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Um Lugar para Chamar de Casa

Partir

Quando arrumei minhas malas, eu me sentia vazia. Era uma decisão minha passar tanto tempo fora, mas a aceitação imediata dos meus pais me fez questionar se eles estavam desesperados para não me ter por perto.

                Eu não tinha me sentido exatamente com opções, e não sei se eles tinham plena consciência disso. As coisas tinham caminhado para que eu sentisse vontade de me afastar muito, tanto quanto possível da cidade e de todas as pessoas que eu conhecia a minha vida toda.

                Eu também estava com a sensação de que tinha jogado fora anos de planejamento e cuidados com o meu futuro, mas, quanto a isso, não havia muito que eu pudesse fazer. Ficar seria aguentar coisas que eu não estava disposta a lidar.

                A garota perfeita, com notas perfeitas, histórico impecável e com um futuro precioso ao lado do rapaz mais cobiçado da cidade tinha virado a garota problemática, confusa, que fugia e mentia para os pais.

                Balancei a cabeça, afugentando esses pensamentos, e fechei o zíper da mala com determinação. De nada adiantava me colocar ainda mais para baixo do que eu já estava me sentindo.

                - Tem certeza de que quer fazer isso? – minha mãe passou pela porta do quarto.

                - Tenho. – respondi sem erguer os olhos.

                Ultimamente ela andava tendo dificuldades para olhar nos meus olhos e isso doía, então eu não queria ver se, mesmo diante de um afastamento tão grande, ainda era difícil olhar para mim.

                - Está pronta, Zoe? – a voz do meu pai, fria e seca, atravessou a porta do quarto. Não olhei para ver se ele havia hesitado na porta ou se só havia passado.

                Apenas peguei a mala e saí do quarto, com minha mãe em meus calcanhares, tentando não pensar muito na casa ao meu redor, onde eu havia crescido e sido feliz. Estava disposta, naquele momento, a imaginar que não era para sempre. Um dia eu voltaria.

                Entramos no carro em silêncio. Talvez houvessem coisas a serem ditas e outras tantas a serem explicadas, mas um muro havia sido criado entre nós.

                O dia estava frio, mostrando que o inverno tinha mesmo chegado, e o céu carregado escondia o sol. Parecia um bom dia para ir embora, o dia certo. Eu não gostaria de ir embora quando o sol estivesse forte, quando as minhas amigas estivessem correndo para as piscinas e sorveterias. Um dia que pedia para se esconder sob cobertores tomando um chá quente parecia o melhor.

                A estação também estava vazia, com uns poucos passageiros aguardando o trem e funcionários circulando. Meu pai parou o carro na vaga mais próxima e descemos juntos, ainda sem ter dito nenhuma palavra.

                Minha passagem estava comprada há dois dias e eu a segurava com força, a ponto da minha mão suar mesmo com a baixa temperatura. Eu precisava de algo a que me agarrar, e na falta de uma mão compreensiva, a passagem foi tudo que me ocorreu.

                Não chegamos a nos sentar, nem mesmo chegamos a nos olhar. Parecíamos três estranhos olhando em direções diferentes e balançando os corpos para manter a temperatura. Eu poderia até acreditar que as pessoas pensariam isso, se não fossemos pessoas conhecidas naquela cidade pequena.

                O trem chegou e finalmente ergui os olhos para os dois. Não entendi muito bem aquele olhar, talvez eles tivessem sentimentos muito confusos dentro de si mesmos, mas um nó se formou na minha garganta.

                - Vá com cuidado. – minha mãe quebrou o silêncio – E avise quando chegar.

                - Aviso. – concordei, balançando a cabeça em sinal positivo.

                Olhamos para meu pai, nós duas, esperando a última palavra dele como havíamos feito a vida toda.

                - Faça boa viagem. – ele disse com os lábios tensos.

                - Obrigada. – respondi automaticamente.

