Capítulo 4

Damian

A noite era o único momento em que eu podia respirar sem o peso dos olhares curiosos. Desde o baile, nada parecia ter silêncio suficiente. Vozes, risos, cumprimentos, falsas intenções mascaradas por palavras doces… tudo aquilo ainda ecoava em meus ouvidos como uma tormenta que não me deixava em paz.

Deixei a mansão da família dela horas antes, mas a sensação não partira comigo. Pelo contrário. Ainda a sentia presa em minhas mãos. Ainda lembrava do calor da pele dela, da delicadeza que parecia contrastar com a rigidez do mundo em que ambos estávamos condenados a viver.

Eveline.

O nome soava em minha mente como um sussurro que não pedi para ouvir, mas que não conseguia silenciar.

Aproximei-me da lareira em meus aposentos, já no solar Blackthorn, e deixei que as chamas lambessem o silêncio. O fogo tinha cheiro de ferro e fumaça — um cheiro que me acompanhava desde a guerra. Nada parecia capaz de apagá-lo, assim como as marcas em minha pele.

Passei a mão pela cicatriz que cruzava meu ombro, lembrança de uma batalha que muitos prefeririam esquecer. Mas eu não esquecia. Jamais. As cicatrizes eram meu lembrete constante de quem eu era e do que me tornei.

Muitos me chamam de monstro, e não os culpo. Um monstro não sente, não hesita, não se permite fraquejar. Foi assim que sobrevivi. Foi assim que conquistei respeito.

Mas quando a tive em meus braços, ainda que apenas em uma dança, percebi algo que nunca imaginei que voltaria a sentir.

Fraqueza.

Porque cada curva do rosto dela parecia feita para provocar meu descontrole. Cada olhar fugidio era um convite que eu não deveria aceitar. E, no entanto, estava aqui, sozinho, pensando em uma jovem que eu deveria apenas considerar mais uma peça no tabuleiro político.

Fechei os punhos.

Eu não podia me dar ao luxo de desejar Eveline. O casamento arranjado era apenas isso: uma aliança conveniente, uma vitória estratégica. Nada mais.

E, ainda assim, recordo-me de cada detalhe da noite.

A rigidez do corpo dela no início da dança. O modo como evitava meus olhos, como se temesse que eu pudesse ver demais. O leve estremecer de seus lábios quando ousei aproximar-me demais. E, sobretudo, aquele olhar final… não era apenas medo. Havia algo mais escondido ali, algo que ela mesma parecia não compreender.

Abaixei-me na poltrona diante do fogo e deixei escapar um suspiro cansado.

Eu deveria estar acostumado a esse jogo. Mulheres que me olhavam com desconfiança, homens que me invejavam, famílias que me temiam. Fazia parte de quem eu era. Mas Eveline não era como as outras.

Ela parecia feita de porcelana e aço ao mesmo tempo. Delicada ao ponto de me fazer querer protegê-la, firme o bastante para não se curvar com facilidade.

E isso me irritava.

Irritava porque não gosto de enigmas que não posso decifrar.

O relógio antigo da sala marcou as horas arrastadas. Madrugada já. Não havia mais criados nos corredores, apenas a companhia das sombras. Eram elas que sempre me acolheram melhor do que qualquer pessoa.

As sombras não julgam.

As sombras não exigem.

As sombras apenas são.

Fechei os olhos, mas em vez da escuridão, encontrei o rosto dela.

E percebi que, talvez, minha maior guerra ainda estivesse para começar.

A chama vacilava na lareira, projetando sombras que se contorciam nas paredes de pedra como soldados caídos em combate. A visão me transportou, contra a minha vontade, de volta ao campo de guerra.

O som do estalar da lenha tornou-se o estrondo dos canhões. O cheiro da fumaça confundiu-se com o de pólvora e sangue. Pisquei, mas o passado já havia me capturado.

Estava outra vez em Ardennes.

A lama sugava minhas botas a cada passo, enquanto gritos se erguiam como um coro infernal ao meu redor. Carregava a espada em punho, pesada, molhada de chuva e de algo mais que não ouso nomear. O frio não era nada comparado ao peso da morte que nos cercava.

Lembro-me de um jovem soldado, não devia ter mais de dezoito anos. Chamava-se Thomas. Tinha olhos claros demais para a guerra, olhos que ainda sonhavam com um futuro que jamais viria. Ele tombou diante de mim, atravessado por uma lança antes que pudesse erguer o escudo.

Tentei erguê-lo, mas a vida já o abandonara.

Naquele instante, algo em mim se partiu para sempre.

Gritei ordens, avancei, derrubei inimigos, mas no fundo sabia: cada golpe que desferia era menos pela vitória e mais pela raiva de não poder salvá-lo. De não poder salvar ninguém.

Quando o silêncio retornou, quando apenas os corvos se reuniam ao redor dos corpos, restou apenas a certeza de que eu havia sobrevivido. Sobreviver, porém, era uma condenação. Porque a cada noite, quando fechava os olhos, via Thomas. Via todos eles.

Abri os olhos abruptamente, retornando ao presente. O fogo ainda ardia, mas a lembrança queimava mais.

Passei as mãos pelo rosto, sentindo a aspereza da barba por fazer. O mundo achava que eu era feito de ferro, impenetrável, mas só eu sabia o quão frágil era a linha que me separava da loucura.

E agora… Eveline surgira como uma nova sombra nesse campo de batalha particular.

Ela não sabe, pensei. Não tem ideia do que carrego. Não imagina o sangue que mancha minhas mãos.

E mesmo assim… mesmo assim ousa olhar para mim como se houvesse algo além do monstro.

Isso era perigoso. Para ela. Para mim. Para todos.

Levantei-me de súbito, incapaz de permanecer sentado. Percorri o aposento em passos largos, como se o movimento pudesse silenciar a mente. Mas cada vez que tentava afastá-la, o rosto dela retornava mais nítido.

A delicadeza da pele, o tremor sutil nos dedos quando me tocou na dança, a firmeza inesperada nos olhos claros.

Eu sabia reconhecer coragem quando a via. E Eveline a possuía, mesmo que ainda não tivesse consciência disso.

Talvez fosse isso que mais me perturbava.

Porque eu havia jurado que não permitiria fraquezas em minha vida.

E, no entanto, agora descobria que minha maior fraqueza tinha nome, rosto e um coração que eu ainda não conseguia decifrar.

Amanhã a veria novamente. O destino assim determinara.

E eu precisava decidir se manteria minhas muralhas erguidas ou se, pela primeira vez em anos, permitiria que alguém visse além delas.

Mas, no fundo, a decisão talvez já tivesse sido tomada sem que eu percebesse.

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