A escuridão parecia ter se entranhado dentro de mim, como se já não fosse apenas ausência de luz, mas uma substância pesada que me revestia por dentro. Eu não sabia mais se estava acordada ou sonhando, se ainda respirava ou se o ar que entrava em meus pulmões era só lembrança do que era viver. As horas — se eram horas — tinham perdido todo o sentido. O tempo tinha deixado de existir para mim.
Minha garganta era um deserto em chamas. Os olhos ardiam, secos, sem lágrimas para aliviar. O corpo, tão frágil, mal respondia aos meus impulsos de bater na porta, implorar, rastejar. Tudo o que restava era o silêncio misturado ao som abafado das minhas próprias súplicas.
Foi nesse limite — entre a vida e o colapso — que aconteceu.
De repente, um ruído metálico se espalhou pelo cômodo. A maçaneta se moveu. Eu quase não acreditei. O som foi seguido por um rangido baixo, e a porta se abriu com uma lentidão cruel, permitindo a entrada de algo que não via há tanto tempo: luz.
Não era apenas claridade. Era um sopro de vida. Um fio dourado atravessando o breu, junto com uma rajada de ar fresco que me atingiu como se fosse uma bênção. O ar puro invadiu meus pulmões, tão saturados daquele fedor pútrido que impregnava o quarto. Por um segundo, senti como se uma parte de minha alma fosse lavada.
Meu coração disparou, não em alívio completo, mas em um turbilhão de emoções contraditórias: esperança, medo, tristeza. Esperança de finalmente ter sido encontrada. Medo do que viria pela frente — e se não eram socorristas, mas algo pior? E tristeza porque, mesmo naquele instante, eu ainda não via Lari. Minha amiga. Onde ela estava? Estaria viva?
Passos ecoaram sobre o piso, firmes, cadenciados, como botas de couro ressoando na madeira ou no cimento. O som aproximava-se. A cada passo, minha mente alternava entre a certeza de que estava salva e o pavor de que, talvez, fosse o fim definitivo.
Tentei erguer a cabeça, mas minhas forças já não respondiam. O mundo oscilava como um barco em mar revolto. O ar fresco ainda enchia meus pulmões, mas era como se fosse tarde demais para meu corpo frágil resistir. Antes mesmo de enxergar o rosto da pessoa que se aproximava, tudo escureceu novamente.
Desmaiei.
Quando recobrei a consciência, a primeira coisa que senti não foi dor. Foi leveza.
Algo frio e constante deslizava dentro de minhas veias. Abri os olhos com esforço, e a visão foi recebida por uma claridade suave, branca, que quase me cegou. Não era mais a escuridão úmida, nem o fedor ácido que impregnava tudo. O cheiro que agora me cercava era de limpeza, álcool hospitalar, aquele aroma antisséptico que sempre me incomodava em visitas médicas, mas que naquele instante soava como perfume celestial.
Virei o rosto devagar. Estava deitada em uma cama hospitalar. Minha pele, que antes parecia coberta de poeira e suor, agora estava limpa, como se alguém tivesse me banhado e retirado cada vestígio do inferno em que eu estivera. Minhas roupas tinham desaparecido, substituídas por um avental branco.
Olhei para meu braço. Uma agulha delicada estava presa à veia, ligada a uma bolsa de nutrição parenteral que gotejava com ritmo metódico. Cada gota parecia devolver lentamente a energia que havia sido sugada de mim. Eu quase chorei.
A sensação era de renascimento. Mas o alívio trouxe consigo uma enxurrada de emoções. Meu peito arfou, e as lágrimas finalmente vieram, quentes, escorrendo sem controle. Eu havia sobrevivido. Alguém me salvara.
Ainda assim, a confusão era imensa.
"Que hospital é esse?" pensei, os olhos fixos na janela. Estava em um andar alto, pois dali podia ver prédios erguidos diante da vidraça. Não era um lugar isolado, perdido em florestas ou ruínas. Era uma cidade. Mas qual cidade? Estaria em Belém, no Pará, para onde meu voo havia partido? Ou teria caído em algum ponto do trajeto até São Paulo?
Fechei os olhos, tentando lembrar da queda do avião. O barulho. Os gritos. A sensação de despencar. A escuridão. Acordar acorrentada. Tudo era um borrão fragmentado, sem ordem clara.
E Lari? Onde estava?
Meu peito se apertou de novo, doloroso.
A porta do quarto abriu-se com um rangido leve.
Entrei em alerta imediatamente, mas o que surgiu não era uma figura ameaçadora. Era um homem. Um enfermeiro, pelo uniforme claro, bem passado, que contrastava com sua pele de um tom quase translúcido, leitoso, que dava a ele uma aura quase etérea.
Não era "bonito" no sentido comum da palavra. Havia algo diferente, algo peculiarmente cativante. Sua estatura era mediana, corpo esguio, movimentos contidos como se cada passo fosse ensaiado. O rosto fino, o maxilar marcado, e os olhos claros — frios como vidro, mas atentos.
