Mavis Marshall
Dizem que a memória guarda o que a alma se recusa a esquecer. E eu me lembro de tudo.
Dos dedos do meu pai afagando meus cabelos enquanto contava histórias. Do cheiro de perfume cítrico que ele trazia nos braços após um dia de trabalho. Do modo como ele dizia meu nome como se fosse uma canção:
— Mavis, minha pequena estrela. Promete que nunca vai deixar esse mundo endurecer você?
— Prometo, papai. Mesmo se o mundo virar pedra, eu vou continuar flor.
Ele ria alto, os olhos brilhando de orgulho. Ele me chamava de sua luz. E por muito tempo, eu fui.
Mas então… a luz dele apagou.
Eu tinha apenas cinco anos quando vi a morte roubar o que eu mais amava.
Estava sentada no tapete da sala, desenhando. Meu pai assistia futebol, como todo domingo. Quando o silêncio caiu repentino, olhei para o sofá. Ele estava imóvel, a mão no peito, os olhos vidrados. Corri até ele.
— Papai? Papai, responde…
Mas ele não respondeu. E meu choro rompeu o mundo.
Abracei seu corpo que começava a ficar gelado, gritei por socorro. Ninguém veio a tempo. Ninguém poderia devolver meu pai.
Naquele dia, eu aprendi que a morte não tem pena. E que amor nenhum é eterno.
Depois disso, tudo mudou.
Minha mãe se fechou. Primeiro chorava à noite. Depois passou a me olhar com uma dureza que eu não entendia. E então vieram as ordens. As regras. As imposições.
— Essa roupa está larga demais. Vista esse vestido justo.
— Mas eu não gosto, mãe…
— Ninguém perguntou. Você precisa aprender a ser notada.
Começou com os vestidos. Depois os perfumes doces demais. Os saltos altos que machucavam meus pés. A maquiagem carregada que me fazia sentir outra pessoa no espelho. Os penteados elaborados demais para uma adolescente.
Eu queria livros, plantas e tardes tranquilas. Ela queria um troféu moldado à força. E sempre me comparava à minha irmã.
Mayra… minha gêmea idêntica. Mesmo rosto. Alma oposta.
Ela adorava o brilho. A atenção. As festas. Os olhares. Sempre foi bonita, charmosa, vaidosa. E mesmo assim, nunca me fez sentir inferior. Pelo contrário, era ela quem me defendia quando a mamãe exagerava.
— Mãe, para. Deixa a Mavis em paz. Nem todo mundo precisa ser como eu.
— Você fique calada, Mayra! Só porque você consegue, não significa que pode me ensinar a ser mãe.
Mayra revirava os olhos, mas desistia. Eu só abaixava a cabeça.
Festas e eventos se tornaram rotina. Eu odiava todos. Ficava nos cantos escuros, fugindo dos olhares e das taças de champanhe. Até aquela noite.
Foi em uma festa de aniversário de um empresário influente. Luzes demais, risos falsos demais. E eu, encolhida atrás de uma pilastra decorada, tentando não chamar atenção. Foi ali que o vi. Sozinho, também deslocado.
— Escondida também? — ele perguntou, com um sorriso torto.
— Eu prefiro a parte silenciosa da festa.
— Eu também. Meu nome é Ezra.
— Mavis.
Conversamos por uma hora. Depois por duas. Ele era diferente. Gentil. Desajeitado. Distraído. Me fez rir. E riso, naquela fase, era coisa rara.
Trocamos números. Nos falamos por mensagens. Passeios. Cafés. Em dois meses, estávamos namorando. Eu tinha dezoito.
— Você confia nele? — Mayra perguntou certa noite, me vendo sair.
— Acho que sim. Ele me trata bem.
— Só fique atenta. Às vezes, a doçura vem antes da mordida.
Minha mãe não gostava de Ezra no começo. Chamava-o de novo rico sem educação. Mas algo mudou de repente. Ela ficou gentil. Permitindo saídas. Dando espaço.
— Que bom que encontrou alguém que goste de você. — disse ela, com um sorriso estranho — Só não decepcione. Ele pode ser útil.
Eu não entendi. Mas estava apaixonada demais para pensar. Ezra era amoroso. Atencioso. Até que deixou de ser.
— Você nunca me beija de verdade. Nunca me deixa tocar você. — ele reclamou uma vez, num banco de praça.
— Ezra, eu… não sou contra isso. Mas eu quero esperar até o casamento.
— Isso é coisa do século passado, Mavis. Acha mesmo que vou esperar anos por isso?
— Se me ama, vai respeitar meu tempo.
Ele suspirou. Aceitou. Por fora. Porque por dentro, algo já havia mudado.
Dois meses depois, veio o primeiro tapa.
Foi após um jantar, por causa de uma roupa que ele considerou provocante demais. Um tapa seco. Estalado.
— Desculpa. Foi o estresse. Eu estava nervoso. Não era com você.
Na semana seguinte, cem rosas vermelhas e um colar de diamantes chegaram no meu quarto. Junto com uma carta de amor.
Mayra quis matar ele. Mas minha mãe… minha mãe silenciou.
