Um Lugar para Chamar de Casa

Um Lugar para Chamar de Casa

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Quando arrumei minhas malas, eu me sentia vazia. Era uma decisão minha passar tanto tempo fora, mas a aceitação imediata dos meus pais me fez questionar se eles estavam desesperados para não me ter por perto.

                Eu não tinha me sentido exatamente com opções, e não sei se eles tinham plena consciência disso. As coisas tinham caminhado para que eu sentisse vontade de me afastar muito, tanto quanto possível da cidade e de todas as pessoas que eu conhecia a minha vida toda.

                Eu também estava com a sensação de que tinha jogado fora anos de planejamento e cuidados com o meu futuro, mas, quanto a isso, não havia muito que eu pudesse fazer. Ficar seria aguentar coisas que eu não estava disposta a lidar.

                A garota perfeita, com notas perfeitas, histórico impecável e com um futuro precioso ao lado do rapaz mais cobiçado da cidade tinha virado a garota problemática, confusa, que fugia e mentia para os pais.

                Balancei a cabeça, afugentando esses pensamentos, e fechei o zíper da mala com determinação. De nada adiantava me colocar ainda mais para baixo do que eu já estava me sentindo.

                - Tem certeza de que quer fazer isso? – minha mãe passou pela porta do quarto.

                - Tenho. – respondi sem erguer os olhos.

                Ultimamente ela andava tendo dificuldades para olhar nos meus olhos e isso doía, então eu não queria ver se, mesmo diante de um afastamento tão grande, ainda era difícil olhar para mim.

                - Está pronta, Zoe? – a voz do meu pai, fria e seca, atravessou a porta do quarto. Não olhei para ver se ele havia hesitado na porta ou se só havia passado.

                Apenas peguei a mala e saí do quarto, com minha mãe em meus calcanhares, tentando não pensar muito na casa ao meu redor, onde eu havia crescido e sido feliz. Estava disposta, naquele momento, a imaginar que não era para sempre. Um dia eu voltaria.

                Entramos no carro em silêncio. Talvez houvessem coisas a serem ditas e outras tantas a serem explicadas, mas um muro havia sido criado entre nós.

                O dia estava frio, mostrando que o inverno tinha mesmo chegado, e o céu carregado escondia o sol. Parecia um bom dia para ir embora, o dia certo. Eu não gostaria de ir embora quando o sol estivesse forte, quando as minhas amigas estivessem correndo para as piscinas e sorveterias. Um dia que pedia para se esconder sob cobertores tomando um chá quente parecia o melhor.

                A estação também estava vazia, com uns poucos passageiros aguardando o trem e funcionários circulando. Meu pai parou o carro na vaga mais próxima e descemos juntos, ainda sem ter dito nenhuma palavra.

                Minha passagem estava comprada há dois dias e eu a segurava com força, a ponto da minha mão suar mesmo com a baixa temperatura. Eu precisava de algo a que me agarrar, e na falta de uma mão compreensiva, a passagem foi tudo que me ocorreu.

                Não chegamos a nos sentar, nem mesmo chegamos a nos olhar. Parecíamos três estranhos olhando em direções diferentes e balançando os corpos para manter a temperatura. Eu poderia até acreditar que as pessoas pensariam isso, se não fossemos pessoas conhecidas naquela cidade pequena.

                O trem chegou e finalmente ergui os olhos para os dois. Não entendi muito bem aquele olhar, talvez eles tivessem sentimentos muito confusos dentro de si mesmos, mas um nó se formou na minha garganta.

                - Vá com cuidado. – minha mãe quebrou o silêncio – E avise quando chegar.

                - Aviso. – concordei, balançando a cabeça em sinal positivo.

                Olhamos para meu pai, nós duas, esperando a última palavra dele como havíamos feito a vida toda.

                - Faça boa viagem. – ele disse com os lábios tensos.

                - Obrigada. – respondi automaticamente.

                Virei e andei em direção ao trem, controlando as lágrimas, sentindo as palavras que não trocamos ardendo dentro de mim. Naquele momento eu não tinha certeza se haveria outra chance, se haveria algum momento no futuro em que nos sentaríamos e falaríamos sobre tudo. A incerteza machucava demais.