Ele entrou em silêncio, apenas checando os aparelhos. Eu me forcei a erguer a voz, ainda rouca:
— Onde… eu estou? — perguntei, cada palavra arranhando minha garganta. — Onde está… minha amiga? A Lari…
O enfermeiro hesitou. Seu olhar encontrou o meu, e percebi que ele também não tinha muitas respostas.
— Você foi trazida… — disse em tom calmo, quase ensaiado. — Foi encontrada em condições críticas, mas agora está estável. Foi o esquadrão A quem a trouxe.
— Esquadrão… A? — repeti, confusa. — Quem… são eles?
— Ué, o esquadrão A é o esquadrão acima do esquadrão B, o que mais seria. Um grupo de homens corajosos que lutam pela segurança de nosso país.
A angústia dentro de mim aumentou com a confusão que aquela resposta gerou.
— Mas… e a Lari? — insisti, a voz falhando. — Vocês encontraram ela também? Ela estava comigo…
— Não sei quem e esse.
Meu coração afundou.
— Entendo… — murmurei, virando o rosto para o lado, com o peso de uma dor que parecia me esmagar.
O quarto ficou em silêncio. Eu percebi, então, que aquele enfermeiro não parecia ocupado. Desde que entrou, não fez mais do que olhar meu soro, verificar a bolsa, e… esperar. Seus olhos, de vez em quando, desviavam-se para a porta, como se antecipasse a chegada de alguém.
A cada segundo, eu me sentia menos paciente e mais… observada.
A palavra "esquadrão A" ecoava em minha mente. Quem eram? Por que militares estariam envolvidos em meu resgate? E por que aquele enfermeiro parecia tão inquieto, como se apenas fosse um guardião temporário até que outra presença surgisse?
Tentei relaxar, mas a ansiedade era uma fera dentro de mim. Eu estava viva, sim, mas… estava salva de verdade?
Ou apenas tinha sido levada para outro tipo de prisão, agora mais sofisticada, com paredes brancas ao invés de escuridão?
Fechei os olhos e inspirei fundo. Mas até o ar limpo do hospital já não era capaz de me trazer paz.
Eu só conseguia pensar em duas coisas:
Onde estava Lari.
O que exatamente significava aquele esquadrão A do país?
Um tempo depois a porta se abriu novamente, mas dessa vez não com o ranger seco que eu já havia aprendido a temer. O som foi suave, acompanhado de um perfume de assepsia misturado a algo masculino e caloroso, como se o ar tivesse mudado de densidade. Meu coração saltou, quase como quando a porta do quarto escuro se abriu e eu achei que fosse morrer — mas agora havia luz, havia vida.
Ele entrou. Um homem de jaleco branco, alto, de postura confiante. Não era apenas um médico… havia algo nele que prendia a atenção, uma aura que misturava autoridade e ternura. Seus olhos se fixaram em mim e por um instante esqueci da dor, da fome, do vazio que me consumia.
— Como está se sentindo? — perguntou, e sua voz grave percorreu meu corpo como um afago.
Eu abri a boca devagar, envergonhada pela minha condição tão frágil. Minha garganta ainda arranhava, mas consegui sussurrar:
— Eu… acho que melhor… pelo menos agora sinto que não vou morrer…
Ele se aproximou, ajustou o suporte da bolsa que pingava gota a gota no meu braço e sorriu de um jeito calmo, quase científico, mas ao mesmo tempo humano.
— Confesso que nunca trabalhei com alguém do seu físico, da sua resistência. Mas fiz o melhor que pude com os recursos que tinha. Por isso preciso saber com sinceridade… está sentindo dores?
Eu balancei a cabeça. E, sem pensar muito, respondi com meu jeito meio inocente, quase infantil, como se minha alma ainda não tivesse acompanhado todo o peso que meu corpo carregava:
— Estou só… com medo. Mas fisicamente… me sinto bem. Talvez… até demais, depois de tudo.
Ele me olhou como se quisesse decifrar minha alma. Eu desviei os olhos, sem saber se corava pela vergonha de estar tão vulnerável ou pela estranha energia que aquele homem despertava em mim.
Respirei fundo e finalmente perguntei, com a voz trêmula:
— E a minha amiga? Onde está Lari? Ela… ela estava comigo no avião… você sabe?
O silêncio do médico foi pesado. Ele não desviou o olhar, mas demorou alguns segundos para responder.
— Não sei — disse por fim. — Mas vou buscar saber. Prometo que vou fazer o possível para ter notícias.
Meu coração se apertou, mas ao mesmo tempo uma onda de alívio percorreu minhas veias. Ele não me deu respostas, mas me deu esperança. E isso, naquele momento, era como água fresca.
— Obrigada… — sussurrei, sentindo meus olhos se encherem de lágrimas.
Reuni coragem e perguntei mais, ainda que a voz embargada denunciasse meu medo:
— O que… o que fizeram comigo? Por que… por que me prenderam naquele lugar?
