Amigos sem preconceito e sem condições

Era pouco mais de meio dia quando o trem fez a nossa parada, mas estava tão escuro que poderiam ser seis horas da tarde. A chuva parecia ainda mais forte do que antes e, mesmo que tivéssemos um guarda-chuva, seria impossível permanecer secos.

                Ravi estava preocupado comigo, tentando encontrar um modo de nos levar até a casa de Cora, enquanto eu apertava a mala com força contra o peito e tremia de frio.

                - Ela não tem um carro? – meus dentes batiam uns contra os outros involuntariamente.

                - Cora? – ele riu – Não, ela não tem.

                - Então vamos andando? – a ideia era desanimadora.

                - Não com essa chuva. – a testa dele estava franzida.

                Me sentei em um banco gelado, cansada.

                - Não se preocupe, Zoe. – Ravi declarou – Vou pegar uma carona.

                Ele se afastou assim que disse as palavras e eu não me preocupei em olhar para onde ia, estava concentrada demais em manter algum calor em mim mesma. A pele do meu rosto estava ardendo e os dedos dos pés estavam dormentes.

                - Zoe... – Ravi disse ao colocar um casaco sobre os meus ombros – Vamos, precisamos sair do frio.

                Coloquei as mangas do casaco e, ao olhar para ele, percebi que era o que Ravi estava vestindo instantes antes. Agora ele só tinha uma blusa de frio leve no corpo. Senti que devia recusar, mas era tão agradavelmente quente que não consegui.

                O segui de perto, vendo que havia um carro ligado esperando por nós. Era velho, levemente amassado em alguns pontos e com a pintura manchada.

                - Que carro é esse? – perguntei, alarmada.

                - Está tudo bem. – Ravi disse, tirando a mala das minhas mãos – Entre no banco de trás.

                Corremos pelo curto período através da chuva extremamente gelada. Escorreguei um pouco no banco de trás enquanto Ravi se acomodava na frente com mais classe. No banco do motorista, estava um rapaz muito parecido com ele, embora vários anos mais velho.

                - Muito bem, hein, Ravizinho. – o homem comentou depois de dar uma olhada em mim.

                - Cale a boca. – me surpreendi com as palavras – Só vamos. – ele gesticulou para a frente.

                O homem me lançou um sorriso malicioso, mas obedeceu. Fiquei um pouco tensa porque era obvio que era um dos parentes de Ravi, e depois das coisas que ele tinha me falado seria impossível outra reação.

                Tentei olhar pela janela, mas a chuva ainda impossibilitava muito. Tive apenas vislumbres das ruas que foram ficando cada vez mais irregulares até se tornar uma subida íngreme com árvores ao redor.

                - Eu deveria cobrar essa viagem de você. – o homem reclamou.

                - Pode cobrar. – Ravi disse suavemente, parecendo não se preocupar com a possibilidade.

                Poucos minutos depois o carro parou e Ravi abriu a porta. Rapidamente eu o imitei, não querendo ficar sozinha com o estranho, mas meu acompanhante estava parado ao lado da minha porta para me ajudar.

                A chuva tinha diminuído, então consegui ver muito bem que nós estávamos diante de uma casa tão cercada por natureza que parecia estar saindo de dentro dela. As trepadeiras subiam pelas paredes até o teto, as flores multicoloridas pipocavam em todos os lugares, os arbustos eram rebeldes e muito diferentes dos bem aparados que eu conhecia.

                Só então me dei conta de que a chuva não tinha diminuído, nós que estávamos embaixo de várias árvores.

                - Isso é... – comecei a dizer enquanto andava, mas não encontrei palavras.

                - Eu sei. – Ravi comentou, contente, me segurando pelo braço como se tivesse medo que eu caísse.

                Escutei o carro se afastando, mas não me virei para olhar. Estava com o foco totalmente na casa na nossa frente. Era linda, não se poderia negar, mas era incrivelmente diferente de tudo que eu já tinha conhecido. Com toda a certeza, se eu já tivesse visitado minha avó aqui, seria impossível não lembrar.