                Me acomodei no meu lugar pouco depois. Haviam poucos passageiros ao meu redor, a maioria cochilando. Fiquei aliviada com a possibilidade de ninguém sentar ao meu lado. Apesar de estar sofrendo com palavras presas, não queria nenhum tipo de conversa com um estranho qualquer.

                Como eu não tinha dormido muito bem com a perspectiva da viagem – a primeira que eu fazia sozinha -, acabei adormecendo nos primeiros minutos e, quando abri os olhos, me deparei com uma paisagem completamente diferente. Minha cabeça tinha se inclinado em direção ao vidro da janela, e a primeira coisa que vi foi o trem fazendo uma curva adiante, cercado por árvores.

                - Nunca vi alguém dormir tão graciosamente em um trem. – a voz me sobressaltou.

                Me endireitei no banco, vendo pela primeira vez a pessoa que tinha se sentado de frente para mim em um momento indefinido. Não gostei da ideia de alguém me vendo vulnerável, principalmente declarando que tinha me observado tão abertamente. A maioria ignoraria meu sono por educação.

                - Meu nome é Ravi. – ele se inclinou para me oferecer a mão.

                - Zoe. – apertei sua mão sem muita vontade.

                Ele voltou a se inclinar no banco. Tinha olhos escuros muito marcantes, cílios alongados e sobrancelhas espessas. A boca, de lábios grossos e bem desenhados, mantinha um sorriso bem humorado.

                - Com licença. – falei antes de me levantar.

                Eu não estava exatamente com fome, mas fui até o restaurante apenas para não ficar olhando para Ravi. Tive a impressão de que ele era capaz de manter uma conversa até o fim da viagem.

                A comida era boa e meu apetite apareceu mais do que eu esperava. Me sentei nos fundos, de costas para a porta, então não vi quando Ravi apareceu, somente quando ele escolheu se sentar justamente comigo.

                - Certo, eu queria apenas ser educado. – o prato dele estava lotado – Mas, aparentemente, meu jeito sutil e leve de ser não deu muito certo. – ele suspirou – Eu estou aqui para acompanhar você.

                - O quê? – meu garfo caiu da minha mão, produzindo um som terrivelmente alto através do silêncio. Vi algumas cabeças se virando em nossa direção, a maioria com um ar reprovador.

                - Eu viajei até aqui para encontrar você e acompanhá-la por toda a viagem. – ele esclareceu, começando a comer.

                - Você veio me encontrar? Deve ter viajado a noite toda. – eu ainda estava chocada com a informação, principalmente porque ninguém havia me falado nada sobre aquilo.

                - Peguei o trem da meia noite. – ele respondeu de boca cheia – Por isso demorei um pouco para ver que você tinha entrado no trem. Estava cochilando. Erro meu. – ele colocou uma mão no peito.

                - Meus pais não me falaram nada sobre isso. – sussurrei, mais para mim do que para Ravi, mas ele estava prestando atenção.

                - Porque eles não sabem. – ele explicou, ainda comendo – Parece que sua avó não achou que eles aprovariam um rapaz vindo te acompanhar.

                Eu me encolhi um pouco, mas Ravi não parecia saber exatamente o motivo disso e nem parecia querer saber.

                - Mas sou confiável. – ele interpretou meu silêncio de outra forma – Cora jamais mandaria alguém para acompanhar a neta que não fosse cem por cento de confiança.

                - Imagino que sim. – concordei.

                Eu não conhecia minha avó muito bem. Tinha uma vaga lembrança de uma mulher com longos cabelos loiros, sorriso marcante e um cheiro doce. Era a mãe da minha mãe, e as duas nunca tinham sido muito próximas - eu acho, porque minha mãe também nunca me contou muita coisa sobre seu passado.

                - Pode ter certeza. Cora Ferreira Dias jamais colocaria a neta, ou qualquer outra pessoa, em perigo. – ele declarou com lealdade.

                - Ferreira Dias? – repeti.

                - Não tem esses sobrenomes? – ele arqueou as sobrancelhas.

                - Não, sou Zoe Bellini. – dei de ombros.

                - Garota de sorte. – ele inclinou a cabeça para me observar.

                Não pude deixar de sorrir antes de voltar a comer. Talvez Ravi não fosse tão irritante como eu tinha pensado no começo.

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Comments

lua 🌙

lua 🌙

amei o primeiro capítulo

2025-08-21

1

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