Acordei com o som do meu próprio coração. Ele pulsava lento, pesado, como se não tivesse força para bombear o sangue.
A primeira coisa que percebi foi a umidade. A parede atrás das minhas costas parecia suar, e um frio estranho escorria pela pele, me arrepiando até a espinha. O ar era denso, carregado, e havia um cheiro agridoce de mofo misturado a algo mais ácido, quase insuportável.
Demorei a abrir os olhos, não porque estivesse com preguiça, mas porque parecia que minhas pálpebras pesavam toneladas. Quando enfim consegui, tudo o que vi foi escuridão. Uma escuridão tão espessa que parecia sólida, como se pudesse ser tocada com as mãos.
Tentei me mover. Um som metálico ecoou baixo, arrastado. Som de correntes.
Meu pulso estava preso.
Levei alguns segundos para entender. Toquei o chão frio com a outra mão — não havia carpete, nem madeira, apenas cimento áspero. Um arrepio percorreu minha pele quando os nós dos meus dedos roçaram aquela superfície gelada.
“Lari…” pensei de imediato. A lembrança veio como uma punhalada no peito.
Tateei o espaço ao meu redor, os dedos abertos como quem busca uma mão invisível no escuro. Não encontrei nada além de vazio. O coração disparou.
— Lari? — sussurrei. A minha voz saiu arranhada, quase um gemido. Minha garganta queimava como se tivesse engolido cacos de vidro.
Ninguém respondeu.
Foi então que, como um estalo, a memória veio inteira.
O avião.
A turbulência.
Os gritos.
As máscaras caindo.
A queda.
O silêncio.
O breu.
Eu devia estar morta. Esse pensamento se repetiu como um eco dentro da minha mente. Mas… se estivesse morta, por que sentia tanta fome? Por que a sede me corroía como fogo dentro da boca? Por que meu corpo pesava como chumbo, mas ainda obedecia a alguns movimentos?
Algo estava errado. Muito errado.
Engoli em seco, mas não havia saliva. Minha boca estava tão seca que até a língua parecia de papel. Passei a mão livre pelo chão até bater em algo metálico. Toquei. Era uma lata, pequena, mas o odor que saía dela era nauseante, ácido, repugnante. Quase vomitei, mesmo sem ter nada no estômago.
Um balde.
De necessidades.
A ideia me deu nojo. Quem teria me colocado ali?
Arrastei o corpo, mesmo com a fraqueza, até alcançar o que parecia ser uma parede. Deslizei a palma pela superfície fria, tentando entender os limites do espaço. Era pequeno, sufocante, como se fosse um depósito, uma cela improvisada. Minhas mãos tremeram quando encontrei a maçaneta de uma porta. Girei. Nada. Trancada.
O desespero começou a ferver nas minhas veias.
— Ei! — tentei gritar, mas minha voz falhou. Doeu. Minha garganta queimava tanto que não consegui mais que um sussurro rouco. — Por favor… água…
Bati contra a porta com os punhos fracos. O barulho ecoou, mas não houve resposta. Bati de novo, mais forte, até os nós dos meus dedos doerem. No fim, minhas mãos escorregaram para baixo e fiquei de joelhos diante da porta.
— Por favor… — minha voz era um fio. — Eu não fiz nada de errado. Por que… por que estou aqui? Eu sou uma boa pessoa… não mereço…
As lágrimas não saíam. Nem forças para chorar eu tinha. A fraqueza era tanta que minha cabeça encostou na madeira da porta, e eu apenas fiquei ali, implorando como uma criança perdida.
Solidão. Um vazio tão profundo que parecia abrir um buraco dentro de mim. Eu pensava em Lari. Onde ela estava? Estaria em outro quarto, também acorrentada, também suplicando? Ou teria morrido na queda e eu era a única sobrevivente? A ideia de nunca mais ouvir a risada debochada dela me fez tremer ainda mais.
A ansiedade cresceu, engolindo tudo. Minha mente girava em círculos: quanto tempo vou ficar aqui? Quem me trouxe? O que querem comigo? Eu não tinha respostas, apenas perguntas que me sufocavam.
De repente, uma onda de raiva subiu. Não era só medo, não era só desespero. Era revolta.
Uma energia crua, como adrenalina, invadiu meu corpo. Gritei com a força que restava:
— ABRAM ESSA PORRA DE PORTA!
