DEVIR lV

“𝑨𝒎𝒂𝒓 𝒐 𝒑𝒆𝒓𝒅𝒊𝒅𝒐 𝒅𝒆𝒊𝒙𝒂 𝒄𝒐𝒏𝒇𝒖𝒏𝒅𝒊𝒅𝒐 𝒆𝒔𝒕𝒆 𝒄𝒐𝒓𝒂𝒄̧𝒂̃𝒐.”

Garagem. Elevador. Chaves. Finalmente de volta em casa. Ainda sentia raiva ao lembrar do que tinha acontecido. Maldita festa, maldito Augustín. Entro, tiro os tênis, largo a ecobag na mesinha, vou até o bar no canto da sala e pego um copo servindo uma dose. Respiro fundo… tentando aterrizar. Caminho até o outro lado, escolho o vinil de sempre, coloco no toca discos, ajusto a agulha, terceira música, espero tocar…

A música soa… preenchendo o ambiente. Me arrasto até a sacada, um gole, saco o maço, cigarro nos lábios, acendo, trago.

Ninguém

Desgraçado — falo entre a fumaça que sai da boca

Xingo baixo. Escoro os braços esticados na grade, me abaixo escondendo o rosto entre eles. Respiro fundo, lento… abatido. Sento no chão escorado no vidro de frente pra grade, os olhos no céu, agora já escuro tomado por estrelas e as luzes da cidade, o barulho dos carros passando, a brisa fresca do anoitecer… tudo parecia ainda sem sentido. Diferente de um jeito estranho como nunca tinha sido antes.

Eu não quis pensar, não ousei perguntar a mim mesmo o que era esse sentimento. Por medo, por defesa, por ser idiota. Mas era notável. Quase palpável. Todos já haviam percebido antes mesmo de ter acontecido qualquer coisa, era sincero.

Gole. Trago. Solto. O aperto no peito. Memórias. Um sorriso escapando com as lembranças. O frio na barriga que a incerteza trazia. As vezes que fugi pra te encontrar. Os segredos compartilhados como confissão. Como meu corpo se encaixava ao teu. As vezes que tua boca chamou meu nome.

Ninguém

Ah! Merda!

Balanço a cabeça em negação. Outro gole. Última tragada. Eu sabia que tava perdido, sim… só não sabia que tava apaixonado. Não quis admitir, não tive coragem. E toda vez que quis me puxar, eu recuei dez passos. Tão tolo…

A música acaba, o vinil silencia. O telefone toca. Desperto do meu devaneio. Levanto e vou até a mesa, olho pra tela, Juan. Ignoro. Deixo uma mensagem avisando que já fui embora, provavelmente ele vai me xingar com um de seus palavrões preferidos. Sempre assim.

A luz que entrava da rua deixava a sala banhada em um tom azul, só a luz cálida da luminária próxima ao vinil em contraste. Me jogo no sofá. O corpo cansado. A mente a mil. Você sempre na minha cabeça. No meu peito. O toque ainda sensível ao corpo. O gosto nos lábios. Só de lembrar, meu corpo se arrepia… essa boca. Porra! E todas as vezes em que adentramos a madrugada, meu corpo perdido no teu… merda! A respiração já descompassa, meu corpo excita só de pensar em como te tocava. Como pude ser tão tolo.

Ninguém

Ah… cacete!

Eu ansiava por falar contigo, por te abraçar, poder enterrar meu rosto no teu cabelo, sentir teu cheiro e o calor do corpo próximo… tudo tinha ganhado um novo gosto. A vontade de conhecer cada parte sua, cada medo, cada sorriso, cada receio, cada desejo…

Sentados no chão. Uma bebida ao lado de cada um. Você com o rosto entre os joelhos, inquieto. Me ajeitei deitando no chão pra poder te olhar de baixo, baixei a guarda. Primeiro silêncio. Me abri. O toque na sua mão. As lágrimas. Foi ali?

Fico repassando esses momentos na cabeça num looping sem fim. O que eu deixei passar? O que eu deveria não ter dito? Por que dei tanta vazão pra minha insegurança? Quando eu comecei a duvidar foi justamente quando eu já não podia mais negar? Muita coisa não sai da minha cabeça… e tudo acaba me levando de volta pra nós.

Respiro fundo… fecho os olhos levando o braço sobre eles. Que falta daquele peso bem vindo sobre meu peito... Quando tudo parecia se encaixar.

Talvez tudo passe e a vida continue se encaminhando pro próximo capítulo. Talvez tudo que vai restar são essas lembranças na memória. Talvez não reste nada afinal e você siga seu caminho.

Só o tempo vai dizer o que vai ser do que restar de nós.

“𝑴𝒂𝒔 𝒂𝒔 𝒄𝒐𝒊𝒔𝒂𝒔 𝒇𝒊𝒏𝒅𝒂𝒔, 𝒎𝒖𝒊𝒕𝒐 𝒎𝒂𝒊𝒔 𝒒𝒖𝒆 𝒍𝒊𝒏𝒅𝒂𝒔, 𝒆𝒔𝒔𝒂𝒔 𝒇𝒊𝒄𝒂𝒓𝒂̃𝒐.”