                Virei e andei em direção ao trem, controlando as lágrimas, sentindo as palavras que não trocamos ardendo dentro de mim. Naquele momento eu não tinha certeza se haveria outra chance, se haveria algum momento no futuro em que nos sentaríamos e falaríamos sobre tudo. A incerteza machucava demais.

                Me acomodei no meu lugar pouco depois. Haviam poucos passageiros ao meu redor, a maioria cochilando. Fiquei aliviada com a possibilidade de ninguém sentar ao meu lado. Apesar de estar sofrendo com palavras presas, não queria nenhum tipo de conversa com um estranho qualquer.

                Como eu não tinha dormido muito bem com a perspectiva da viagem – a primeira que eu fazia sozinha -, acabei adormecendo nos primeiros minutos e, quando abri os olhos, me deparei com uma paisagem completamente diferente. Minha cabeça tinha se inclinado em direção ao vidro da janela, e a primeira coisa que vi foi o trem fazendo uma curva adiante, cercado por árvores.

                - Nunca vi alguém dormir tão graciosamente em um trem. – a voz me sobressaltou.

                Me endireitei no banco, vendo pela primeira vez a pessoa que tinha se sentado de frente para mim em um momento indefinido. Não gostei da ideia de alguém me vendo vulnerável, principalmente declarando que tinha me observado tão abertamente. A maioria ignoraria meu sono por educação.

                - Meu nome é Ravi. – ele se inclinou para me oferecer a mão.

                - Zoe. – apertei sua mão sem muita vontade.

                Ele voltou a se inclinar no banco. Tinha olhos escuros muito marcantes, cílios alongados e sobrancelhas espessas. A boca, de lábios grossos e bem desenhados, mantinha um sorriso bem humorado.

                - Com licença. – falei antes de me levantar.

                Eu não estava exatamente com fome, mas fui até o restaurante apenas para não ficar olhando para Ravi. Tive a impressão de que ele era capaz de manter uma conversa até o fim da viagem.

                A comida era boa e meu apetite apareceu mais do que eu esperava. Me sentei nos fundos, de costas para a porta, então não vi quando Ravi apareceu, somente quando ele escolheu se sentar justamente comigo.

                - Certo, eu queria apenas ser educado. – o prato dele estava lotado – Mas, aparentemente, meu jeito sutil e leve de ser não deu muito certo. – ele suspirou – Eu estou aqui para acompanhar você.

                - O quê? – meu garfo caiu da minha mão, produzindo um som terrivelmente alto através do silêncio. Vi algumas cabeças se virando em nossa direção, a maioria com um ar reprovador.

                - Eu viajei até aqui para encontrar você e acompanhá-la por toda a viagem. – ele esclareceu, começando a comer.

                - Você veio me encontrar? Deve ter viajado a noite toda. – eu ainda estava chocada com a informação, principalmente porque ninguém havia me falado nada sobre aquilo.

                - Peguei o trem da meia noite. – ele respondeu de boca cheia – Por isso demorei um pouco para ver que você tinha entrado no trem. Estava cochilando. Erro meu. – ele colocou uma mão no peito.

                - Meus pais não me falaram nada sobre isso. – sussurrei, mais para mim do que para Ravi, mas ele estava prestando atenção.

                - Porque eles não sabem. – ele explicou, ainda comendo – Parece que sua avó não achou que eles aprovariam um rapaz vindo te acompanhar.

                Eu me encolhi um pouco, mas Ravi não parecia saber exatamente o motivo disso e nem parecia querer saber.

                - Mas sou confiável. – ele interpretou meu silêncio de outra forma – Cora jamais mandaria alguém para acompanhar a neta que não fosse cem por cento de confiança.

                - Imagino que sim. – concordei.

                Eu não conhecia minha avó muito bem. Tinha uma vaga lembrança de uma mulher com longos cabelos loiros, sorriso marcante e um cheiro doce. Era a mãe da minha mãe, e as duas nunca tinham sido muito próximas - eu acho, porque minha mãe também nunca me contou muita coisa sobre seu passado.