                Havia uma varanda com duas cadeiras de balanço de aparência gasta e vários vasos de plantas no chão. O mais interessante era que nem todos eram vasos tradicionais, do tipo comprado em lojas, haviam xícaras quebradas, embalagens usadas, garrafas cortadas e basicamente qualquer coisa em que era possível se colocar terra.

                A porta da frente se abriu e eu ergui os olhos.

                - Zoe! – Cora exclamou com um sorriso.

                Não era muito diferente das minhas memórias, embora o cabelo agora fosse completamente branco. Haviam pequenas rugas em seu rosto, principalmente ao redor dos olhos, mas havia alguma coisa em Cora que a fazia parecer jovem. Não só por ela se movimentar tão bem e pelas roupas completamente diferentes das idosas que eu conhecia. Era mais como uma energia jovem e pulsante.

                - Cora! – sorri.

                Ela me abraçou e senti o mesmo aroma doce. Era reconfortante, e pela primeira vez senti que estar ali talvez tivesse sido a melhor decisão que eu tinha tomado.

                - Fizeram boa viagem? – ela se afastou – Ravi cuidou bem de você?

                - Muito bem. – confirmei, lançando um olhar para ele.

                Ravi estava parado atrás de nós, quieto.

                - Não vou dizer nada por ter vindo no carro de Raul. – Cora disse suavemente.

                - Eu não tive muita escolha... – ele parecia sem graça.

                - Sei disso. – Cora concordou – Vamos entrar.

                O lado de dentro era ainda mais incrível que o lado de fora. Na sala haviam sofás e poltronas na cor de um verde escuro e móveis de madeira. Em cada superfície havia algum vaso, algumas plantas se penduravam em direção ao chão e decidi que eram minhas favoritas.

                - Preparei o quarto para você. – Cora seguiu para um corredor e eu fui atrás.

                O quarto não era grande, certamente não era metade do tamanho do meu antigo, mas era muito charmoso e acolhedor. Dava para ver as trepadeiras subindo pelo vidro da janela que ficava na cabeceira da cama. Só havia um móvel com gavetas, mas como eu não tinha trazido muitas coisas, era mais do que suficiente.

                - Só um banheiro, infelizmente. – ela me disse.

                - Não tem problema. – falei com sinceridade.

                Ravi estava parado na porta, ainda segurando a mala, nos olhando com curiosidade.

                - O que foi? – perguntei, desconfortável.

                - Vocês são parecidas. Eu não tinha notado.

                Cora riu, satisfeita, e foi tirar a mala das mãos dele.

                - Estou terminando o almoço. – anunciou – Quando estiver pronta, é só ir até lá.

                - Certo. – concordei.

                Abri a mala em cima da cama e comecei a acomodar minhas coisas nas gavetas. Ravi ficou parado, sem dizer nenhuma palavra por alguns minutos.

                - Então... – comecei cuidadosamente, depois de fechar a última gaveta – Por que Cora ficaria brava por Raul ter nos trazido?

                Ele suspirou profundamente e se sentou na cama.

                - Cora não gosta muito de Raul. – declarou – Bom, não exatamente não gosta... Ela só acha que ele... – Ravi parecia constrangido.

                - Não precisa dizer nada. – sorri para ele.

                - Não, não é isso. – ele suspirou outra vez – Raul tentou roubar Cora.

                - O quê? – me espantei.

                - Ele invadiu essa casa, mas não achou nada que considerasse de valor. – Ravi torcia uma mão na outra – Cora não quis dar queixa.

                A vida de Ravi não deveria mesmo ser fácil. Eu, de dentro do meu mundo familiar perfeito, jamais poderia imaginar pelas coisas que ele já havia passado.

                - Já faz muito tempo. – ele não olhava mais para mim – Mas não posso dizer que Raul mudou muito desde então.

                - Vai ficar para almoçar? – mudei de assunto porque queria fazê-lo se sentir melhor e não sabia como.

                Ravi ergueu a cabeça rapidamente para mim, surpreso.

                - Quer que eu fique?

                - Por que não ia querer? – franzi a testa.

                - Pelo que acabei de dizer. – ele encolheu os ombros – As pessoas tendem a não querer se aproximar de mim por causa da minha família.

                Aquilo fez meu coração parecer encolher no peito.

                - Serei sua amiga. – declarei, convicta.

