
O tempo contraiu.
Nin desceu do carro com o arranjo de flores no braço. Sorriu para as crianças no tablado e, por um segundo, o mundo pareceu normal. A Ayi indicou o altar improvisado de madeira, e Nin se ajoelhou, colocando as flores com cuidado. O som dos instrumentos infantis preencheu a tarde.
— — “Não atira” — ordenou Jay no rádio, olhos pregados no homem da sombra. — “Ele não tem ângulo ainda. Vai esperar ela se levantar.”
Win, do alto, viu o mesmo. E viu outra coisa: um brilho mínimo, lá longe, no sexto andar de um prédio de escritórios. Um reflexo de sol que não combinava com janela — combinava com lente.
— — “Telhado Leste, sexto andar, janela três” — rosnou Win no rádio. — “Sniper.”
Jay já estava em movimento. Largou o carro aberto, atravessou a rua por trás de uma fileira de triciclos de comida e cortou o mercado em diagonal, os olhos não perdendo Nin de vista um único segundo.
— — “Cai!” — gritou Jay, em tailandês, sem pensar na língua, só no impacto. — “Nin, cai!”
Nin não questionou. O corpo reagiu antes da mente. Ela se lançou de lado e sentiu o mundo girar. O primeiro disparo cortou o ar um palmo acima do lugar onde sua cabeça teria estado. A Ayi gritou. Crianças correram como pássaros ao tiro. O homem da sombra puxou a sacola e Jay viu o ferro sair, brilho rápido — ele mergulhou, acertando Nin com o ombro e a levando ao chão, cobrindo-a com o próprio corpo.
— — “Leste neutralizado!” — alguém berrou no rádio, um estampido devolvendo resposta ao estampido.
Ton apareceu do nada, como se tivesse saído do concreto, e imobilizou o homem da sacola com uma chave de braço que estalou, o ferro caindo e batendo no chão. Oleg interceptou outro movimento anos-luz à direita, arrastando um adolescente que filmava perto demais — não era um assassino, era só internet; mas internet também mata.
Jay manteve o corpo sobre Nin por um segundo a mais que o necessário, sentindo o coração dela galopar contra suas costelas. Depois, levantou-se num salto e a ergueu pelo cotovelo, os olhos varrendo ângulos, reflexos, sombras.
— — “Mais?” — perguntou no rádio, curto.
— — “Limpo” — respondeu a voz dos telhados. — “Por enquanto.”
Win desceu as escadas do prédio vizinho como se cada degrau pudesse se partir sob seus pés, atravessando o mercado em linha reta, empurrando gente, derrubando coisas, até parar diante de Nin e de Jay.
— — “Você a tocou” — disse Win para Jay, a respiração quente, a ira segurando a pele por dentro.
— — “Eu a cobri” — respondeu Jay, o olhar cinza aceso. — “É diferente.”
— — “Tire as mãos dela.”
As mãos de Jay não estavam mais sobre Nin, mas o comando não era sobre pele. Era sobre território. Nin sentiu.
— — “Win, eu estou bem” — disse Nin, firme. — “Ele me tirou da linha.”
Win a inspecionou de alto a baixo com as mãos leves, como quem confere um cristal após um tranco.
— — “Você está bem?”
— — “Sim.” — Ela olhou para Jay. — “Obrigada.”
— — “De nada.” — Jay inclinou quase imperceptivelmente a cabeça. Depois virou-se para os telhados: — “Levanta o perímetro. Sem heroísmo. Tirem esse atirador de cima e limpem os acessos.”
Ton, com o joelho nas costas do homem da sacola, falou sem virar o rosto:
— — “Você não dá ordens aqui, Volkov.”
— — “Acabei de impedir que sua casa perdesse o coração” — retrucou Jay, finalmente mirando Ton com um gelo que doía. — “Então eu dou ordens ao tempo que o tempo precisar para ela continuar batendo.”