                - Pode ter certeza. Cora Ferreira Dias jamais colocaria a neta, ou qualquer outra pessoa, em perigo. – ele declarou com lealdade.

                - Ferreira Dias? – repeti.

                - Não tem esses sobrenomes? – ele arqueou as sobrancelhas.

                - Não, sou Zoe Bellini. – dei de ombros.

                - Garota de sorte. – ele inclinou a cabeça para me observar.

                Não pude deixar de sorrir antes de voltar a comer. Talvez Ravi não fosse tão irritante como eu tinha pensado no começo.

O trem segue adiante

- Então você está me dizendo que não conhece a casa da sua avó? – Ravi arregalou os olhos.

                - Exatamente isso. – confirmei – Ela chegou a nos visitar, mas eu nunca fui até lá. Pelo menos não com idade para me lembrar disso.

                - Acho que você vai adorar. – ele suspirou – Eu adoraria morar lá.

                - E qual a sua ligação com a minha avó? – perguntei, curiosa.

                - Ela é minha madrinha. – ele disse com respeito.

                Franzi a testa. Minha família não era religiosa, então era difícil imaginar que minha avó fosse.

                - Não, não desse modo. – ele corrigiu, aparentemente percebendo o que eu tinha imaginado – Ela meio que me adotou financeiramente. – ele olhou pelo vidro por um instante – Mas não é só isso. Ela ajudou a me criar, me deu suporte, comida, livros...

                - Isso parece muito legal. – comentei com educação, ainda tentando entender.

                - Demais. – Ravi pareceu triste por um instante – Cora é uma pessoa maravilhosa. Você vai gostar dela.

                Depois disso fomos nos acomodar em nossos lugares. Uma chuva fina começou a cair logo em seguida, batendo contra a janela. Eu me senti um pouco menos tensa, e grata, para minha surpresa, por ter uma companhia naquela jornada.

                - Você é tão... – Ravi sorriu para mim, estreitando os olhos – Não sei, cor-de-rosa.

                Eu ri, entendendo o que ele queria dizer. Eu usava uma blusa de frio rosa, minha calça era clara e meus sapatos combinavam com a roupa, além do meu rosto com certeza estar com as bochechas rosadas por causa do frio. Combinando com o fato do meu cabelo ser loiro e meus olhos terem uma cor de azul claro, eu sabia que estava meio apagada.

                - Eu só queria passar despercebida pela viagem. – expliquei – Sem chamar atenção.

                Ravi riu, jogando a cabeça para trás.

                - Não sei se funcionou. Eu a conhecia por fotos, então não posso ajudar.

                - Fotos? – estranhei.

                - Sua avó tem fotos suas no quarto. Duas. – ele mostrou dois dedos – Uma de você bem pequena, e outra um pouco mais velha. Você não mudou muito.

                Talvez minha mãe tivesse mais contato com Cora do que eu pensava.

                O céu começou a ficar mais escuro aos poucos, e chuva foi se transformando em uma tempestade forte. Os clarões dos relâmpagos iluminavam nossos rostos e, aos poucos, foi impossível ver qualquer coisa através da janela.

                Ravi estava há algum tempo em silêncio. Talvez tivesse cansado de falar, ou apenas estivesse cansado de tanto tempo dentro do trem. Eu não quis incomodá-lo, principalmente quando seus olhos acabaram se fechando e seu corpo relaxou.

                Pensei em casa pela primeira vez. No meu quarto, sempre tão cuidadosamente arrumado, e nas cortinas da sala, balançando com o vento frio. Pensei em minha mãe, sentada na cozinha com uma xícara de chá quente, e em meu pai chegando de um dia longo no trabalho e indo relaxar em um banho. Pensei nos meus livros, nos bichinhos de pelúcia da estante e nas cartinhas das minhas amigas que eu guardava em uma caixa de sapato.