— Ele perdeu a linha, mas homens são assim. Se você reagir, perde ele. E perder homem bom é burrice.
— Um homem bom não bate. — eu disse, com a voz fraca.
— E mulher fraca nunca conquista nada.
O pior ainda estava por vir.
Um mês depois, após uma discussão por ciúmes, Ezra me bateu. De verdade. Várias vezes. Chutes. Socos. Me deixou caída no chão, com os lábios sangrando e os braços marcados.
Mayra me encontrou. Quis chamar a polícia.
— Eu vou matar esse desgraçado! — ela gritava.
— Não. Por favor… só me ajuda a sair daqui.
Dessa vez, minha mãe não defendeu.
— Se ele se aproximar de novo, eu mesma acabo com ele. — disse, os olhos cheios de fúria.
Mas não o fez. Não precisou.
Eu terminei. Me afastei. Tentei reconstruir minha vida. Mas Ezra não esqueceu. Me perseguia pelas redes. Aparecia perto do meu trabalho. Mandava presentes. Tentava me convencer de que era amor.
Três anos depois, ele ainda me assombra.
E agora… estou casando com um homem que não é meu. Com um nome que não é meu. Vivendo uma mentira que me destrói mais do que os socos de Ezra.
Os aplausos da igreja soavam distantes, abafados, como se eu estivesse submersa. O mundo girava em câmera lenta ao meu redor. Flores brancas, sorrisos falsos, olhares curiosos. E eu ali, parada, com o coração tropeçando e os pulmões esquecendo como respirar.
O véu cobria meu rosto, mas não o bastante para esconder a verdade de mim mesma: eu estava prestes a ser beijada por Jensen Montserrat. Um homem que, há dois dias, casou no civil com a minha irmã. Sim. Meu cunhado. Eu era a cópia. O fantoche. A sombra viva de uma mentira cruel.
Minha mãe, supostamente doente, me implorou com os olhos para fazer isso. Disse que não tínhamos dinheiro para o tratamento. Que só eu podia salvá-la. Mas uma pergunta insistente me perfurava o peito desde que subi nesse altar:
Será que Mayra sabia da doença antes de fugir?
Mas toda dúvida sumiu quando Jensen levantou o véu.
Foi como se o tempo parasse.
O rosto dele se revelou diante de mim com uma beleza grave, dolorosa. Tão perto. Tão real. Os olhos dele me encontraram e, naquele segundo, meu corpo esqueceu como funcionar. Minha mente berrava que aquilo era errado, mas meu coração… meu coração apertava como se, de alguma forma estranha, me reconhecesse nele.
Eu queria me afastar. Gritar. Fugir. Mas não consegui. Estava presa. Nos olhos dele. No toque suave quando segurou minha mão. No modo como ele sorria. No modo como ele me desejava… achando que eu era outra.
O padre anunciou o beijo. Jensen se aproximou com os olhos úmidos de emoção. E então disse:
— Finalmente… o nosso primeiro beijo.
E me beijou.
Ah, se ele soubesse…
Os lábios dele tocaram os meus com uma delicadeza dolorosa. Era suave, profundo, inteiro. Um beijo que não pedia permissão, mas também não forçava. Apenas tomava… como se fosse destino.
Minha mente gritava "não". Meu coração gritava "sim". Uma guerra interna explodiu dentro de mim e eu não sabia quem venceria. Mas meu corpo já havia se rendido. Meus olhos fecharam. Minhas mãos cederam. Meu peito afundou contra o dele.
E por um instante… eu beijei como se fosse verdade.
Quando ele se afastou, os olhos fixos nos meus com uma paixão tão sincera que me cortou, senti meu coração se partir em silêncio. Eu não era a esposa dele. E ainda assim, o beijei como se fosse.
Meu corpo implorava para viver aquele momento. Minha alma… queria desaparecer.
Olhei para o lado, procurando algum fragmento de realidade. E vi minha mãe. Sentada na primeira fileira. Com um sorriso satisfeito no rosto e um sinal de positivo com os dedos.
"Mal feito, feito..." como em um feitiço sombrio de um dos meus livros favoritos de Harry Potter. Um juramento que não poderia mais ser desfeito.
Eu queria contar a verdade para Jensen. Gritar que eu não era a mulher que ele acreditava ter escolhido. Mas então pensava na minha mãe. No exame. Na promessa de que, se eu recusasse, ela poderia morrer.
E eu não queria ser a responsável por essa morte.
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Atualizado até capítulo 41
Comments
vilma assis
ela se apaixonou por ele e ele apaixonado pela irmã mais foi nela o primeiro beijo 💋 ela têm que falar a verdade o quanto antes quando a irmã aparecer ela não pagar sozinha pelo erro da mãe e irmã
2025-08-14
4
adelice miranda de aguiar
tadinha ela vai sofrer muito, quando o ordinário descobrir que ela casou, vai atormentar ela, espero que o Jensen quando descobrir a vdd, fica ao lado dela
2025-08-15
1
Ana Carolina Figueiredo
poxa ela vai se apaixonar mas a irmã dela vai aparecer que vai acontecer acontecer
2025-08-14
2