Win deu um passo para frente, encostando quase o peito no de Jay, a proximidade elétrica, perigosa.
— — “Um passo a mais, e eu esqueço que a imprensa está a duas esquinas” — rosnou Win.
— — “Um passo a mais, e eu esqueço que a sua irmã pediu paz” — devolveu Jay, baixo, que só Win ouviu.
Nin entrou entre os dois, palmas espalmadas no ar, separando como quem acalma dois cães que as ruas ensinaram a matar.
— — “Chega” — disse Nin, e a palavra dela tinha peso. — “Eu quero voltar para casa. Agora.”
Win levou um segundo para soltar o fio que o puxava à briga. Depois tocou o ombro da irmã, suave.
— — “Vamos.”
Jay deu ordens curtas pelos rádios, os homens recolhendo como sombra bem treinada. O mercado voltou a respirar aos poucos, como um corpo que sobrevive a um afogamento.
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De volta à mansão, as portas fecharam com estrondo. Win conduziu Nin até a sala de chá e só então relaxou os ombros, o olhar ainda em chamas.
— — “Tragam água, gelo, e limpem qualquer arranhão” — ordenou Win a uma funcionária.
Nin tocou o próprio braço; havia um hematoma crescendo onde o chão a abraçou de mau jeito.
— — “Estou inteira.”
Jay entrou dois passos depois, Oleg ao lado, e parou à distância, respeito milimétrico, a tatuagem viva sob a luz.
— — “Perímetro levantado. — informou. — O atirador no sexto andar não tinha documentação. Profissional de aluguel. O homem da sacola é local. Tem cheiro de gente de fora pagando gente daqui.”
Ton cruzou os braços.
— — “Você tem cheiro de conveniente.”
Jay não deu a Ton o presente de um olhar.
— — “Há um terceiro elemento. — continuou. — Alguém tirou fotos na saída da garagem e mandou para o homem do telhado. Recebi uma mensagem anônima no meu celular com o mesmo enquadramento. — Ele tirou o aparelho do bolso, colocou sobre a mesa e mostrou a Win. — Essa foto foi tirada do corredor interno, seis minutos antes de você autorizar a partida.”
Win olhou a imagem: Nin de perfil, arrumando o cabelo diante do espelho do corredor, a moldura de madeira reconhecível, o jarro azul no aparador. O carimbo de hora brilhava como um insulto. O sangue subiu-lhe à cabeça e desceu em gelado.
— — “Traidor dentro de casa” — sussurrou Win, mais para si do que para os outros.
Ton deu um meio passo à frente.
— — “Qualquer um com acesso ao corredor poderia…”
— — “Qualquer um com acesso e com vontade de transformar meu sobrenome em notícia” — cortou Win, o olhar perfurando paredes invisíveis. Depois virou-se para Jay. — “O que você quer?”
Jay respondeu sem brandura:
— — “Quero a Nin no quarto da ala central, com duas portas e uma saída de serviço que dá para o pátio interno. Meus homens na porta externa. Seus homens na porta interna. Todos os deslocamentos noturnos comunicados com quinze minutos de antecedência. E quero revisar seu pessoal de limpeza e cozinha. Hoje.”
— — “Você não mexe nos meus” — reagiu Win, instintivo, como quem protege um coração com os punhos.
— — “Alguém entre os ‘seus’ tirou essa foto” — devolveu Jay, batendo de leve no celular. — “E mandou para alguém do lado de fora em seis minutos. Alguém com crachá. Alguém que bebe chá no mesmo corredor em que sua irmã passa.”
Ton apertou os dentes até os músculos mastigarem o próprio rancor.
— — “Você está se ouvindo, Volkov? Você entra na minha casa, aponta para meu povo e…”
— — “E mantenho sua irmã respirando” — Jay cortou, sem elevar a voz. — “Se você prefere morrer por fidelidade errada, diga agora. Eu economizo tempo.”