                Tudo fazia parte de um passado agora. E estava ficando cada vez mais longe conforme o trem ia adiante. Tive medo de nunca mais ver aquelas coisas, de não conseguir ter uma conversa direito com meus pais, de não me sentir bem na minha própria casa.

                - Está chorando? – a voz de Ravi me pegou de surpresa.

                Coloquei os dedos no rosto e, para minha total surpresa, senti a umidade.

                - Estou bem. – falei apressadamente.

                Ravi trocou de lugar, veio se sentar ao meu lado com um olhar preocupado.

                - Não sei o que aconteceu. Sua avó foi bem sigilosa com tudo isso, pode acreditar. – ele pareceu querer me dar um abraço, mas não dei abertura – Se precisar de um amigo, serei o melhor que eu puder. Se não quiser se abrir, tudo que posso dizer, de uma maneira bem genérica, é: seja o que for que estiver passando, não é para sempre. As coisas sempre mudam.

                - Obrigada. – me senti reconfortada, estranhamente.

                - Quando quiser. – ele piscou antes de voltar para o local anterior.

                Haviam outras coisas que eu estava evitando pensar, e puxar assunto com Ravi era a melhor maneira de manter tudo aquilo longe.

                - Então... – limpei a garganta – Como conheceu Cora?

                - Ah, isso... – novamente Ravi pareceu triste. Pensei em dizer que não precisava me contar, mas ele começou a falar. – Eu era pequeno. Estava na rua brincando com outras crianças.

                Ele me olhou, balancei a cabeça em afirmativo para dizer que compreendia.

                - Bom, você vai saber de qualquer jeito... – Ravi deu de ombros – Minha família é muito pobre, Zoe, e muito grande. E nem todos tomaram boas escolhas. No dia em que sua avó resolveu me ajudar, eu estava na rua com as outras crianças porque meu irmão mais velho tinha sido morto em um assalto.

                Abri a boca, mas não saiu som algum. O que eu poderia dizer? Era tão distante da minha realidade...

                - Talvez ela tenha me salvado de entrar em situações perigosas. – ele prosseguiu – Tenho primos presos, meu pai acabou assassinado, minha mãe bebe demais e não quer ser ajudada.

                - Sinto muito, Ravi. – falei com o coração apertado.

                - Não se preocupe. – ele fez um gesto com a mão – Ninguém nasce no lugar errado, não é?

                Eu não tinha nenhuma resposta, mesmo que genérica, para aquela pergunta.

                - Não precisa me olhar desse jeito. – ele me repreendeu delicadamente – Eu estou bem.

                - Eu sei. – concordei porque Ravi parecia mesmo bem.

                Ele virou a cabeça, olhando o nada pela janela, já que era impossível enxergar qualquer coisa.

                - Pode me contar alguma coisa sobre sua vida? – me perguntou minutos depois.

                - Não tenho muito para dizer. – encolhi os ombros – Escola, amigas, um ex-namorado educado e gentil...

                Ravi me observou por alguns instantes.

                - E o motivo de estarem te mandando para Cora.

                - Eu quis ir. – corrigi.

                - Então existe um motivo.

                Epa. Eu tinha caído em uma armadilha.

                - Não precisa falar. Já disse. – ele sorriu.

Amigos sem preconceito e sem condições

Era pouco mais de meio dia quando o trem fez a nossa parada, mas estava tão escuro que poderiam ser seis horas da tarde. A chuva parecia ainda mais forte do que antes e, mesmo que tivéssemos um guarda-chuva, seria impossível permanecer secos.

                Ravi estava preocupado comigo, tentando encontrar um modo de nos levar até a casa de Cora, enquanto eu apertava a mala com força contra o peito e tremia de frio.

                - Ela não tem um carro? – meus dentes batiam uns contra os outros involuntariamente.

                - Cora? – ele riu – Não, ela não tem.

                - Então vamos andando? – a ideia era desanimadora.

                - Não com essa chuva. – a testa dele estava franzida.