E comecei a socar. Cada batida fazia minhas correntes tilintarem. O som ecoava pela sala, mas ninguém vinha. Continuei até meus braços ficarem pesados como chumbo, até a raiva virar apenas cansaço. No fim, desabei no chão, ofegante, o rosto colado ao cimento frio.
Foi nesse limbo de exaustão que as alucinações começaram.
No escuro, meus olhos começaram a ver imagens que não existiam. Primeiro pequenos brilhos, como flashes de câmeras. Depois, uma luz dourada, intensa. Quando pisquei, não estava mais naquele quarto. Estava em um palco.
Um tapete vermelho sob meus pés.
Fotógrafos gritavam meu nome, câmeras disparavam flashes, e eu segurava um prêmio reluzente em mãos. O troféu de “melhor criadora de conteúdo”. O vestido justo realçava minhas curvas, e meus lábios pintados de vermelho abriam um sorriso. Todos me aplaudiam. Todos me queriam. Eu era adorada, idolatrada, intocável.
Fechei os olhos, embriagada pela cena. Quando abri, estava de novo no escuro. No chão frio. Com sede, fome e medo.
Um soluço seco escapou da minha garganta.
Talvez eu já tivesse morrido. Talvez aquilo fosse o inferno. Um quarto úmido, um balde fedido, correntes e uma sede que jamais seria saciada. Talvez fosse isso que restava para mim: a lembrança de quem eu sonhava ser, contrastando com a realidade cruel de onde eu estava.
A solidão me abraçava como uma amante cruel. Eu não sabia quanto tempo tinha se passado desde que acordei. Horas? Dias? Não havia luz, não havia tempo. Apenas eu, minha respiração fraca, e a certeza de que algo pior estava por vir.
Deitada no chão, tremendo, minhas últimas palavras antes de apagar foram um sussurro:
— Lari… me encontra, por favor…
E então, novamente, a escuridão.
Eu não sei há quanto tempo fiquei desacordada depois de perder a consciência naquele cubículo. Quando abri os olhos outra vez, não havia mais a mesma escuridão sufocante. Eu estava… em outro lugar.
Meus pulmões ardiam como se o ar ali fosse diferente. Ainda úmido, ainda pesado, mas não tão insuportável como antes. O chão sob mim já não era de cimento frio, era áspero, de madeira maltratada. Eu toquei, tentando me certificar de que não estava delirando, e senti lascas que se enfiavam nas pontas dos dedos, afiadas, quase dolorosas, mas reais.
Mas como? Eu não me lembrava de ninguém ter aberto a porta. Não escutei correntes sendo arrastadas, nem passos. Uma parte de mim gritava que talvez eu estivesse sonhando. Outra, mais desesperada, dizia que eu já tinha morrido e isso era apenas o limbo me pregando peças.
Olhei ao redor. Um clarão pálido vinha de algum ponto distante, como se uma janela estivesse coberta por cortinas imundas. Não iluminava muito, apenas o suficiente para mostrar que as paredes agora tinham rachaduras que lembravam veias abertas, e que uma umidade escorria por elas em gotas lentas.
Minha respiração ecoava. O silêncio me deixava com a impressão de que eu era a única alma viva no universo.
— Lari? — Minha voz saiu quase sem som, rouca, quebrada.
O nome da minha amiga se desfez no ar sem resposta. A garganta queimava de sede, e o vazio dentro do meu estômago doía tanto que parecia que minhas costelas estavam se contraindo contra meus próprios órgãos.
Eu me levantei com esforço, apoiando-me na parede. Minhas pernas tremiam, frágeis, como se não fossem minhas. O corpo parecia não acompanhar o peso da mente. Mesmo assim, forcei um passo, depois outro.
Andava em círculos, tentando entender: onde estava? Quem me trouxe aqui? Por que não sentia nenhuma dor física, nenhum corte, nenhum hematoma depois da queda do avião? Era impossível sobreviver sem sequelas. A lógica gritava que algo não se encaixava.
Talvez eu estivesse morta.
Talvez estivesse presa em algum tipo de sonho.
Talvez alguém tivesse me resgatado e decidido brincar com meu medo.
As hipóteses se multiplicavam, mas todas me davam o mesmo arrepio na espinha.
Me aproximei do clarão que vinha da janela. Estiquei a mão, empurrando o pano que cobria o vidro. Mas quando meus dedos tocaram, percebi que não era pano. Era couro… pele? Retirei a mão rapidamente, com repulsa, e um cheiro ácido, rançoso, preencheu minhas narinas. O coração disparou.