O silêncio ficou denso. A funcionária trouxe água, gelo, curativo. Nin agradeceu com um aceno, mas não tirou os olhos dos dois homens — dois leões num ringue pequeno demais para dois.
— — “Win” — disse Nin, suave e firme ao mesmo tempo. — “Eu quero o quarto da ala central. As duas portas. Os dois grupos de homens. E a revisão da casa. Hoje.”
Win se virou para ela, e por um instante os olhos deixaram de ser lâmina para serem medo.
— — “Você confia nele?”
Nin respirou antes de responder.
— — “Eu confio no que ele fez hoje. E confio no que você fará se eu pedir. Peço isso.”
Win fechou os olhos por um segundo, o dragão nas costas queimando pela lembrança do tiro. Quando abriu, assentiu, mas a palavra saiu em ferro.
— — “Está bem.”
Jay soltou um ar que não era alívio; era prontidão.
— — “Começamos agora.”
— — “Eu acompanho a revisão” — disse Ton, áspero. — “Pessoalmente.”
Jay finalmente olhou para Ton como quem mede um problema com régua.
— — “Ótimo. Prefiro inimigos na luz.”
Ton sorriu sem humor.
— — “A luz me favorece.”
— — “Veremos.”
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A inspeção começou pelos corredores internos. Oleg checava câmeras, cruzando os carimbos de hora com o trajeto de Nin. Dois seguranças de Win, escolhidos pelo próprio Win, abriam depósitos, armários, checavam trancas. Ton caminhava sempre um passo à frente, como quem desafia. Jay seguia os fios invisíveis — o cheiro de limpeza forte demais num canto, a câmera que “casualmente” mudou o ângulo ontem, o carregador de celular esquecido numa tomada estratégica.
— — “Aqui” — disse Oleg, parando diante de um quadro decorativo. — “A câmera três, corredor central. O histórico mostra micro travamentos às 14:02, 14:03 e 14:04. A foto foi tirada às 14:05.”
— — “Corte programado” — avaliou Jay. — “Profissional ou alguém que recebeu instruções.”
Ton abriu o painel de energia da ala com uma chave.
— — “O técnico de ontem veio trocar um disjuntor. Serviço autorizado.”
Jay estendeu a mão.
— — “Ordem de serviço.”
Ton hesitou um meio segundo, e esse meio segundo virou um monólito. Depois entregou uma folha plastificada.
— — “Aqui.”
Jay leu silenciosamente.
— — “Telefone do contato. — apontou. — Vamos ligar.”
— — “Já liguei” — disse Ton, seco. — “Número fora de serviço.”
Oleg puxou o celular e fotografou o documento, enviando para uma equipe do lado de fora.
— — “Vamos cruzar com registros da companhia” — avisou Oleg.
Win apareceu no fim do corredor, silencioso como sombra.
— — “Progresso?”
Jay entregou o fato como um veredito.
— — “Alguém ajudou de dentro. Hoje.”
Win assentiu uma vez, devagar, como quem engole vidro.
— — “Tranque a casa. — ordenou Win. — Revezamento em turnos de três. E ninguém, ninguém, toca na minha irmã sem eu saber primeiro.”
Jay não sorriu, mas alguma coisa quase imperceptível mexeu no canto da boca — reconhecimento de um comando que faria ele mesmo.
— — “Concordo.”
Nin, à porta ao lado, observava. Trazia agora uma camiseta larga e um moletom claro, o curativo discreto no braço. Aproximou-se com passos leves.
— — “Eu vou para a ala central” — disse Nin. — “Quero ver o quarto antes do anoitecer.”
— — “Eu levo você” — disse Win.
— — “Eu acompanho, à distância” — disse Jay.
Os dois falaram juntos. Pararam. Se olharam. O ar faiscou.
Nin quase riu — não de humor, mas de exaustão.
— — “Vocês dois vão me matar de cansaço antes de qualquer atirador.”
Win abriu espaço com o braço, gesto quase gentil.