                Me sentei em um banco gelado, cansada.

                - Não se preocupe, Zoe. – Ravi declarou – Vou pegar uma carona.

                Ele se afastou assim que disse as palavras e eu não me preocupei em olhar para onde ia, estava concentrada demais em manter algum calor em mim mesma. A pele do meu rosto estava ardendo e os dedos dos pés estavam dormentes.

                - Zoe... – Ravi disse ao colocar um casaco sobre os meus ombros – Vamos, precisamos sair do frio.

                Coloquei as mangas do casaco e, ao olhar para ele, percebi que era o que Ravi estava vestindo instantes antes. Agora ele só tinha uma blusa de frio leve no corpo. Senti que devia recusar, mas era tão agradavelmente quente que não consegui.

                O segui de perto, vendo que havia um carro ligado esperando por nós. Era velho, levemente amassado em alguns pontos e com a pintura manchada.

                - Que carro é esse? – perguntei, alarmada.

                - Está tudo bem. – Ravi disse, tirando a mala das minhas mãos – Entre no banco de trás.

                Corremos pelo curto período através da chuva extremamente gelada. Escorreguei um pouco no banco de trás enquanto Ravi se acomodava na frente com mais classe. No banco do motorista, estava um rapaz muito parecido com ele, embora vários anos mais velho.

                - Muito bem, hein, Ravizinho. – o homem comentou depois de dar uma olhada em mim.

                - Cale a boca. – me surpreendi com as palavras – Só vamos. – ele gesticulou para a frente.

                O homem me lançou um sorriso malicioso, mas obedeceu. Fiquei um pouco tensa porque era obvio que era um dos parentes de Ravi, e depois das coisas que ele tinha me falado seria impossível outra reação.

                Tentei olhar pela janela, mas a chuva ainda impossibilitava muito. Tive apenas vislumbres das ruas que foram ficando cada vez mais irregulares até se tornar uma subida íngreme com árvores ao redor.

                - Eu deveria cobrar essa viagem de você. – o homem reclamou.

                - Pode cobrar. – Ravi disse suavemente, parecendo não se preocupar com a possibilidade.

                Poucos minutos depois o carro parou e Ravi abriu a porta. Rapidamente eu o imitei, não querendo ficar sozinha com o estranho, mas meu acompanhante estava parado ao lado da minha porta para me ajudar.

                A chuva tinha diminuído, então consegui ver muito bem que nós estávamos diante de uma casa tão cercada por natureza que parecia estar saindo de dentro dela. As trepadeiras subiam pelas paredes até o teto, as flores multicoloridas pipocavam em todos os lugares, os arbustos eram rebeldes e muito diferentes dos bem aparados que eu conhecia.

                Só então me dei conta de que a chuva não tinha diminuído, nós que estávamos embaixo de várias árvores.

                - Isso é... – comecei a dizer enquanto andava, mas não encontrei palavras.

                - Eu sei. – Ravi comentou, contente, me segurando pelo braço como se tivesse medo que eu caísse.

                Escutei o carro se afastando, mas não me virei para olhar. Estava com o foco totalmente na casa na nossa frente. Era linda, não se poderia negar, mas era incrivelmente diferente de tudo que eu já tinha conhecido. Com toda a certeza, se eu já tivesse visitado minha avó aqui, seria impossível não lembrar.

                Havia uma varanda com duas cadeiras de balanço de aparência gasta e vários vasos de plantas no chão. O mais interessante era que nem todos eram vasos tradicionais, do tipo comprado em lojas, haviam xícaras quebradas, embalagens usadas, garrafas cortadas e basicamente qualquer coisa em que era possível se colocar terra.

                A porta da frente se abriu e eu ergui os olhos.

                - Zoe! – Cora exclamou com um sorriso.