                Ravi sorriu e ficou em pé. Estava realmente feliz por eu não me assustar com o que tinha acabado de contar.

                O almoço foi recheado de conversas, mas nada muito profundo. Perguntas sobre a viagem, o clima, se tínhamos comido no caminho... Fui relaxando aos poucos, pois havia imaginado que Cora iria querer saber o motivo de, depois de tantos anos, eu decidir passar algum tempo com ela.

                - Bom, acho que vou tomar um banho. – me levantei no meio de risadas de Cora e Ravi.

                - Já tem uma toalha separada para você. – Cora me disse.

                Voltei para o corredor e, como eram três portas e eu já sabia que a mais no fundo era a do meu quarto, escolhi a do meio. Me deparei com um banheiro pequeno, com uma cortina para separar o chuveiro e uma janela no alto. Chegava a ser quase claustrofóbico.

                Depois de pegar uma nova roupa no quarto, voltei e fui para baixo do chuveiro. A pressão da água era um pouco decepcionante, bem como a água que não chegava a ficar tão quente, mas decidi que não iria me importar com essas pequenas coisas.

                Quando terminei, encontrei Ravi e Cora sentados na sala com xícaras de chá. Havia uma esperando por mim, o que foi ótimo para me aquecer um pouco. Descobri que o sofá era realmente confortável, muito melhor que o da casa dos meus pais que prezava pela beleza.

Vi pelas janelas de vidro que a chuva continuava a cair com força, talvez fosse ficar assim pelo resto do dia. Estava ficando mais frio também, então fiquei grata por todas as roupas quentes que pensei em trazer.

- Tudo bem? Zoe? – escutei a voz de Cora e virei meu rosto.

Ela e Ravi me olhavam com curiosidade.

- Tudo bem. – respondi com um sorriso – Eu só estava pensando na chuva e no frio.

- Acho que vai ficar assim por alguns dias. – Ravi comentou\, dando de ombros.

- Acho que vai ficar preso aqui\, então? – Cora perguntou para ele.

- Eu... – ele me olhou de relance\, talvez em dúvida.

- Ravi faz alguns trabalhos para mim. – Cora o interrompeu\, olhando para mim – Me ajuda em vários aspectos. Quando precisa\, eu o deixo dormir aqui.

- Isso é ótimo. – concordei\, olhando para ele.

Minha avó sorriu, como se tivesse gostado do que eu disse. Ravi era importante para ela, não foi difícil perceber. Talvez fosse solitária, afinal a casa era mesmo um pouco afastada, mas acho que era porque ela tinha vontade de protegê-lo. Certamente não queria que o rapaz seguisse os membros de sua família e desse um passo que poderia se arrepender depois.

- Tenho que continuar. – Cora ficou em pé repentinamente.

- Continuar o quê? – perguntei\, confusa.

- A fazer as coisas que faço. – ela me olhou com curiosidade – Geleias\, compotas\, pães\, biscoitos...

Eu não fazia ideia de que minha avó trabalhava com esse tipo de coisa, mas fazia muito sentido.

- São as melhores. – Ravi disse\, cheio de orgulho – Eu as vendo por toda cidade.

- Bom\, fiquem à vontade. – Cora disse antes de voltar para a cozinha.

A casa era muito aconchegante. Não havia nada que me fizesse lembrar da casa dos meus pais, mas de alguma forma eu estava tão relaxada que era como se eu já fizesse parte daquele lugar.

- Já que somos amigos... – Ravi começou depois de alguns instantes de silêncio – Posso perguntar porque veio para cá?

Encolhi os ombros instintivamente. Eu estava esperando essa pergunta de Cora, mas não dele.

- Eu precisava mudar de ambiente. – minha voz saiu rouca.

- Não precisa me contar nada. – ele pareceu entender que eu estava sendo evasiva.

- Não estou pronta... – gaguejei um pouco – para falar alguns aspectos...

- Ei... – ele se levantou e veio sentar ao meu lado – Não precisa me dizer nada mesmo. Você me ofereceu sua amizade sem preconceitos. Estou oferecendo a minha sem nenhum tipo de condição.

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Comments

lua 🌙

lua 🌙

será que dessa amizade vai ter um grande amor?

2025-08-21

2

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