— — “Vamos.”
---
O quarto na ala central parecia um cofre de luxo: duas portas, uma para o corredor principal, outra para uma escada de serviço que descia ao pátio interno; janelas com vidros reforçados; uma varanda pequena demais para ser risco, grande o suficiente para respirar.
— — “Coloquem dois homens aqui fora e um no patamar da escada” — disse Jay, indicando pontos com o dedo. — “Câmeras novas nesse corredor. Troquem as senhas de acesso. Agora.”
— — “Eu autorizo” — confirmou Win, seco.
Nin cruzou até a varanda e olhou o jardim, agora estranho.
— — “Nunca pensei que o lugar onde cresci pareceria uma gaiola.”
Jay ficou um instante ao lado da porta, sem invadir a visão dela.
— — “Gaiolas também protegem, quando o mundo lá fora está pegando fogo.”
— — “É curioso ouvir isso de um incendiário” — disse Nin, sem doçura.
Jay não se ofendeu.
— — “Eu queimo o que precisa queimar. Para o resto ficar de pé.”
Win encostou no batente oposto, braços cruzados, vendo os dois com a raiva antiga que, hoje, vinha acompanhada de outra coisa que ele não admitiria.
— — “Chega por hoje.”
Nin virou-se para os dois, decidida.
— — “Eu vou dormir aqui. Sozinha. Com gente de vocês dois na porta. Amanhã, eu vou ao templo de novo. Com mais flores. E sem tiros.”
— — “Amanhã, não” — cortou Jay. — “Alguém ainda está contando as câmeras.”
— — “Amanhã, sim” — rebateu Win, olhando para Jay como quem aposta a alma — e talvez outra coisa. — “O mundo precisa ver que nós não recuamos.”
Nin respirou fundo, pesando.
— — “Amanhã, tarde. Caminho diferente. Duas paradas. E eu escolho as flores.”
Jay e Win se olharam. Por um instante, os dois concordaram sem palavras — e essa concordância doeu nos dois.
— — “Fechado” — disse Jay.
— — “Fechado” — repetiu Win.
Oleg apareceu na porta, discreto.
— — “Chefe, tem algo para ver.”
Jay se aproximou. Oleg mostrou a tela do celular: uma foto da maçaneta da porta de Nin, do lado de fora, com um fio vermelho amarrado em laço. O carimbo de hora: cinco minutos antes. Sem rostos. Sem passos. Só o sinal.
Jay ergueu os olhos para Win.
— — “Temos um recado.”
Ton, que vinha pelo corredor, viu o fio pela primeira vez. Parou. O olhar congelou.
Nin deu um passo à frente, encarando o sinal.
— — “O que significa?”
Win respondeu, a voz rouca:
— — “Significa que alguém sabe o que este quarto significa.”
Jay aproximou-se do laço e não tocou. — “E significa que o traidor está perto o suficiente para amarrar nós debaixo do nosso nariz.”
Nin ergueu o queixo, obstinada, o olhar aceso.
— — “Então desfaçam o nó. Todos.”
Win virou-se para Jay, e havia fogo e aço e outra coisa antiga nos olhos.
— — “A partir de agora, Volkov, você e eu dividimos este corredor.”
Jay assentiu, sem ironia.
— — “Corredores estreitos sempre aproximam os inimigos.”
Eles ficaram frente a frente por um segundo a mais do que o seguro. O silêncio deles tinha textura. Tinha cheiro. Tinha futuro.
Do lado de fora, a noite começou a cair, lenta. Em algum lugar, uma mensagem anônima foi enviada: “Noivas não chegam ao altar.” O texto apareceu no celular de Ton primeiro. A mão dele tremeu — não de medo. De decisão.
Dentro do quarto, Nin fechou as mãos, como quem segura o fio invisível que a prende a dois mundos.
E, pela primeira vez, sentiu que talvez fosse ela quem puxaria.
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Atualizado até capítulo 43
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