                Não era muito diferente das minhas memórias, embora o cabelo agora fosse completamente branco. Haviam pequenas rugas em seu rosto, principalmente ao redor dos olhos, mas havia alguma coisa em Cora que a fazia parecer jovem. Não só por ela se movimentar tão bem e pelas roupas completamente diferentes das idosas que eu conhecia. Era mais como uma energia jovem e pulsante.

                - Cora! – sorri.

                Ela me abraçou e senti o mesmo aroma doce. Era reconfortante, e pela primeira vez senti que estar ali talvez tivesse sido a melhor decisão que eu tinha tomado.

                - Fizeram boa viagem? – ela se afastou – Ravi cuidou bem de você?

                - Muito bem. – confirmei, lançando um olhar para ele.

                Ravi estava parado atrás de nós, quieto.

                - Não vou dizer nada por ter vindo no carro de Raul. – Cora disse suavemente.

                - Eu não tive muita escolha... – ele parecia sem graça.

                - Sei disso. – Cora concordou – Vamos entrar.

                O lado de dentro era ainda mais incrível que o lado de fora. Na sala haviam sofás e poltronas na cor de um verde escuro e móveis de madeira. Em cada superfície havia algum vaso, algumas plantas se penduravam em direção ao chão e decidi que eram minhas favoritas.

                - Preparei o quarto para você. – Cora seguiu para um corredor e eu fui atrás.

                O quarto não era grande, certamente não era metade do tamanho do meu antigo, mas era muito charmoso e acolhedor. Dava para ver as trepadeiras subindo pelo vidro da janela que ficava na cabeceira da cama. Só havia um móvel com gavetas, mas como eu não tinha trazido muitas coisas, era mais do que suficiente.

                - Só um banheiro, infelizmente. – ela me disse.

                - Não tem problema. – falei com sinceridade.

                Ravi estava parado na porta, ainda segurando a mala, nos olhando com curiosidade.

                - O que foi? – perguntei, desconfortável.

                - Vocês são parecidas. Eu não tinha notado.

                Cora riu, satisfeita, e foi tirar a mala das mãos dele.

                - Estou terminando o almoço. – anunciou – Quando estiver pronta, é só ir até lá.

                - Certo. – concordei.

                Abri a mala em cima da cama e comecei a acomodar minhas coisas nas gavetas. Ravi ficou parado, sem dizer nenhuma palavra por alguns minutos.

                - Então... – comecei cuidadosamente, depois de fechar a última gaveta – Por que Cora ficaria brava por Raul ter nos trazido?

                Ele suspirou profundamente e se sentou na cama.

                - Cora não gosta muito de Raul. – declarou – Bom, não exatamente não gosta... Ela só acha que ele... – Ravi parecia constrangido.

                - Não precisa dizer nada. – sorri para ele.

                - Não, não é isso. – ele suspirou outra vez – Raul tentou roubar Cora.

                - O quê? – me espantei.

                - Ele invadiu essa casa, mas não achou nada que considerasse de valor. – Ravi torcia uma mão na outra – Cora não quis dar queixa.

                A vida de Ravi não deveria mesmo ser fácil. Eu, de dentro do meu mundo familiar perfeito, jamais poderia imaginar pelas coisas que ele já havia passado.

                - Já faz muito tempo. – ele não olhava mais para mim – Mas não posso dizer que Raul mudou muito desde então.

                - Vai ficar para almoçar? – mudei de assunto porque queria fazê-lo se sentir melhor e não sabia como.

                Ravi ergueu a cabeça rapidamente para mim, surpreso.

                - Quer que eu fique?

                - Por que não ia querer? – franzi a testa.

                - Pelo que acabei de dizer. – ele encolheu os ombros – As pessoas tendem a não querer se aproximar de mim por causa da minha família.

                Aquilo fez meu coração parecer encolher no peito.

                - Serei sua amiga. – declarei, convicta.

                Ravi sorriu e ficou em pé. Estava realmente feliz por eu não me assustar com o que tinha acabado de contar.