Ele respirou fundo, como quem escolhe palavras.
— Essas respostas você terá, mas não comigo. Haverá uma sessão com o psicólogo. É necessário, depois de tudo que passou. Seu corpo está bem, mas sua mente precisa de cuidado.
Fechei os olhos por um instante. Parte de mim queria explodir, exigir explicações agora, cuspir todo o desespero que eu ainda carregava. Mas havia outra parte — cansada, débil, esgotada — que sabia que ele tinha razão. O que eu precisava naquele instante era de calma. Deixar que o tempo trouxesse as verdades, e que minha alma tivesse fôlego para suportá-las.
— Está certo… — murmurei. — Eu vou esperar.
Ele assentiu, satisfeito com minha resposta.
Mas não éramos apenas nós dois naquela sala. O enfermeiro — o mesmo de antes — ainda estava ali, encostado discretamente próximo à parede. Eu havia notado antes seu jeito desocupado, mas agora percebia algo mais. Seus olhos não estavam em mim, não estavam na bolsa de soro. Estavam fixos no médico.
Brilhavam.
Era como se cada gesto do doutor fosse observado com adoração silenciosa. E não apenas profissional. A forma como ele se inclinava, como sorria, como ajeitava os óculos sobre o nariz… tudo parecia provocar no enfermeiro um fascínio quase erótico.
Eu não podia deixar de notar como, de vez em quando, ele mordia o lábio inferior, como quem guarda palavras que não se deve dizer em público. Ou quando endireitava o jaleco, exibindo sutilmente o corpo magro, como se quisesse chamar atenção.
O médico parecia perceber — mas não reagia. Continuava focado em mim, ajustando meu soro, perguntando com delicadeza sobre meus sintomas, mantendo uma educação impecável. Como se estivesse acostumado a esse tipo de investida silenciosa e já tivesse desenvolvido uma espécie de couraça contra ela.
No entanto, era impossível ignorar. O enfermeiro não olhava pra mim, olhava pra ele. Não parecia estar numa enfermaria cuidando de uma paciente, mas sim num encontro improvisado, esperando ser notado, desejado.
Por dentro, um calor desconfortável me percorreu. Eu estava frágil demais para lidar com qualquer coisa além da minha própria sobrevivência, mas ainda assim percebia aquele jogo de olhares que não me incluía. Parte de mim se sentia invisível diante disso, parte de mim tinha vergonha por estar ali, sendo quase um obstáculo para a obsessão muda de alguém.
E parte de mim — a mais obscura, a mais instintiva — sentia curiosidade.
Eu observava o médico, sua postura firme, sua gentileza, a maneira como sua presença preenchia o quarto e silenciava meus medos. E pensava em como alguém como ele podia carregar tamanha serenidade mesmo diante do desejo escancarado do outro.
Era como se fosse inalcançável. Intocável.
E talvez fosse exatamente isso que o tornava ainda mais fascinante.
O enfermeiro, por sua vez, parecia cada vez mais inquieto. Suas mãos inquietas brincavam com o relógio de pulso, seus pés batiam discretos contra o piso, seus olhos se demoravam demais nas linhas do rosto e do corpo do médico. E embora o doutor mantivesse a compostura, percebia-se o incômodo. Uma educação tão rígida que escondia uma repulsa velada.
Eu queria rir. Eu queria chorar. Eu queria me levantar da cama e gritar: ei, eu sou a paciente, não a plateia de um flerte fracassado. Mas minhas forças ainda não eram minhas. Então apenas observei, registrando cada detalhe, cada tensão silenciosa.
O médico então se virou para mim, devolvendo-me ao centro da cena. Seu olhar sério, mas doce, pousou em mim como um bálsamo.
— O mais importante agora é você descansar. O seu corpo vai se recuperar. E sobre as respostas que tanto deseja… eu prometo que virão. Aos poucos.
Assenti, rendida. Havia algo no jeito dele que me fazia acreditar, mesmo sem provas, mesmo sem explicações.
Enquanto ele se despedia, o enfermeiro se inclinou levemente, quase como se fosse tocar-lhe o braço, mas o médico recuou de forma elegante, evitando qualquer contato. Sorriu de canto, educado, mas firme em colocar uma barreira invisível entre eles.
E eu percebi.
Percebi que o médico estava acostumado àquela caçada silenciosa. Que carregava o peso de ser desejado de um jeito doentio e sabia sobreviver a isso sem perder a compostura.
E percebi também que, apesar de tudo, havia nele algo que me fazia querer confiar. Talvez até mais do que deveria.
Fechei os olhos, deixando a mente flutuar entre o cansaço e o consolo. A última imagem antes de adormecer foi a dele, de pé junto à porta, me observando com aquela expressão que misturava ciência e compaixão.
E no fundo do peito, uma certeza estranha: aquele médico não seria apenas parte da minha recuperação. Ele seria parte da minha história.
...***...
Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 49
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