Recuo, tropeço em algo duro no chão. Caio de joelhos. Toco para sentir o que era. Uma corrente, grossa, fria, enferrujada. Uma argola no fim dela. Estava solta.
Eu não entendia nada. Primeiro acorrentada em um quarto minúsculo, depois liberta em uma sala úmida, com correntes soltas como se fosse um lembrete do que eu era agora: um objeto, uma coisa para alguém.
Meus pensamentos me esmagavam.
— O que querem de mim? — sussurrei, a voz trêmula.
Ninguém respondeu.
Caminhei até a porta. Diferente da anterior, essa tinha frestas que deixavam passar um pouco de luz de fora. Encostei o ouvido. Silêncio absoluto. Então bati com a palma, fraca. Nada.
Bati outra vez, mais forte, e gritei, mesmo com a garganta queimando:
— SOCORRO! Alguém! Por favor, eu não fiz nada!
A resposta foi apenas o eco da minha própria voz devolvido, torturante.
Senti uma fúria nascer em mim, uma onda quente, adrenalina correndo. Meus punhos se fecharam e comecei a esmurrar a porta. Cada pancada era acompanhada de um soluço, de lágrimas que eu já não tinha mais forças para segurar.
— ME TIREM DAQUI! EU NÃO SOU RUIM! EU SOU UMA BOA PESSOA!
O impacto reverberava nos meus ossos frágeis, até que perdi a força e desabei no chão, exausta. Como antes. Minhas unhas arranharam a madeira até sangrar, mas a dor quase era um alívio — pelo menos me lembrava de que ainda estava viva.
Caí de lado, abraçando o próprio corpo. Tremia. Sentia frio e calor ao mesmo tempo. Minha pele se arrepiava, não só pelo ambiente, mas pelo desespero. O suor deslizava pelas costas, colando meu casaco fino ao corpo, e isso me fazia sentir exposta, vulnerável, como se alguém estivesse me observando dali das sombras.
Meus olhos pesaram. Não sabia se estava dormindo ou apenas desmaiando de fome.
E então, vieram as imagens.
Eu estava naquele palco novamente, num vestido brilhante envolvendo cada curva minha como uma segunda pele. Holofotes me cegavam, mas eu sorria. Na plateia, fotógrafos gritavam meu nome, as câmeras disparavam sem parar. Eu ainda segurava o prêmio de Melhor Criadora de Conteúdo e erguia acima da cabeça.
O coração pulsava de alegria, eu sorriam, feliz. E a cada flash, eu sentia como se estivesse viva de novo, respirando liberdade.
Mas quando olhei melhor para a plateia… não havia rostos. Eram apenas sombras, silhuetas imóveis, sem olhos, sem boca. Fotografavam-me mesmo assim, sem câmeras, apenas estalos secos ecoando no vazio.
Gelei.
O sonho desmoronou, e abri os olhos de volta ao quarto. Sozinha. Tremendo.
Engoli em seco. O gosto metálico de sangue da minha própria boca rachada me fez perceber: aquilo não era um sonho qualquer. Era minha mente tentando me salvar, criando ilusões para não enlouquecer.
Mas e se eu já tivesse enlouquecido?
Deitei de barriga para cima, olhando para o teto mofado. Cada mancha parecia ganhar forma. Algumas lembravam olhos, outras bocas abertas. Eu piscava e elas se moviam, sorrindo de forma grotesca.
— Estou morta… — pensei. — Isso é o meu inferno.
Meu peito subia e descia rápido, uma ansiedade que me engolia. O medo constante do que viria a seguir me esmagava mais do que a fome, mais do que a sede. Era o desconhecido que me destruía.
E nesse silêncio sufocante, nesse espaço sem tempo, uma coisa ficou clara: eu já não era a mesma Samile que embarcara no avião empolgada para um prêmio. Aquela garota se perdeu no céu cinzento, quando as turbinas gritaram e o mundo desabou.
O que restava de mim agora era apenas uma sombra de carne, esperando para descobrir se ainda tinha futuro… ou se estava condenada a apodrecer ali, sozinha.
...***...
Se está gostando não deixe de curtir pra mim saber e me segue no coraçãozinho, bjs.
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Atualizado até capítulo 49
Comments
Sonia
Muita narração, vira é enrolação. Fui
2025-09-18
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