                O almoço foi recheado de conversas, mas nada muito profundo. Perguntas sobre a viagem, o clima, se tínhamos comido no caminho... Fui relaxando aos poucos, pois havia imaginado que Cora iria querer saber o motivo de, depois de tantos anos, eu decidir passar algum tempo com ela.

                - Bom, acho que vou tomar um banho. – me levantei no meio de risadas de Cora e Ravi.

                - Já tem uma toalha separada para você. – Cora me disse.

                Voltei para o corredor e, como eram três portas e eu já sabia que a mais no fundo era a do meu quarto, escolhi a do meio. Me deparei com um banheiro pequeno, com uma cortina para separar o chuveiro e uma janela no alto. Chegava a ser quase claustrofóbico.

                Depois de pegar uma nova roupa no quarto, voltei e fui para baixo do chuveiro. A pressão da água era um pouco decepcionante, bem como a água que não chegava a ficar tão quente, mas decidi que não iria me importar com essas pequenas coisas.

                Quando terminei, encontrei Ravi e Cora sentados na sala com xícaras de chá. Havia uma esperando por mim, o que foi ótimo para me aquecer um pouco. Descobri que o sofá era realmente confortável, muito melhor que o da casa dos meus pais que prezava pela beleza.

Vi pelas janelas de vidro que a chuva continuava a cair com força, talvez fosse ficar assim pelo resto do dia. Estava ficando mais frio também, então fiquei grata por todas as roupas quentes que pensei em trazer.

- Tudo bem? Zoe? – escutei a voz de Cora e virei meu rosto.

Ela e Ravi me olhavam com curiosidade.

- Tudo bem. – respondi com um sorriso – Eu só estava pensando na chuva e no frio.

- Acho que vai ficar assim por alguns dias. – Ravi comentou\, dando de ombros.

- Acho que vai ficar preso aqui\, então? – Cora perguntou para ele.

- Eu... – ele me olhou de relance\, talvez em dúvida.

- Ravi faz alguns trabalhos para mim. – Cora o interrompeu\, olhando para mim – Me ajuda em vários aspectos. Quando precisa\, eu o deixo dormir aqui.

- Isso é ótimo. – concordei\, olhando para ele.

Minha avó sorriu, como se tivesse gostado do que eu disse. Ravi era importante para ela, não foi difícil perceber. Talvez fosse solitária, afinal a casa era mesmo um pouco afastada, mas acho que era porque ela tinha vontade de protegê-lo. Certamente não queria que o rapaz seguisse os membros de sua família e desse um passo que poderia se arrepender depois.

- Tenho que continuar. – Cora ficou em pé repentinamente.

- Continuar o quê? – perguntei\, confusa.

- A fazer as coisas que faço. – ela me olhou com curiosidade – Geleias\, compotas\, pães\, biscoitos...

Eu não fazia ideia de que minha avó trabalhava com esse tipo de coisa, mas fazia muito sentido.

- São as melhores. – Ravi disse\, cheio de orgulho – Eu as vendo por toda cidade.

- Bom\, fiquem à vontade. – Cora disse antes de voltar para a cozinha.

A casa era muito aconchegante. Não havia nada que me fizesse lembrar da casa dos meus pais, mas de alguma forma eu estava tão relaxada que era como se eu já fizesse parte daquele lugar.

- Já que somos amigos... – Ravi começou depois de alguns instantes de silêncio – Posso perguntar porque veio para cá?

Encolhi os ombros instintivamente. Eu estava esperando essa pergunta de Cora, mas não dele.

- Eu precisava mudar de ambiente. – minha voz saiu rouca.

- Não precisa me contar nada. – ele pareceu entender que eu estava sendo evasiva.

- Não estou pronta... – gaguejei um pouco – para falar alguns aspectos...

- Ei... – ele se levantou e veio sentar ao meu lado – Não precisa me dizer nada mesmo. Você me ofereceu sua amizade sem preconceitos. Estou oferecendo a minha sem nenhum tipo de condição.

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